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Entrevista com o pensador português Avelãs Nunes

Data da publicação: 13/06/2017

O respeitadíssimo professor Avelãs Nunes, catedrático jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, esteve no Brasil em meados de maio para uma série de palestras: na U​niversidade de Brasília e no Supremo Tribunal Federal, no Ceará e aproveitou para lançar o livro “A Revolução Francesa na História do Capitalismo”. Ele foi entrevistado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim:

O primeiro ato do Presidente francês Macron foi visitar Angela Merkel. Por quê?

AN – Porque vivemos na Europa alemã, que tem uma outra face, a Europa de Vichy. Esta é a Europa dos colaboracionistas, dos que, pelo menos desde o Tratado de Maastricht – que criou a União Europeia, o euro, o Banco Central Europeu e as regras alemãs destinadas a impor o deutsche euro como instrumento de domínio da Alemanha sobre os restantes países da zona euro –, se vêm sujeitando ao papel de “governadores” das províncias (ou colônias) do império alemão em que transformaram os estados ditos soberanos que integram a eurozona. Macron limitou-se a seguir o exemplo de Hollande, que Perry Anderson classificou como “o intendente francês do sistema neoliberal europeu”. O grave é que, agora, os dirigentes sociais-democratas europeus integram as fileiras da Europa de Vichy.

Há uma crise da Europa ou do capitalismo?

AN – Há uma crise do capitalismo e, no seio dela, uma crise da Europa, que não é apenas uma crise financeira, mas também uma crise económica, política e social, que se apresenta também como uma crise da democracia. Tratei desta problemática num livro editado em São Paulo (2012) pela Editora Revista dos Tribunais (A Crise Atual do Capitalismo ● Capital Financeiro ● Neoliberalismo ● Globalização, com Prefácio do Prof. Doutor Eros Roberto Grau). Tentarei uma síntese do meu pensamento a este respeito.

● O sinal de que vinha aí uma crise a sério do mundo capitalista foi dado por ocasião da chamada crise do petróleo (1973-1975). Por um lado, a Administração americana denunciou unilateralmente o compromisso assumido em Bretton Woods de garantir a conversão do dólar em ouro (35 dólares por onça troy de ouro): o mundo passou a viver em regime de câmbios flutuantes, i. é, o preço das divisas passou a ser regulado pelo mercado (pelos especuladores). Por outro lado, surgiu um fenómeno novo, a estagflação: ao contrário do que sempre tinha acontecido até então e contra tudo o que ensinavam os manuais de Economia, coexistiam agora, no quadro de um capitalismo altamente monopolizado, situações de inflação elevada e crescente e situações de estagnação ou mesmo de regressão da atividade económica. Acresce que, no rescaldo destas crises, ficou a claro um fenómeno já antes verificado e estudado em algumas economias, mas que ganhou agora foros de fenómeno global: a tendência para a baixa da taxa média de lucro. Por esta altura, começou a evidenciar-se um fenómeno que vem marcando, desde então, todo o mundo capitalista: o fenómeno da financeirização da economia. A hegemonia do capital financeiro relativamente ao capital produtivo (na sua grande maioria titulado pelos chamados investidores institucionais, profundamente implicados na especulação sistemática) permite que aquele chame a si uma parte significativa da mais-valia criada nos setores produtivos. E como o lucro sai da mais-valia, também por aqui vem alimentada a referida tendência para a baixa da taxa média de lucro. A financeirização da economia e o consequente desenvolvimento das atividades especulativas no quadro do capitalismo de casino abriram novos campos de atração do capital em busca de rendimentos elevados a curto prazo, em prejuízo do investimento (a médio e a longo prazos) nos setores produtivos (aqueles onde se gera a mais-valia). Estes são, por outro lado, forçados a suportar taxas de juro mais elevadas (que se aproximem dos ganhos especulativos, num mundo em que impera o princípio da banca universal: os bancos comerciais não se distinguem dos bancos de investimento, podendo todos “investir” em atividades especulativas e nos “jogos de casino”).

