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Brasil em tempo de crise – A governança colonial

Data da publicação: 12/07/2023

Portugal atingiu o ápice de seu desenvolvimento, com as tecnologias marítimas, no século 15, criadas pela sinergia entre o Estado e as forças capitalistas privadas emergentes, dentro de um modelo que, hoje, seria chamado, com toda justiça, desenvolvimentista, pois situou Portugal na vanguarda tecnológica mundial e permitiu ao pequeno país ibérico transformar-se em pioneiro império marítimo.

Em 1385, D. João I dá início à Dinastia dos Avis. Seus sucessores, Duarte, Afonso e João II, pelo século XV, empreendem a conquista da África: Ceuta (1415), Madeira (1419), Açores (1431), Bojador (1434), Serra Leoa e Golfo da Guiné (1482), Angola (1485) e Cabo da Boa Esperança (1487). Em 20 de maio de 1498, Vasco da Gama chega à Índia.

No século 16, se dá a descoberta do Brasil. Todavia, Portugal não conseguiu fazer do saber naval uma conquista econômica. O enigmático desaparecimento de Dom Sebastião, em 1578, sem deixar herdeiros, não apenas encerrou a Dinastia de Avis, como fez desmoronar a intrepidez lusitana, abrindo espaço para a lamúria sebastianista, que tomou conta do Império e combaliu seu ânimo. A incorporação à Coroa espanhola, em 1580, viria a liquidar Portugal como nação independente, condição à qual voltaria em 1640 sob os Bragança, dinastia estreitamente vinculada aos interesses comerciais e financeiros britânicos, antagônicos aos de Portugal.

Em um contexto de crise econômica, que precedeu à crise civilizatória pós-sebastiana, a manutenção de colônias, feitorias e fortificações, onde se deram as descobertas, era extremamente onerosa. A Inquisição, que ganha impulso nos anos 1500, mais custará do que renderá ao Império, como magnificamente descreve Alexandre Herculano (História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, 1864):

A malevolência que resfolegava tremenda acendia-se pelo acréscimo da população hebraica. Procedia este acréscimo da migração gradual de muitos judeus mais opulentos, que insensivelmente iam chegando de Castela, onde a perseguição já naquela época havia começado, e que vinham ajudar seus correligionários a acabarem de apoderar-se das rendas públicas e do meneio da indústria e comércio. Essa malevolência crescente não ardia só no ânimo da plebe; existia entre o clero e entre indivíduos acima do vulgo.

O poder que o ouro dá é como todos os poderes: tende sempre a abusar e abusa, quando as resistências são tênues ou nulas

Durante os primeiros 30 anos da colonização, a única grande atividade econômica desenvolvida foi a exploração do pau-brasil. A presença portuguesa concentrava-se em feitorias, localizadas no litoral. Em 1530, o comércio com a Índia entrava em declínio e as terras dos portugueses, na América, estavam ameaçadas por franceses e outros povos europeus, que invadiam com frequência o território, aliando-se com nações indígenas.
Portugal percebeu que era necessário ampliar os esforços de colonização do Brasil, caso contrário correria o risco de perder aquelas terras. Portugal privatizou a descoberta com as Capitanias Hereditárias, protótipo das atuais “Parcerias Público-Privadas”, disfarces da transferência da gestão do patrimônio público aos “amigos do rei”.

Assim, em vez de a Coroa financiar o processo de colonização, passava o ônus para terceiros. Para isso, o rei português dividiu o território em 15 lotes, que foram distribuídos em 14 capitanias diferentes, cuja administração ficou sob a responsabilidade dos capitães-donatários.

De norte para sul, foram estas as capitanias e donatários:

Capitanias                                                  Donatários
Maranhão (lote 1)                     Aires da Cunha e João de Barros
Maranhão (lote 2)                     Fernando Álvares de Andrade
Ceará                                            Antônio Cardoso de Barros
Rio Grande                                  Aires da Cunha e João de Barros
Itamaracá                                     Pero Lopes de Sousa
Pernambuco                                 Duarte Coelho
Baía de Todos os Santos            Francisco Pereira Coutinho
Ilhéus                                            Jorge de Figueiredo Correia
Porto Seguro                                Pedro do Campo Tourinho
Espírito Santo                              Vasco Fernandes Coutinho
São Tomé                                      Pero de Góis da Silveira
São Vincente                                Martim Afonso de Sousa
Santo Amaro                                Pero Lopes de Sousa
Santana                                         Pero Lopes de Sousa

Em geral, os donatários eram comerciantes ou portugueses que pertenciam à pequena nobreza. A responsabilidade de desenvolver a capitania era exclusivamente deles, que recebiam o direito sobre o lote de terra a partir da Carta de Doação. Os direitos e deveres que o donatário deveria cumprir eram fixados na Carta Foral.

