Artigo

A quem serve a justiça nacional

Data da publicação: 20/10/2017

Nos times esportivos, os cartolas e os capitães; nas Igrejas, os bispos e os párocos ou pastores; nas empresas, os acionistas e os chefes executivos e assim por diante. Mas há um Poder que conduz a sociedade e que também tem seus executivos. Este Poder pode levar à fome, ao meio da abundância de víveres, fazer irmãos de etnia e fé se odiarem e se combaterem até a morte, provocar a destruição e a guerra. Este Poder foi dos senhores feudais, dos Papas, dos Imperadores. Hoje ele é do sistema financeiro internacional, que abrevio “banca”, muito mais complexo e invisível, mas nem por isso menos perigoso e cruel.

Ele também se apresenta por seus executivos. O Poder já foi representado pelos religiosos, pelas forças armadas, agora é o judiciário quem ministra suas vontades.

Embora voltado para meu maior interesse, a pátria brasileira, este Poder e seu executivo não são jabuticabas. Eles se espalham pelo mundo. Mas só trataremos do Brasil.

Este artigo está dividido em duas partes: a origem e a justiça.

A ORIGEM

A leitura que o grande sociólogo Jessé Souza (JS) faz da obra prima de outro importante analista da sociedade brasileira, Gilberto Freyre (GF), nos guiará para o entendimento da sociedade de classes no Brasil. Refiro-me, especificamente, a “A Elite do Atraso, da escravidão à Lava Jato” (Leya, RJ, 2017) e “Casa-Grande & Senzala, formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal” (Imprensa Oficial, Recife, 14ª edição brasileira, 2 volumes, 1966).

O Brasil foi colonizado por um país de pequena população e território. Portugal continental tem 88.705 km² e, em 1600, beirava um milhão e trezentas mil pessoas. Logo, a simples ocupação para manutenção e defesa do país descoberto – o Brasil, no século XVI, tinha seu espaço definido pelo Tratado de Tordesilhas, a área a leste da linha reta de Marajó (Pará) a Laguna (Santa Catarina) – já seria uma empreitada formidável.

A escravidão negra e o “modo árabe” da convivência foram as escolhas, para o Brasil, pela aristocracia lusa. O denominado “modo árabe”, ou “mouro” ou “maometano”, diz respeito à família poligâmica com a característica peculiar da ligação do filho com o pai pela fé, e daí pelos costumes e rituais; o filho torna-se igual ao pai. Aqui, sobrepõe-se a vontade do patriarca, mas a família poligâmica, além da importância econômica e política, vai gerar os ocupantes de “funções de confiança”, seja para controle dos bens e do trabalho, seja para caça de escravos, seja para outras funções de intermediação e capatazia onde Jessé Souza vê a “genealogia das classes médias entre nós”. E acrescenta: “sua função de capataz da elite é preservada em algumas frações e modernizada ……. (como) a manutenção da distância social em relação aos setores populares”.

Assinalemos que o Império Português, diferentemente dos outros que então existiam e surgiriam, não teve um modelo colonial único, nem mesmo com princípios semelhantes. Isto é muito bem apresentado pelo historiador Charles Boxer, em “O Império Marítimo Português” (Edições 70, Lisboa, 2ª Ed., 2017), e pelo jurista António Manuel Hespanha, “As vésperas do Leviatan” (Almedina, Coimbra, 1994).

Conforme Philip Curtin (The Atlantic slave trade: a census, WUP, Madison, 1969), dez milhões de africanos vieram para as Américas e, praticamente, a metade para o Brasil, até o século XVIII. Fica nítida a desproporção demográfica e a preocupação de implementar um sistema social (político, institucional) infenso às revoltas, capaz de manter submissa aos interesses coloniais toda população local.

“Sociedade que se desenvolveria ……. pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política” (GF, 1º v.). Mas a própria religião se curvaria “à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos (pois) a capela era mera extensão da casa-grande” (JS).