● A resposta a esta crise estrutural do capitalismo traduziu-se na chamada “revolução conservadora”, inspirada na ideologia neoliberal, iniciada com o thatcherismo no Reino Unido (1979) e com a reaganomics nos EUA (1980), que marcam o início deste novo ciclo, em que a ideologia neoliberal se confirmou, também na esfera política, como a ideologia dominante, a ideologia das classes dominantes, sob a liderança do capital financeiro. Em 1987, Alan Greenspan assume o comando do Sistema de Reserva Federal dos EUA, posto em que se mantém até 2006. Na viragem dos anos 1980 para os anos 1990, e no rescaldo das dificuldades sentidas em todo o mundo capitalista na primeira metade da década de 1970, o “velho” consenso keynesiano foi posto de lado. O chamado Consenso de Washington “codificou” a estratégia para tentar travar aquela perigosa tendência no sentido da baixa da taxa média de lucro, e esta estratégia viria a ser facilitada pela emergência de um verdadeiro mercado mundial da força de trabalho – no qual entram em concorrência trabalhadores de diferentes partes do mundo, com diferentes histórias coletivas, com muito diferentes níveis e expectativas de vida e muito diferentes condições para enfrentar a sua situação como classe explorada –, no qual está à disposição do grande capital um enorme do exército de reserva de mão-de-obra, que constitui um estímulo poderoso à deslocalização de empresas, em busca de mão-de-obra mais barata e sem direitos (no quadro da UE, o alargamento aos países da Europa central e de leste atuou no mesmo sentido). Por meados dos anos 1980, após a conversão de Mitterrand ao “socialismo do possível” (metendo na gaveta o programa que o levara à presidência da República francesa), as grandes linhas da ideologia neoliberal começaram a dominar o pensamento e a ação dos partidos socialistas e sociais-democratas, sobretudo na Europa, talvez convencidos de que, nas condições da época, o respeito pelo deus mercado era uma condição de “respeitabilidade” política. Os dogmas neoliberais ganharam novos crentes, que recorrentemente vêm defendendo a sua “fé” com o inadmissível “argumento” thatcheriano de que não há alternativa [There is no Alternative]. A aproximação da “Europa” à ideologia neoliberal acentuou-se e acelerou-se com o Ato único Europeu (1986), que criou o mercado interno único e preparou as condições que haveriam de conduzir ao Tratado de Maastricht (1992): criação da União Europeia e da União Económica e Monetária (UEM), com a moeda única (o euro), o Banco Central Europeu (BCE) e o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Estes são os momentos críticos da submissão da “Europa” ao espírito do Consenso de Washington. O sistema cerrava fileiras na tentativa de compensar a tendência para a baixa da taxa média de lucro e de prevenir e combater as crises cada vez mais frequentes. Até porque as dificuldades estruturais se acentuaram: a desindustrialização que seguiu à “internacionalização”; (i.é, à deslocalização das grandes empresas industriais para os paraísos laborais) mais difícil ultrapassar as situações de crise; mesmo quando o PIB começa a crescer, taxas elevadas de desemprego mantêm-se durante mais tempo; os novos postos de trabalho gerados oferecem salários mais baixos do que os vigentes antes da crise. Após o desmoronamento da União Soviética e da comunidade socialista, os neoliberais de todos os matizes convenceram-se, mais uma vez, de que o capitalismo tinha garantida a eternidade, podendo regressar impunemente ao “modelo” puro e duro do século XVIII. A vitória da “contra-revolução monetarista” abriu o caminho ao reino do deus-mercado, à sobre-exploração dos trabalhadores, assumindo sem disfarce o genes do capitalismo como a civilização das desigualdades. O neoliberalismo consolidou-se como ideologia dominante. E o neoliberalismo não é o produto inventado por uns quantos “filósofos” que não têm mais nada em que pensar. O neoliberalismo não existe fora do capitalismo, antes corresponde a uma nova fase na evolução do capitalismo. O neoliberalismo é o reencontro do capitalismo consigo mesmo, depois de limpar os cremes das máscaras que foi construindo para se disfarçar. O neoliberalismo é o capitalismo puro e duro do século XVIII, mais uma vez convencido da sua eternidade, e convencido de que pode permitir ao capital todas as liberdades, incluindo as que matam as liberdades dos que vivem do rendimento do seu trabalho. O neoliberalismo é o capitalismo na sua essência de sistema assente na exploração do trabalho assalariado, na maximização do lucro, no agravamento das desigualdades. O neoliberalismo é a expressão ideológica da hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, hegemonia construída e consolidada com base na acção do estado capitalista, que é hoje, visivelmente, a ditadura do grande capital financeiro. É o neoliberalismo que informa a política de globalização neoliberal, apostada na imposição de um mercado único de capitais à escala mundial, assente na liberdade absoluta da circulação de capitais, que conduziu à supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo e à criação de um mercado mundial da força de trabalho, que trouxe consigo um aumento enorme do exército de reserva de mão-de-obra.