Os donatários não tinham a posse da terra, que continuava pertencendo ao rei português. Tinham o direito de fixar-se e administrar a terra da melhor forma possível e transmitir aos descendentes esses direitos. Dentro de sua capitania, o donatário era a maior autoridade administrativa e jurídica e respondia apenas ao rei de Portugal.

Os donatários eram obrigados a investir ou atrair investimentos, criando infraestrutura para garantir o desenvolvimento e a segurança de sua capitania. Além disso, deveriam atrair pessoas para morar em sua capitania, distribuindo terras (sesmarias) e cobrando impostos de quem lá fixasse moradia.

Apenas duas tiveram resultados econômicos expressivos de imediato: Pernambuco prosperou por conta da produção de açúcar nos engenhos, e São Vicente, em virtude da comercialização de índios como escravos.

A Coroa percebeu que era necessário um Governo Geral que respondesse pela colônia e o dotou de estrutura mínima: o governador-geral, o provedor-mor, para as finanças, o ouvidor-mor, para a justiça e segurança pública, e o capitão-mor da costa, para defesa da colônia contra terceiros.

Em 29 de março de 1549, Tomé de Sousa chegou à Bahia, com cerca de 1000 pessoas, com objetivo de construir uma cidade e, com auxílio da Companhia de Jesus, administrar a colônia (ver artigo anterior “A Governança No Sul”).

Temos que a primeira administração do Estado, então Estado Colônia, já estava limitada por teto de gastos e quase inteiramente privatizada. Embora cuidasse do Brasil, limitado pelo Tratado de Tordesilhas, o âmbito de ação dessa administração estava na cidade a ser criada na península, cercada pela Baía de Todos os Santos e pelo Oceano Atlântico, e, podemos admitir, pelos municípios que constituem o Recôncavo Baiano: Cabaceiras do Paraguaçu, Cachoeira, Castro Alves, Conceição do Almeida, Cruz das Almas, Dom Macedo Costa, Governador Mangabeira, Maragogipe, Muniz Ferreira, Muritiba, Nazaré, Santo Amaro, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, São Félix, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Sapeaçu, Saubara e Varzedo, com cerca de 5,2 mil km².

Do ponto de vista da geografia física, o Recôncavo apresenta a vegetação da Mata Atlântica, solo do tipo massapê, de alta fertilidade, com vales e três rios: Paraguaçu, Jaguaripe e Subaé, naturalmente rasos, de boa drenagem e de fertilidade natural acima da média.

A população que para lá se dirigiu, conforme atestou estudo genético realizado em Salvador, em 2008, teve maior contribuição genética da africana (49,2%), seguida pela europeia (36,3 %) e indígena (14,5%). O que se explica por ter sido a capital da colônia até 1763, para onde se dirigiram, naturalmente, maior quantidade de naus trazendo escravos da África.

O porto de Salvador foi o principal do Brasil até que a descoberta de ouro, em Minas Gerais, deslocou para o sudeste a atenção da administração portuguesa e levou a capital da Colônia para o Rio de Janeiro.
Governança colonizada

Portugal não se reergueu após os quase 60 anos de administração dos “Felipes” de Castela; e, até meados da década de 1660, ainda lutou internamente contra os que desejavam ter Portugal como parte da Espanha.

O espírito de aventura e a iniciativa que levaram os lusitanos para o mar não se mantinham na gestão das terras descobertas, onde permaneciam a disputa por privilégios e a vida dos favores do Estado.

Firmaram-se na segunda metade do século 17 duas alianças que serão catastróficas para os reinos ibéricos: a da França com a Espanha e de Portugal com a Inglaterra. Se, até então, os ibéricos se faziam presentes e importantes no mundo, a partir do novo século a disputa será entre França e Inglaterra, e as riquezas ibéricas, em valor material e conquistas tecnológicas, são transferidas para os Impérios francês e inglês.

Como é óbvio, essa situação se desloca também para as colônias. Surgem as revoltas, rebeliões e lutas, quase exclusivamente nas áreas do nordeste e do norte brasileiro, onde se fazia mais presente o poder português. Com o tempo e novos fatores, a economia e a administração se dirigem para o sudeste.

Tem início a guerra dos quilombos, com os Palmares, que atravessará os séculos, os levantes indígenas, dos tupinambás no Pará (1621) e dos cariris, no Ceará e na Paraíba (1692). Também há revoltas como o “Motim do Nosso Pai”, em Pernambuco (1666), contra o governador Jerônimo de Mendonça Furtado, de alcunha “O Xumbergas”.