Vemos, pela análise destes brilhantes exegetas, que a sociedade brasileira teve, em seu primórdio, todos os poderes, monocraticamente enfeixados, num só. E este modo de encarar a vida coletiva vai se ajustando à evolução econômica, tecnológica, influências externas, mas estará subjacente ao psicossocial brasileiro.

O passo seguinte, exposto por Jessé Souza, é o familismo. Transcrevo: “a proteção patriarcal é ….. uma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca. (Mas) o familismo tende a instaurar alguma forma de bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes, mas também entre famílias diferentes, criando um sistema complexo de alianças e rivalidades”.

O exclusivismo luso vai gerar no Brasil um componente autárquico, sendo o subsistema “casa-grande/senzala” seu elemento principal. Este sistema “dá conta da singularidade de nossa formação social e cultural” (JS).

“É o sadismo transformado em mandonismo …… que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profundamente brasileira de privatização do público pelos poderosos” (JS).

O século XIX, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, surgirão novas variáveis, sendo, para mim, as mais importantes a urbanização e a transferência da sede do poder nacional do nordeste para o sudeste.

Todavia, além do subsistema casa-grande/senzala, havia “A Colônia em Movimento”, como Sheila de Castro Faria denominou, na publicação, sua tese de doutoramento (Editora Nova Fronteira, RJ, 1998). Eram as pessoas/famílias que construiam um mercado interno – produção, transporte, comercialização e serviços de toda ordem – fora dos ciclos da plantation e, obviamente, dos status referenciados à casa-grande.

Literalmente constituia uma população marginal, que nem por isso deixou de enriquecer, conforme se lê no surpreendente artigo desta mesma historiadora “Mulheres forras – Riqueza e estigma social” (UFF RevistaTempo, nº 9, jul-2000), bem como em obras do excelente historiador João Fragoso (“Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-colonial”, Tese UFF, 1990, e “O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil”, com Manolo Florentino, Diadorim, RJ, 1993).

Certamente meu atilado leitor já percebeu que a independência do Brasil teve menor repercussão na sociedade nacional do que a vinda de D. João VI. Como analisara Gustavo Barroso, muito antes de deixar de ser, formalmente, uma colônia portuguesa, o Brasil já era uma colônia britânica e só se livraria desta, já avançado o século XX, para o ser dos Estados Unidos da América (EUA) e, atualmente, da “banca”.

Jessé Souza divide o Brasil em quatro grandes classes sociais: a elite dos proprietários, que chamarei, com uma dose de ironia, aristocracia, as frações da classe média, a classe trabalhadora semiqualificada, que melhor seriam designadas: operários e camponeses (trabalhadores da cidade e do campo), e a ralé, que é a sua expressão para o lúmpen.|

A classe média, que formará a quase totalidade do Poder Judiciário, teve origem, como pudemos observar, nos agregados familiares da casa-grande e naquela “colônia em movimento”, esta feliz expressão de Sheila Faria.

Concluo esta parte com mais uma reflexão. Sabemos, e os autores já citados nos dão abundantes lições, que o enriquecimento não constitui, embora seja básico, o único fator para a mudança de classe. Não posso deixar de me referir, a este respeito, ao fundamental Pierre Bourdieu: “A Distinção” (Zouk, RS, 2ª Ed., 2015) e aos estudos reunidos por Sergio Miceli em “A Economia das Trocas Simbólicas” (Perspectiva, SP, 8ª Ed., 2015).

Ao assumir um papel na estrutura de poder, a classe média – por definição, a que está no meio – se posicionará em direção à aristocracia, minoritária em população, ou ao conjunto dos operários, camponeses e lúmpens, amplamente majoritário. Vem daí um primeiro, mesquinho, mas algumas vezes inconsciente impulso: dividir com menos sobra mais, e adere aos interesses de uma classe que não a assimilará, mas que irá sempre comprá-la.

