Artigo

Empreiteiras cartelizadas: inidôneas ou grandes demais para responder à lei?

Data da publicação: 03/12/2014
Autor(es): Felipe Coutinho

O progresso da operação Lava-Jato, conduzida pela Polícia Federal (PF) sob a responsabilidade da Justiça Federal do Paraná, tem revelado denúncias da atuação cartelizada das empreiteiras para obtenção de contratos superfaturados com a Petrobrás. Sobre o assunto me aprofundei no artigo “O Histórico cerco a Petrobrás e a corrupção” [1]. Neste pretendo abordar as possíveis consequências jurídico criminais e sociais da punição das empreiteiras e de seus sócios controladores, conselheiros de administração e executivos.

Entre as punições previstas em lei em resposta a fraude e consequente subtração de patrimônio público por meio da formação de cartel e da corrupção ativa está a declaração de inidoneidade pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo Milton Gomes da Silva Filho:

“O sistema jurídico pátrio prevê em diversas leis a possibilidade de ser aplicado a um licitante (vencedor ou não do certame licitatório) a penalidade no sentido da sua impossibilidade de participar de licitação pública e, consequentemente, de ser contratado pela Administração Pública, durante o período imposto.” [2]

Ainda segundo Silva Filho:

“Evelise Vieira lembra que não existe um critério científico para diferenciação das mencionadas sanções e seus efeitos, pois “nos diversos diplomas ora é prevista a proibição, ora o impedimento, ora inidoneidade, sem que seja possível atribuir, a cada um destes termos, conteúdo jurídico específico” (VIEIRA, 2012). [2]

Mediante a iminente condenação das empreiteiras com a possível punição das pessoas jurídicas através da declaração de inidoneidade pelo TCU, começam a ter destaque nos meios de comunicação algumas declarações acerca das consequências desta interpretação e aplicação legais. Segundo o ministro Augusto Nardes, indicado pelo Partido Progressista (PP) para o TCU[5] e atual presidente do tribunal:

“O impacto tem que ser avaliado. Na verdade tem muitas grandes empresas. Claro que se transformar todas em inidôneas, boa parte das obras pode não continuar. Nessa situação, acho que cabe ao Executivo propor uma discussão para que a gente possa encontrar o caminho para que as obras não parem. O ideal seria uma repactuação — disse Nardes.” [3]

Ainda segundo Nardes:

“Parar todas as obras, o país praticamente para. Gera desempregos, então temos que ter um cuidado muito grande. Repactuar esses contratos seria o caminho ideal e que nós, TCU, podemos trabalhar nesse sentido. Parar todas as obras teria um impacto muito negativo para a nação brasileira — disse o ministro.” [3]

Outras declarações também repercutem as consequências sociais da condenação por inidoneidade das empreiteiras, reiteradamente destacam o provável desemprego e a interrupção das obras de infraestrutura cuja realização seria de interessa social.

Segundo José Jorge, responsável por conduzir os processos da Petrobrás no TCU até recentemente, ministro aposentado do TCU e ex-ministro das Minas e Energia no governo do PSDB:

“É uma decisão muito grave. São as maiores empresas do País. Antes disso deve haver outro tipo de punição. Puna-se primeiro aqueles dirigentes da empresa que efetivamente participaram deste processo e puna-se também as empresas. Mas, acho que a questão de inidoneidade de empresas dessa dimensão, com tantos contratos, tem que ser muito bem pensada. Senão o resultado pode ser pior do que o que está acontecendo, que é muito grave. Tem que haver bom senso na hora de aplicar uma punição como essa.” [4]

Em contradição com a possível declaração de inidoneidade das empreiteiras pelo TCU estão os “acordos de leniência”. Pelos acordos seria possível conceder vantagens as empreiteiras, seus controladores e executivos em compensação pela contribuição com a investigação e pelo ressarcimento dos recursos desviados da Petrobrás por meio da cartelização, fraude e corrupção ativa. O Observatório da Imprensa avalia criticamente esta alternativa e a postura das empresas de comunicação acerca dela:

“Não se pode ignorar, por exemplo, aparições recentes do presidente do Tribunal de Contas da União, João Augusto Nardes, do ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Todos eles se referem à possibilidade de um “acordo de leniência” com as empreiteiras, mas não se deve perder de vista que isso pode limitar o alcance do processo.” [5]

A operação Lava-Jato, até aqui, tem se diferenciado da atuação histórica do aparato estatal na relação com o empresariado envolvido em corrupção ativa. Os corruptores, sócios controladores, conselheiros de administração e executivos não costumam frequentar o banco dos réus no Brasil, ou quando neles se sentam, não costumam ser condenados. A ordem estabelecida e seus porta-vozes parecem se mobilizar para limitar o alcance da justiça. Ainda segundo o Observatório da Imprensa:

Nardes, indicado pelo Partido Progressista para o TCU, transita pelo noticiário como o ilustre magistrado que defende a repactuação dos contratos sob suspeita, sob a alegação de que, se as empreiteiras forem consideradas inidôneas, suas obras terão que ser interrompidas e “o país será paralisado”.

