A uma semana do início em Paris da maior conferência internacional sobre o meio-ambiente, duas populações no Brasil, uma de alguns milhões, outra de mais de dez milhões de pessoas, vivem o tormento da falta de água para as necessidades mais elementares do cotidiano. No Espírito Santo, uma avalanche de lama, liberada pelo rompimento das barragens da mineradora Samarco, emporcalhou de tal forma a água do Rio Doce que várias prefeituras tiveram de suspender sua captação para tratamento e abastecimento da rede hídrica dessas cidades. Em São Paulo, o governo do Estado acaba de decretar um rigoroso plano de contingenciamento, para tentar manter sob controle a água ainda disponível para a capital do Estado.
Em ambos os casos, o desastre resulta da aplicação, mais que equivocada, fraudulenta, da ideia do Estado mínimo, do Estado que mais privatiza e do governo que menos governa. Essa ideia, que tanto encanta seus aproveitadores, é atribuída, remotamente, a dois pensadores do século 18, Adam Smith, autor de A Riqueza das Nações e fundador da teoria ainda hoje seguida por quase todos os governos do mundo, segundo a qual a economia de todos os povos deve ser conduzida pela mão invisível do mercado; e Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, que considerava o melhor governo aquele que menos governa.
Só que Jefferson não estava pensando no governo que menos governa a economia, mas num governo que não deveria governar as ideias dos cidadãos, que não deveria censurar ou proibir livros e jornais, que não deveria prender e silenciar seus opositores, que não poderia impor-se pela força nem perpetuar-se pela invocação do direito divino dos reis ou pelas variantes laicas desse absolutismo. Tanto que Jefferson dizia preferir a um governo sem jornais, isto é, sem crítica e oposição, a alternativa de jornais sem governo. E Adam Smith sustentava que a tal mão invisível do mercado teria de ser policiada pelo governo.
No arrastão neoliberal que ainda vivemos, o que tem prevalecido é a impostura dessa falsificação, que se estende também às ideias de Charles Darwin. O que se diz hoje, e passa por ser verdade, porque pouco se discute numa era obscurantista de pensamento único, é que Darwin atribuía exclusivamente à competição o processo civilizatório criador do mundo de nossos dias. Darwin, porém, falava em competição e cooperação.
Os desastres de Mariana e da falta d’água em São Paulo só aconteceram porque uma combinação de má fé de um lado e do outro ingenuidade e desinformação permitiu em Mariana que o governo não se desse conta dos riscos ambientais (e, sobretudo, sociais) das barragens da Samarco e não impusesse à empresa as necessárias medidas de prevenção; e, em São Paulo, promoveu a privatização da Sabesp, a empresa de canalização de água e saneamento do Estado.
Foi do ex-ministro Ciro Gomes, que ocupou também a pasta da Integração Nacional, encarregada de problemas como esse, a explicação mais convincente para a crise da água em São Paulo. Depois de privatizada, a Sabesp passou a dar prioridade ao lucro e aos dividendos dos acionistas, muitos deles estrangeiros e investidores na Bolsa de Nova York. Os investimentos passaram para segundo plano e a Sabesp não realizou as obras que deveria ter realizado para aumentar a captação de água nos reservatórios existentes ou em novos reservatórios. Os lucros da Sabesp passam de 2 bilhões por ano e poderiam financiar esses investimentos, mas aí os dividendos dos acionistas ficariam menores.
Muitas empresas de São Paulo devem estar sofrendo prejuízos com a crise da água e seus donos, se souberem disso, vão amaldiçoar a privatização da Sabesp. Em Minas e no Espírito Santo, igualmente, muitas atividades econômicas pagam o preço do desastre de Mariana. Os executivos da Samarco são obrigados a repetir que a empresa cumpriu todas as exigências legais no caso das barragens, o que não é verdade, porque a direção da empresa já aceitou pagar multas e indenizações bilionárias. Mesmo que estivessem dizendo a verdade, as tais exigências foram insuficientes e deixaram buracos enormes, porque ao longo dos anos o Departamento Nacional de Produção Mineral, ao qual cabe fiscalizar a Samarco, vem sendo sucateado de forma impiedosa em nome da redução de gastos do governo, isto é, da implantação do Estado mínimo.
Estes, o de Mariana e o de São Paulo, são apenas dois exemplos, mas demonstram, indiscutivelmente, que, feitas as contas, o tal Estado mínimo dos neoliberais custa muito mais caro.