● O processo de globalização financeira assume, indubitavelmente, uma importância fundamental no quadro da política de globalização neoliberal, apoiada no princípio da liberdade de circulação do capital, pedra angular do mercado único de capital à escala mundial, no seio do qual os especuladores colocam o seu dinheiro e pedem dinheiro emprestado em qualquer parte do mundo. A “subversão” resultante da hegemonia do capital financeiro traduziu-se no enorme desvio de recursos disponíveis das atividades produtivas para atividades especulativas, que se traduzem na criação e destruição contínuas de capital fictício nos mercados financeiros. Ao contrário do que dizem os modelos, a nova ordem neoliberal resultante do Consenso de Washington veio aumentar os custos de funcionamento da economia real, na medida em que consagrou a especulação como a atividade-rainha do grande capital financeiro, desviando para os jogos de casino uma boa parte da riqueza gerada nas atividades produtivas. As empresas não-financeiras tornaram-se cada vez mais dependentes dos financiamentos concedidos pelas instituições financeiras, as quais, nas condições criadas pela desregulação do setor, conseguem ganhos enormes, nomeadamente em operações especulativas a curto prazo. E esta “vantagem” permite-lhes exigir taxas de juro reais consideravelmente elevadas (para poderem “concorrer” com os ganhos da especulação). Por razões várias, mas também porque, em boa parte, os estados dependem dos bancos privados para financiarem as políticas públicas (graças à invenção do dogma da independência dos bancos centrais), o capital financeiro adquiriu um enorme poder político, que usa para definir “regras do jogo” que lhe permitem a “obtenção de rendimentos não como recompensa por se ter criado riqueza mas por açambarcamento de uma fatia excessiva de riqueza que não se produziu.” O grande capital financeiro passou a viver de rendas, porque “aprendeu a extrair dinheiro dos outros com métodos que esses outros mal conhecem.” É a este respeito que Stiglitz fala das práticas de rent-seeking, atividades que visam “moldar as leis e as regulações” em benefício dos 1% do topo, atividades “através das quais o atual processo político ajuda os ricos a expensas do resto da sociedade.” Esta a origem e a essência da economia de casino, divorciada da economia real e da vida das pessoas comuns: o montante das transações financeiras internacionais é dezenas de vezes superior ao valor do comércio mundial; milhões e milhões de dólares circulam diariamente no mercado cambial único em busca de lucro fácil e imediato; os grandes especuladores acumulam enormes ganhos de capital; mas a especulação generalizada acentuou a instabilidade e a incerteza, o que também contribui para o agravamento dos custos de funcionamento da economia real. Fica claro o significado último da tão falada financeirização da economia. E fica claro também porque é que o fenómeno descrito, para além de acentuar a supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo, veio facilitar o contágio dos riscos entre os vários componentes do mesmo grupo, propiciando a convergência e a acumulação do risco em um núcleo mais restrito de centros de decisão. Se uma destas entidades entra em colapso, a doença pode transformar-se rapidamente em pandemia à escala global. Nisto consiste o risco sistémico, o risco de desmoronamento do sistema financeiro à escala mundial (o risco de desmoronamento iminente de um verdadeiro castelo de cartas). À escala global, o resultado é o que seria de esperar: grande instabilidade das taxas de juro e das taxas de câmbio, turbulência nas bolsas de valores e nos mercados de câmbios, crises recorrentes nas economias de vários países. O capitalismo sem crises deu lugar ao capitalismo de casino, ao capitalismo do risco sistémico, ao capitalismo sem risco e sem falências para os bancos, ao capitalismo assente no crime sistémico.