A preocupação faz sentido, mas, nesta altura dos acontecimentos, com depoimentos e provas suficientes para desmascarar a associação entre partidos e empresas, qualquer sinal de “leniência” por parte das autoridades encarregadas do processo será visto pela sociedade em seu significado estrito, conforme aparece nos dicionários: “excessiva tolerância”. [5]

Os interesses dos empreiteiros parecem encontrar vozes solidárias entre agentes públicos e dos meios empresariais de comunicação. Neste momento podemos prever a falência de algumas das empreiteiras envolvidas mas, se prevalecer a “ordem histórica”, a riqueza privada dos responsáveis será preservada. A falência da pessoa jurídica é alternativa que muitas vezes interessa ao acionista controlador e aos executivos para não arcar com o ressarcimento público dos prejuízos, também para não honrar os direitos trabalhistas, burlar as penalidades legais, assim como para lidar com o desgaste da imagem e da marca das empresas.

Para transformar a “ordem histórica” não se deve interpretar benevolamente a legislação existente, ou simplesmente desviá-la, sob o argumento de prevenir as consequências sociais de sua aplicação. Para prevenir o desemprego, a parada das obras em andamento e o atraso das futuras não é necessário colocar as empreiteiras, seus sócios controladores e executivos acima da lei. Os interesses deste diminuto grupo de pessoas não pode se confundir com o interesse da maioria da população que vive do trabalho honesto e em observância as condutas social e legalmente vigentes.

A solução é aplicar a lei, declarar as empreiteiras comprovadamente envolvidas na cartelização, fraude e corrupção ativa como inidôneas e, para evitar as consequências sociais, expropria-las. Afastar da gestão os responsáveis, sócios controladores e executivos, além de responsabilizá-los criminalmente.

A expropriação das empreiteiras é a solução para garantir a manutenção dos empregos, a continuidade das obras de infraestrutura (com os contratos renegociados ou novos) e o atendimento a demanda por novas obras. A expropriação pode socializar as empreiteiras e coloca-las sob o controle do conjunto dos trabalhadores, organizados sob o regime de cogestão em genuínas cooperativas produtivas. Outra alternativa para a expropriação seria a estatização das empreiteiras, os dois modelos podem ser complementares. Parece evidente a importância social deste setor produtivo para que seja deixado sob o controle exclusivo de poucos empresários cartelizados. É necessário, para preservar o interesse social, que participem deste setor industrial organizações cooperativadas de trabalhadores e estatais sob controle social.

As obras de infraestrutura no Brasil são muito importantes socialmente, como agora repetem empresários do setor e seus porta-vozes, de certo que hipocritamente, por identificar o interesse próprio com o do conjunto da sociedade. São realmente importantes, e exatamente por isso não podem ser deixadas a cargo de uma dúzia de 5/8 empreiteiras, sob a condução de seus executivos superpoderosos. É necessário que sejam criadas empresas autogeridas pelos trabalhadores e estatais para concorrer e garantir que o interesse social se imponha ao privado, promovendo a competição, a transparência, o mérito e a eficiência empresarial.

É necessário declarar inidôneas não apenas as empreiteiras mas também seus sócios controladores e executivos, como pessoas físicas. Disserta Silva Filho em “Declaração de inidoneidade do licitante fraudador pelo TCU, alcance do sócio administrador”:

“As leis nacionais que regulam o certame licitatório preveem várias sanções administrativas aplicáveis aos licitantes que cometem irregularidades na licitação e nos contratos públicos, entre elas – a mais grave – a declaração de inidoneidade para participar de licitação ou ser contratado pela Administração Pública.” [2]

Ainda segundo Silva Filho:

“Ocorre que tem acontecido de sócios administradores de uma pessoa jurídica declarada inidônea virem a celebrar novo contrato com a Administração Pública como sócios ou administradores de outra pessoa jurídica que não sofreu essa restrição, ora com pessoas jurídicas criadas após a aplicação da penalidade à outra empresa, ora utilizando-se empresas já existentes. Tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário e o próprio TCU, em sua função de controle externo, são chamados a darem uma solução adequada a essa situação.” [2]

Na dissertação Silva Filho demonstra que existe base legal para que o TCU declare inidôneas não somente as empresas condenadas, mas também os sócios controladores responsáveis. Todavia destaca que ainda não é essa a prática acatada pelos ministros da Corte. Caberia então a sociedade civil organizada pressionar o TCU, a Controladoria Geral da União (CGU) e a Procuradoria Geral da República (PGR) para 6/8 que a punição legal seja efetiva e recaia sobre os agentes da formação de cartel, fraude e corrupção ativa.

