“A sede de ouro, a ambição de domínio ou o caráter despótico dos que anelavam por um vasto teatro para nele representarem suas cenas, por vezes mais bárbaras que as dos próprios selvagens, atraíam então ao Brasil, com algumas exceções, os colonos, donatários, governadores, capitães generais e vice-reis. Conferia-se quase sempre (cremos que mais por ignorância do que por cálculo) a execução da lei, no interior, a homens brutais ou sanguinários que, arvorados da autoridade de capitão-mor, decidiam a seu livre arbítrio da vida de honestos cidadãos, de virtuosos pais de família, que caíam em seu desagrado” (Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto Lisboa, Opúsculo Humanitário, 1853).
Afora a questão da soberania, para o fio condutor de toda nação independente poucos assuntos são mais importantes do que a organização política nacional. Não se trata, especificamente aqui, das formas de governo, que, de Platão a Montesquieu, ocupam largo espaço na teoria política. Trata-se do sistema político, algo ainda mais estruturante. Ele diz respeito à forma como o poder é disposto na definição do país.
Na história moderna, três são os principais sistemas políticos: unitarismo, federalismo e confederação. Suas diferenças residem no grau de centralização e descentralização. O unitarismo corresponde à forte centralização num núcleo específico de poder que responde por toda a nação; o federalismo, à maior distribuição de poder a entidades subnacionais como estados ou províncias, dentro de uma estrutura nacional unificada a partir de uma capital; e a confederação, a um agrupamento de entidades independentes, mas convergentes. Não custa dizer que jamais existiu um sistema absolutamente centralizado ou absolutamente descentralizado, pois os extremos inviabilizariam qualquer organização nacional.
Nas monarquias, essa discussão é, em geral, inexistente, pois o sistema político do país é definido de antemão pela combinação de centralização na Coroa e descentralização no Parlamento e nos distritos eleitorais. No Brasil, pouco antes da Proclamação da República, Joaquim Nabuco chegou a levantar a bandeira da “monarquia federativa”, que combinaria a centralização do poder na Coroa, com ampla distribuição de encargos e responsabilidades governamentais e administrativas às províncias. Porém a ideia não se efetivou, pois as paixões e os interesses dominantes dirigiam-se à república. São nas repúblicas onde essa discussão encontra terreno fértil, pois o sistema político é a priori incerto, por não haver um centro estabelecido de uma vez por todas.
Os Estados Unidos da América (EUA), primeira grande república moderna, encontrou-se às voltas com a distribuição interna do poder quando da sua formação. Os EUA eram, no início, uma confederação de 13 países, as antigas 13 colônias britânicas. No entanto, muitos dos Pais Fundadores acalentavam o projeto de estabelecer um governo nacional centralizado, em Washington, para transformar a confederação em federação. Sem um Poder Executivo forte, pensavam eles, os EUA não teriam como criar um centro de força para se proteger econômica e militarmente das investidas estrangeiras.
Os Artigos Federalistas, clássico do pensamento político, mostram o debate em torno da engenharia institucional adequada para conciliar, com o máximo possível de estabilidade, os interesses nacionais unificados do novo país com a diversidade de desígnios das elites locais. A solução alcançada foi a criação do Legislativo bicameral, dividido em Câmara e Senado, cabendo ao Senado, como na Antiga Roma, de quem os estadunidenses retiraram a inspiração para muitas das suas instituições, a responsabilidade por equilibrar o poder nacional do Executivo com a pluralidade de poderes locais, que se fariam representar proporcionalmente no Legislativo. A federação estaria salva em prol dos interesses conservadores, afastando o risco de um cesarismo presidencial ou de um populismo parlamentar que permitissem mudanças rápidas e bruscas nas estruturas de poder.
No Brasil, a República instaurou, desde o início, o modelo federalista, de clara inspiração estadunidense. A Constituição de 1891 outorgava aos estados o direito de estabelecer suas próprias presidências e constituições. A Política dos Governadores, implantada por Campos Salles, em 1898, para garantir o apoio dos dirigentes estaduais à Presidência da República, institucionalizou o fenômeno do coronelismo e oficializou o mandonismo local.
Não foram poucos os nacionalistas, como Alberto Torres e Oliveira Vianna, que se insurgiram contra essa nova ordem, vendo-a, acertadamente, como um grande acordo de feudalização do Estado, colocá-lo a serviço de interesses locais, mormente associado a interesses externos, em detrimento dos interesses nacionais.