No Maranhão, em 1685, a Revolta dos Irmãos Beckman, que a Metrópole Portuguesa reagiu, enviando novo Governador, Gomes Freire de Andrade. Ao desembarcar em São Luís, em 15 de maio de 1685, à frente dos efetivos militares portugueses, este oficial não encontrou resistência. Pois, em um ano de revolta, o movimento tivera várias defecções; restaram os descontentes, arrependidos, moderados e os que temiam as mudanças. À chegada de Gomes Freire, Manuel Beckman não se opusera, pois tencionava libertar seu irmão Tomás. Os emissários do novo governante logo tomaram controle da situação. Os mais comprometidos com a revolta deliberaram pela fuga, enquanto Manuel permaneceu e com Jorge de Sampaio receberam a sentença de morte pela forca.

Houve, também, insurreições no sudeste. Em São Paulo (1641), de empresários temerosos com a Restauração da monarquia portuguesa de D. João IV, e que seu comércio com índios pudesse ser interrompido. O personagem que encabeçaria o movimento, Amador Bueno, desistiu e se refugiou no Mosteiro de São Bento. E no Rio de Janeiro, a Revolta da Cachaça (1661), igualmente de empresários, motivados pelo aumento de impostos cobrados aos fabricantes de aguardente.

No século 17 ocorreram as invasões estrangeiras, episódios assinalados como da defesa do Brasil português, diante de outros colonizadores europeus: a França Equinocial Francesa, no Maranhão, em 1612, e a Invasão Holandesa, em Pernambuco, de 1630 a 1654.

Nos séculos 18 e 19, até a chegada da família real ao Brasil, os movimentos contra Portugal e/ou portugueses se espalharam por todo o território brasileiro, mas sem articulação e nem mesmo movidos pelos mesmos ideais. São, exceto ao final do período, resultantes de disputas locais e reivindicações econômicas.

Acreditamos que séculos de pregação religiosa fizeram mais do que um “país eminentemente católico”; criaram um sentimento de aceitação do poder invisível, que se manifestava por representantes, tal o Deus com seus sacerdotes, como um Rei com seus governadores. A presença do Deus tão frágil, tão vulnerável, em 1808, tornou a independência possível (1822). E a inteligência do poder então dominante, as finanças inglesas, este sim, invisível e atuando por banqueiros, colocou a coroa na mesma cabeça dos “Braganças, antes que um aventureiro a tomasse”.

Ao longo de todo o século 18, os muras, povo indígena nômade, dos rios Negro, Madeira e Baixo Purus, combateram portugueses e brasileiros. Os muras atuaram na Cabanagem (1835-1840) durante a Regência de Diogo Antônio Feijó.

Em sequência cronológica ocorreram:

1700, a guerra dos emboabas, em Minas Gerais e São Paulo, envolvendo brasileiros, portugueses e índios, por terras e escravos;

1710, nos atuais estados de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a Revolta do Sal, a partir do Porto de Santos, pela especulação com a distribuição do sal, monopólio da coroa;

ainda em 1710 tem início a Guerra dos Mascates, em Pernambuco, entre canavieiros e comerciantes;

a Revolta do Sal chega a Salvador, em 1711, com os Motins do Maneta;
em 1720 ocorre a Revolta de Felipe dos Santos, em Minas Gerais, que se considera a primeira rebelião de descendentes portugueses contra os representantes da Metrópole;

entre 1751-1757 ocorrem as lutas dos guaranis e jesuítas dos Sete Povos das Missões e as forças armadas de Portugal e da Espanha, em consequência do Tratado de Madri (1750), que estabeleceu os limites territoriais dos reinos ibéricos na região do rio da Prata;

Minas Gerais surge em 1789 com o mais conhecido movimento pró-independência, que nos legou o mártir Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, a Inconfidência Mineira;

seguem-se dois movimentos independentistas: no Rio de Janeiro, em 1794-1795, e, em Salvador, a Revolta dos Alfaiates, em 1798, todos sufocados pela Metrópole.

Em Pernambuco, no século seguinte, em 1801, também na sequência pró-independência, ocorreu a Conspiração dos Suassunas, expressando a insatisfação dos colonos frente às políticas deficientes de Portugal.

Pode-se entender que desde 1789, tomando corpo pelo país, se iniciava o processo de independência, ao qual faltava uma liderança ou ideologia unificadora, mas que a inteligência anglo-lusitana se antecipou no sete de setembro de 1822.

Tivemos muitos mártires, nenhum herói completamente vencedor. Pode-se dizer que a Governança Colonial oriunda do Recôncavo foi triunfante, mantendo a colônia por quatro séculos. E que a Independência do Brasil, no sentido de realização completa das potencialidades nacionais, é fato histórico por acontecer, com ideologia e governança brasileiras.

Felipe Maruf Quintas é doutor em ciência política.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

Fontes:

Monitor Mercantil

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aepet.org.br