Está aí o suborno que, frente ao espelho, tanta ojeriza – falsa repulsa de quem frauda imposto, suborna e fura fila – aparenta sentir a classe média, em todas as suas frações, principalmente quando algum executivo favorece, com mínimo que seja, o conjunto majoritário. A aristocracia não frauda imposto, apenas não o paga pois seus ganhos são direcionados para paraíso fiscal, e não fura fila, porque tem entrada exclusiva. A aristocracia encontra sempre quem suje as mãos por ela.

A JUSTIÇA

Qual o propósito da justiça, em nossa formação social?

Em primeiro lugar, garantir os privilégios. Quando um aristocrata direciona seu filho para o poder judiciário, não espera ver um notável jurista, mas quem revogue, pela jurisprudência ou pelo arbítrio, um dispositivo legal que o incomode.

Estamos, tão somente, dando sequência à formação, à origem dos componentes majoritários do judiciário, ontem e sempre.
O que significa para o judiciário o mundo competitivo? O que é para o judiciário o Estado Mínimo?

São estas questões que colocam as ações do judiciário, neste Brasil pós golpe de 2016, em contradição com suas próprias origens e poder.

Passemos a analisá-las. Jessé Souza, seguindo Gilberto Freyre, “Sobrados e Mucambos” (José Olympio, RJ, 1951, 3 vol.), considera que, em 1808, o Brasil recebeu, com a corte portuguesa, o “mercado capitalista competitivo e o Estado burocrático centralizado” (JS). Inicia-se a decadência do patriarcado rural e a ascendência da cultura urbana. E, logo, a colonização inglesa.

Merece breve comentário esta nova colonização. A Inglaterra moderna foi construída pelo financismo. Isso não constitui matéria opinativa, mas a leitura da história, desde 1600, quando é criada a Companhia das Índias Orientais. Segue-se a disputa comercial com a Holanda por todo século XVII – lembrar a guerras anglo-holandesas –, a criação do Banco da Inglaterra, os modelos de colonização nos EUA (público e privado) e o uso da dívida (ou financiamento) na revolução industrial. Esta gestão inglesa do poder só encontrará oposição no final do século XIX, com o despontar do industrialismo estadunidense.

No Brasil colonizado pela Inglaterra, por todo restante do século XIX até a Revolução de 1930, prevaleceu sempre a questão da dívida. Dos primeiros atos de D. Pedro I foi enviar emissários a Londres para renegociar a dívida deixada pelo reinado português.
A estreita vinculação da aristocracia rural com o modelo econômico exportador levou nossos mais pretéritos juristas a escolher nesta área sua produção literária. É de 1798, os “Princípios de Direito Mercantil e Leis de Marinha”, de José da Silva Lisboa. E fomos formando bacharéis que se preocupavam com as questões da aristocracia, dos proprietários, quais sejam, as comerciais, as penais, a defesa dos patrimônios, para os quais também se consolidavam as leis civis.

Como irá se manifestar o último presidente na República Velha, “a questão social é caso de polícia”, o que ainda é, muito reservadamente, o pensamento da aristocracia financeira de nossos dias e de seus capitães do mato.

Assim, o poder judiciário foi constituído e se desenvolveu para defesa da minoria da população, que suborna e assalta o próprio Estado. Hoje, após aplicar o golpe, com outros apoios, o judiciário se excede, julgando diferentemente causas iguais, porém com distintos réus.

Ficasse na defesa da aristocracia, seria o judiciário que o Brasil sempre conheceu. Agora, como executivo da banca, atua na consecução dos objetivos daquele sistema. Entre eles está a destruição dos Estados Nacionais.

Mais estranho do que perseguir sua própria extinção – sem Estado não há estrutura jurídica e prevalece a lei da selva – o judiciário evoca uma competitividade de quem é, pela própria natureza, monopolista. Não conheço e peço aos caros leitores que me indiquem uma justiça que seja competitiva com ela mesma; dois tribunais concorrendo pela causa? Você escolhendo um juiz mais barato?

Ao acrescentar a defesa da classe mais favorecida a dos interesses alienígenas, a justiça no Brasil deixa de ser, em primeiro lugar, justiça, e depois, brasileira.

É o que tenho a lamentar.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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