Diferentemente dos EUA, que se formaram, desde a colonização, pela relativa descentralização do poder e para o qual o federalismo era uma solução orgânica, o Brasil, formado em bases administrativas centralizadas desde o Governo-Geral, poderia ser ameaçado pela permanência do federalismo.
Sem jamais renunciar oficialmente ao federalismo, a história da república brasileira apresenta um padrão de alternância entre centralização e descentralização, que Golbery do Couto e Silva chamou de sístole-diástole. Os momentos de sístole correspondem aos governos executivos fortes, que se sobrepõem aos estados para ditar políticas nacionais, e são intercalados aos momentos de diástole, de descentralização do poder e de prevalência dos interesses locais nos âmbitos parlamentares.
A maior parte da Primeira República, a Nova República de 1946–1964 e a Novíssima República instaurada em 1985 são exemplos de momentos diastólicos, enquanto a ditadura de Floriano Peixoto, o Estado Novo e a ditadura militar de 1964–1985 são os exemplos sistólicos.
Porém, como todos sabem, o Brasil não é para amadores. O arranjo federativo consagrado na Constituição de 1988 difere enormemente daquele de 1891, pois, enquanto 1988 enfraquece os estados e fortalece os municípios como entes federativos, o de 1891 fortalecia sobretudo os estados. A Primeira República, conquanto liberal no plano federal, viu o florescimento de experiências não liberais no âmbito estadual, sendo o caso mais conspícuo o castilhismo gaúcho, que antecipou, no Rio Grande do Sul, a obra social modernizadora da Era Vargas.
A Novíssima República impede que algo do tipo aconteça, pois enfraquece tributariamente os estados, que também tiveram sua autonomia financeira gravemente prejudicada com a privatização dos bancos estaduais, na década de 1990, mas abre espaço para a multiplicação de municípios e propicia a criação de experiências municipais não menos interessantes, como os orçamentos participativos, pioneiros também no Rio Grande do Sul, mais especificamente em Porto Alegre, e as moedas sociais.
A municipalização do federalismo brasileiro, que não encontra paralelo em outras repúblicas, sequer nos Estados Unidos, onde os estados continuam sendo o locus de gestão das principais políticas civis, encontra respaldo em várias correntes políticas. À direita, valoriza-se a ideia de descentralização em si, como antídoto aos que ela considera excessos centralizadores e burocratizantes das máquinas federais robustecidas. À esquerda, enaltece-se a autogestão comunitária das questões locais como uma escola de participação democrática.
Ambos parecem concordar com o sofisma de Hélio Beltrão, ministro do Planejamento do governo Figueiredo (1979–1985), de que todos moram no município, mas ninguém mora no governo federal. A afirmação é ilógica pois compara dois entes de natureza distinta, um ente federativo (município) e um ente administrativo (governo federal). Obviamente ninguém mora no governo federal, mas todos moram na União brasileira, assim como moram em municípios; igualmente, ninguém mora na prefeitura.
Sem negar os avanços e benefícios do municipalismo, deve-se reconhecer que as políticas municipais possuem alcance limitado, ainda mais no caso brasileiro em que muitos municípios consomem toda a sua arrecadação na simples manutenção da sua estrutura administrativa. Orçamentos participativos e moedas sociais são interessantes, mas políticas industriais e arrojadas políticas educacionais, tão necessárias, necessitam de entes federativos maiores, com maior capacidade burocrática e logística para tornar realidade os melhores projetos.
É preciso pensar que o Brasil é um país continental, e, portanto, que precisa de um pacto federativo que permita a entes federativos maiores que os municípios serem coparticipantes de estratégias nacionais de desenvolvimento, sem prejuízo da capacidade ordenadora da União. O dilema entre centralismo e federalismo, comum nos debates políticos de um século atrás, é totalmente dispensável hoje em dia, pois a história nos proporcionou meios e soluções para evitá-lo.
Pode-se e deve-se fortalecer a União, os estados e os municípios ao mesmo tempo, dentro de ordem federativa que contemple a diversidade de realidades internas e mantenha todas elas unidas dentro da comunidade nacional de sentimento e de destino. O enfraquecimento tributário e administrativo dos estados privou a União de importantes parceiros para um projeto nacional de desenvolvimento. Essa é uma situação precisa ser revista.
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado
Fonte: Monitor Mercantil