● A Grande Depressão de 1929-1933 foi precedida de um período caraterizado por intensa atividade especulativa liderada pelo grande capital financeiro e por uma enorme desigualdade. Isto mesmo está a acontecer agora. Desde meados dos anos 1980, os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Entre 2000 e 2007, os 1% do topo arrecadaram 75% da riqueza criada nos EUA. Em 2007, a elite dos mais ricos (0,1%) tinha um rendimento 220 superior à média dos 90% da base. A desigualdade na distribuição do rendimento é um dos fatores que mais favorece a especulação. E também por esta via as desigualdades sociais potenciam a ocorrência de crises, porque, ao longo da história do capitalismo, a especulação financeira tem sempre gerado crises. Tomando como ponto de partida o crash da bolsa de Nova York em 1967, as economias capitalistas sofreram, a partir dos anos 1970, mais crises do que em qualquer outro período. A desregulação acelerada a partir dos anos 1980 gerou mais de cem crises em todo o mundo. E esta sucessão de crises nas últimas décadas, foi um claro anúncio da crise atual, iniciada nos EUA em 2008-2009, que se vem apresentando como uma crise estrutural do capitalismo, neste tempo de domínio do capital financeiro. O ritmo das crises acentuou-se a partir dos anos 1980: a crise dos países em desenvolvimento em 1982; a crise dos mercados de ações nos EUA em 1987; a crise (também nos EUA) dos mercados de obrigações de alto risco e das caixas económicas (savings and loans), em 1989/1990; a crise bancária dos países escandinavos no início da década de 1990; a crise no Japão, ao longo desta década; a crise do Sistema Monetário Europeu, em 1992/93; em 1994, nova crise no mercado obrigacionista americano; ainda em 1994/1995, a crise do peso mexicano; a crise das moedas asiáticas em 1997/98; a crise do rublo em 1998/99; o chamado e-crash, a crise (2000-2002) que afetou a chamada “nova economia” (a economia das novas tecnologias: biotecnologia, informática, computação, telecomunicações), particularmente nos EUA e na Europa; a crise do real brasileiro em 1999; a grave crise financeira, económica, política e social da Argentina (2001/2002), por muitos considerada o maior desastre das receitas neoliberais impostas pelo FMI enquanto “gestor de negócios” do grande capital financeiro internacional. A crise que teve o peso mexicano como protagonista foi a primeira grande crise dos mercados globalizados, e fez tremer o sistema financeiro dos EUA e, por reflexo, o sistema financeiro de todo o mundo capitalista. No rescaldo da crise, Michel Camdessus (então Diretor-Geral do FMI) não hesitou em afirmar, sem qualquer cerimónia, que “o mundo está nas mãos destes tipos”; o Primeiro-Ministro britânico comentou que o jogo dos especuladores assume “dimensões que o colocam fora de qualquer controlo dos governos e das instituições internacionais”; mas o Presidente francês Jacques Chirac foi o mais radical: os especuladores são a “a aids da economia mundial”. Apesar deste alarme dos criadores perante as suas próprias criaturas, a verdade é que nada se fez para mudar as raízes do mal.