“O TCU, ao enfrentar tais situações, tem se utilizado das mesmas soluções que vinha aplicando, isto é, análise de cada caso concreto e, caso procedente, utilização da disregard doctrine. Em algumas situações, tentou-se emplacar a tese de que, no caso de fraude à licitação ou abuso da personalidade jurídica, era possível entender que o verdadeiro licitante era o sócio administrador que agiu com dolo ou culpa nesse sentido, podendo ser alcançado diretamente na sanção de declaração de inidoneidade prevista na própria lei orgânica dessa Corte de Contas. Entretanto, esse argumento não foi, até o momento, acatado pelos ministros do TCU.

Buscou-se, então, demonstrar no presente trabalho os argumentos jurídicos que sustentam essa tese, além das vantagens de cunho prático (operacional) dela advinda, ao permitir que os órgãos da Administração possam facilmente detectar, na realização de um certame licitatório, quais pessoas físicas estão impedidas de, como sócio de pessoa jurídica, participar em licitação pública ou ser contratada. Esse entendimento parte do pressuposto que, se a pessoa física foi desleal com a Administração Pública ao fraudar uma licitação da qual participou como sócio administrador de empresa, não deve se colocar desnecessariamente em posição de vulnerabilidade a voltar permitir que durante a vigência da penalidade qualquer pessoa jurídica que tenha como sócio essa pessoa física participe de licitação pública ou por ela seja contratada.” [2]

Caso confirmado que houve formação de cartel, fraude e corrupção ativa para a obtenção de contratos superfaturados entre as empreiteiras e a Petrobrás, é necessário, 7/8 mas não suficiente, garantir o ressarcimento dos prejuízos à estatal. Contudo, se limitar ao ressarcimento é incentivar a prática da corrupção ativa, já que apenas nos casos onde são reveladas haveria a recuperação dos recursos, para os demais os superlucros estariam garantidos. É preciso punir as empreiteiras envolvidas e os responsáveis (sócios controladores e executivos). A declaração de inidoneidade pelo TCU é possível, mas depende da pressão social para que seja aplicada, por não ser prática usual na referida Corte.

Importante ressaltar que os ministros do TCU são nomeados por indicação de partidos políticos que são financiados, em grande medida, pelas empreiteiras. Segundo Herbert Teixeira:

“Como setor, as empreiteiras têm a maior presença entre os 10 maiores doadores e resultou numa bancada com 214 deputados de 23 partidos defendendo seus interesses.” [7]

Cabe a sociedade civil organizada defender o patrimônio público e a Petrobrás, exigir que a corrupção seja enfrentada eficientemente. Demandar a punição efetiva e exemplar dos agentes ativos da corrupção, não apenas as empreiteiras cartelizadas mas também seus sócios controladores e executivos.

A solução proposta demanda a expropriação das empreiteiras condenadas para evitar as consequências sociais da declaração de inidoneidade e de outras sanções legais, visa impedir o desemprego, o retardo das obras e a reincidência em fraudes. A medida requer o afastamento dos sócios controladores e executivos, além da responsabilização civil e criminal. Depois da expropriação deve se seguir a socialização das empreiteiras condenadas, colocadas sob a auto-gestão dos trabalhadores ou estatizadas sob controle social. O setor teria então empresas com três modelos de gestão: empreiteiras privadas (idôneas), autogeridas pelos trabalhadores e estatais. Haveria mais transparência, competição, mérito e eficiência social neste setor empresarial. O patrimônio público estaria mais seguro e menos vulnerável à potencial formação de cartel para promoção de fraudes por meio da corrupção ativa.

Referências
[1] O Histórico cerco à Petrobrás e a corrupção, Felipe Coutinho
[2] DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE DE LICITANTE FRAUDADOR PELO TCU Alcance do sócio administrador, Milton Gomes da Silva Filho, dissertação de graduação em Direito
[3] Presidente do TCU defende que empreiteiras não sejam declaradas inidôneas, O Globo, 17/11/2014
[4] Decisão sobre inidoneidade deve ser ‘pensada’, diz Jorge. (em anexo)
[5] A imprensa abre o leque, Observatório da Imprensa. (em anexo)
[6] Até o pior é bom, Jânio de Freitas, Folha de S. Paulo
[7] Corrupção sistêmica e a imagem da Petrobras: transparência e controle social versus privatização, Herbert Teixeira


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