● O capital financeiro descobriu a “arte” de se apropriar de uma parte (relevante e crescente) da mais-valia global (recorrendo à terminologia marxista). Em resultado desta “descoberta” têm-se agudizado as dificuldades do capital na realização da mais-valia, nos setores produtivos, arrastando consigo a tendência para a baixa da taxa de lucro, que a crise de 1973-1975 evidenciara. Como é sabido, esta tendência só pode ser contrariada à custa de políticas que reduzam os salários e os direitos dos trabalhadores, enquanto for social e politicamente possível aumentar a sua exploração para assegurar a mais-valia (de onde sai o lucro, que é o combustível que faz andar a máquina capitalista). E estas políticas sistemáticas têm-se traduzido na deslocalização das atividades produtivas industriais para países de mão-de-obra barata e sem direitos, em ataques ao movimento sindical e à contratação coletiva, na redução dos salários e na precarização do emprego, na redução dos custos da mão-de-obra, na diminuição do poder de compra dos salários e da parte dos salários no rendimento global. Todos sabemos, porém, que estas políticas potenciam a ocorrência de crises. Num artigo publicado em L’Express em finais de 2011, até o insuspeito Jacques Attali vem reconhecer que “esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado”. Só que a importância do “enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado” como elemento potenciador de crises de sobreprodução é de há muito conhecida. Marx esclareceu esta questão. E Keynes, à sua maneira, deixou claro que as enormes desigualdades de rendimento não favoreciam o crescimento económico, antes provocariam a insuficiência da procura efetiva, que ele considerava a causa das crises cíclicas próprias do capitalismo. Partilhando certamente o ponto de vista de Hayek, segundo o “o problema do desemprego é um problema de salários”, o neoliberalismo assumiu que a baixa dos salários reais é o elemento indispensável para tornar atrativa a contratação de trabalhadores desempregados (tese cuja validade ninguém demonstrou até hoje) e vem trabalhando no sentido de ‘libertar’ o mercado de trabalho das ‘imperfeições’ que o descaraterizariam (contratação coletiva, salário mínimo garantido, proteção legal contra os despedimentos sem justa causa, subsídio de desemprego, enfim tudo o que decorre do estado social). Ao mesmo tempo, a atuação do estado capitalista centrou-se no objetivo de garantir ao capital a parte de leão dos enormes ganhos de produtividade das últimas décadas, deixando os trabalhadores de fora da partilha. O dogma neoliberal foi cumprido. Mas o mundo não ficou mais próspero nem mais feliz com o agravamento da exploração e com o empobrecimento relativo (e mesmo absoluto) da grande massa dos trabalhadores, mesmo nos chamados ‘países ricos’. Estudos referentes aos EUA indicam que, nos últimos trinta anos, as crises do capitalismo têm-se caraterizado por uma enorme dificuldade em retomar o crescimento do emprego: a economia começa a crescer, mas o desemprego mantém-se, a níveis elevados. Isto significa que, não recuperando o seu posto de trabalho, os trabalhadores não recebem o seu salário e não dispõem de rendimentos para comprar as mercadorias que o sistema produz para vender. E dizem também que os novos postos de trabalho criados no setor dos serviços oferecem, na sua maioria, salários bastante mais baixos do que os praticados anteriormente na indústria. Aqui pode radicar um fator estrutural gerador da baixa dos salários reais na sociedade americana, potenciando a ocorrência de crises cíclicas, cada vez mais difíceis de ultrapassar, no que se refere ao desemprego, dada a redução das atividades produtivas na indústria: é mais difícil criar novos postos de trabalho e os que existem oferecem salários mais baixos. Em finais de 2007, alguém tão insuspeito como Alan Greenspan reconhecia que “a parte dos salários no rendimento nacional nos EUA e em outros países desenvolvidos atingiu um nível excepcionalmente baixo segundo os padrões históricos, ao invés da produtividade, que vem crescendo sem cessar.” E um documento de trabalho apresentado numa reunião do Banco de Pagamentos Internacionais (julho/2010) chama a atenção para o facto de faz uma longa análise crítica deste mesmo fenómeno (“que não tem precedentes nos últimos 45 anos”): “a parte dos lucros ser hoje invulgarmente elevada, e a parte dos salários invulgarmente baixa.” No Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza, o Parlamento Europeu aprovou um Relatório onde se diz que, em 2010, cerca de 85 milhões de cidadãos da UE são afetados por situações de pobreza e de exclusão social (incluindo 19 milhões de crianças) e que mais de 19 milhões de trabalhadores europeus são considerados pobres. Até The Economist foi forçado a aceitar que “a desigualdade chegou a um nível que pode ser ineficiente e má para o crescimento.” Na verdade, ao reduzir os salários, o capital aumenta a sua taxa de mais-valia (em termos absolutos e relativos), mas reduz também o poder de compra dos trabalhadores, colocando em risco a realização da mais-valia (as crises de sobreprodução inerentes ao capitalismo são, precisamente, crises de realização da mais-valia). E as crises são ‘necessárias’ para interromper o processo de acumulação do capital e ‘destruir’ o capital em excesso (equipamentos, edifícios, recursos materiais, conhecimento, trabalhadores ‘condenados’ ao desemprego em massa). Foi o que aconteceu, mais uma vez.

● Durante as décadas de 1980 e 1990, recorreu-se à chamada economia do crédito, usando-se e abusando-se dos mecanismos do crédito ao consumo e de outras modalidades de crédito pessoal para ‘viciar’ as pessoas e as famílias a gastar o que tinham e o que não tinham, acreditando-se talvez – ainda que sem qualquer base séria – que tal expediente poderia compensar os resultados das políticas orientadas para a redução do poder de compra dos trabalhadores. Esta prática acentuou-se, nos EUA, a partir dos anos 2000: o crédito fácil e barato às famílias (em especial o crédito garantido por hipotecas) constituiu o expediente utilizado para contornar os efeitos negativos da baixa dos salários reais sobre o consumo agregado, conseguindo mesmo assegurar um certo aumento do consumo. Enquanto a crise não rebentou, uma taxa de crescimento do PIB algo superior à registada na UE (onde alguns países recorreram a idêntico estratagema) conseguiu disfarçar os efeitos depressivos estruturais daquele fenómeno da baixa dos salários reais. O ambiente especulativo levou com frequência à concessão de crédito a quem não tinha capacidade financeira para pagar os respetivos encargos e a quem comprava as habitações apenas com fins especulativos (ganhar, a curto prazo, com a valorização dos imóveis). Mas estes créditos, pretensamente garantidos por hipotecas pouco ou nada fiáveis, eram sistematicamente utilizados na titularização, i.é, na ‘produção’ de novos títulos obrigacionistas destinados ao ‘mercado’ da especulação. Nos dez anos posteriores a 2000, o montante dos créditos titularizados multiplicou por cem, constituindo a titularização o instrumento de engenharia financeira que alimentou o aumento artificial do (falso) poder de compra das famílias. A expansão descontrolada dos empréstimos subprime mostra que o capital financeiro não hesitou em transformar a vida das pessoas numa fonte direta de lucro, subordinando o direito social à habitação ao seu propósito de obter lucros a qualquer preço. Como sublinha Joseph Stiglitz, a prática do subprime foi um fruto da “depravação moral” dos banqueiros. Sabendo que “uma pessoa pobre pode ter muito pouco, mas existem tantos pobres que um pouco de cada um equivale a muito”, fizeram do subprime “a forma de rent-seeking mais escandalosa”, servindo apenas o objetivo de “explorar os mais pobres e os menos educados e mal informados”, obtendo deles somas elevadíssimas, “saqueando estes grupos com empréstimos predatórios e práticas abusivas em cartões de crédito.” O escândalo foi de tal ordem que, já em 2004, o próprio FBI chamava a atenção, publicamente, para o que designava “uma epidemia de fraudes hipotecárias”. As entidades reguladoras fizeram de conta que não viam nada e a Administração de George W. Bush não só não fez nada como deu a entender, com suficiente clareza, que nada faria: “A razão é óbvia”, escreve Stiglitz: “o setor financeiro usou o poder político para garantir que o estado deixasse prosseguir impunemente estas práticas criminosas, fruto da sua “depravação moral” e da “depravação moral” dos titulares do poder político que se deixaram subornar. O risco afetou rapidamente não só os bancos mas também as companhias de seguros que tinham feito o seguro (e até o resseguro) dos créditos concedidos, bem como os fundos de investimento controlados por aqueles, cujas dificuldades aumentaram porque o valor de mercado dos prédios hipotecados foi baixando progressiva e acentuadamente (entre 5% e 10% em 2007; em maior escala ainda em 2008), por excesso de oferta e baixa da procura. Quando os produtos financeiros derivados resultantes da titularização dos créditos hipotecários, embora teoricamente negociáveis, deixaram de ser negociados na prática, porque ninguém os queria, chegou-se ao fim do caminho: a banca do ‘casino’ ficou sem fundos; as famílias estavam mais endividadas (muitas perderam as casas) e as taxas de poupança baixaram dramaticamente. Para quem não esquece as lições da História, era inevitável que a crise chegasse, porque as crises são inerentes ao capitalismo, porque as políticas de arrocho salarial e a especulação desenfreada anunciavam isso mesmo, porque os abalos das várias crises que entretanto ocorreram faziam esperar um ‘terramoto’ de maiores dimensões. Como todos sabemos, o carnaval acaba sempre em quarta-feira de cinzas… Por pressão do capital financeiro, o estado capitalista, fiel aos dogmas do neoliberalismo, concedeu todas as liberdades à especulação. Quando o ‘negócio’ faliu, foi chamado para salvar os especuladores, tendo respondido à chamada com toda a solicitude e determinação, convocando o povo para pagar a fatura. Invocando o risco sistémico (que até então ignorara), a Administração de G.W. Bush, que sempre considerou a ‘intervenção’ do estado na economia como um dos sinais da existência do império do mal, protagonizou a mais dispendiosa operação.

FONTE: Conversa Afiada.