“O que está ocorrendo no Brasil não tem precedente na história. Não estamos sendo submetidos à ação exploratória que seja de uma outra nação. Estamos sendo subordinados a uma pluralidade de ações econômicas e sociais comandadas por interesses imediatistas, gerados no exterior e sem qualquer compromisso com a vida nacional. Essas ações levadas a cabo com a omissão displicente de brasileiros, com flagrante indiferença da opinião pública nacional, vêm se tornando cada vez mais frequentes. O descaso dos interesses nacionais, com que empresas estrangeiras vêm tratando dos seus negócios em nosso País, é evidenciado na leitura diária dos jornais”
Manifesto “Em Defesa da Nação Ameaçada”, dezembro de 1980, firmado por 32 personalidades das quais destacamos: Alceu Amoroso Lima, Antônio Carlos de Andrada Serpa, Antônio Ermírio de Moraes, Antônio Cândido de Mello e Souza, Antônio Houaiss, Ariano Suassuna, Aurélio Buarque de Holanda, Barbosa Lima Sobrinho, Euler Bentes Monteiro, Goffredo da Silva Telles, José Honório Rodrigues, José Walter Bautista Vidal, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Pompeu de Souza, Roberto Saturnino Braga, Rogério Cerqueira Leite, Rômulo Almeida, Sérgio Buarque de Holanda, Severo Gomes e Sinval Guazelli
As condições e os conceitos
Em novembro de 1989, poucas pessoas atentaram para mudança na ética da sociedade que o documento, apresentado por empregados de instituições financeiras internacionais, como orientação econômica, na verdade mudança constitucional em muitos países, iria provocar.
Vamos recordar os 10 Mandamentos do “Consenso” de Washington.
Disciplina fiscal, evitando grandes déficits fiscais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB);
Redirecionamento dos gastos públicos de subsídios (especialmente subsídios indiscriminados) para uma ampla provisão de serviços essenciais pró-crescimento e pró-pobres, como educação, saúde e investimento em infraestrutura;
Reforma tributária, ampliando a base tributária e adotando alíquotas marginais moderadas;
Taxas de juros determinadas pelo mercado;
Taxas de câmbio competitivas;
Livre comércio: liberalização das importações, com ênfase na eliminação de restrições quantitativas (licenciamento, etc.), proteção comercial a ser fornecida por tarifas baixas e uniformes;
Liberalização do investimento estrangeiro direto interno;
Privatização de empresas estatais;
Desregulamentação: abolição das regulamentações que impedem a entrada no mercado ou restringem a concorrência, exceto aquelas justificadas por motivos de segurança, proteção ambiental e do consumidor e supervisão prudencial de instituições financeiras;
Segurança jurídica para direitos de propriedade privada.
O que era facilmente identificável era o afastamento dos Estados Nacionais da condução da economia dos países. Era o triunfo de um pensamento que foi denominado neoliberal.
O que é o neoliberalismo? “Neoliberalismo é uma doutrina econômica e política que surgiu no século 20 com base em ideias formuladas por teóricos, como o economista ucraniano Ludwig von Mises e o economista austríaco Friedrich Hayek. A teoria neoliberal surge para opor-se à teoria keynesiana do bem-estar social e propõe nova leitura da parte econômica do liberalismo clássico, tendo como base a visão econômica conservadora que pretende diminuir ao máximo a participação do Estado na economia” (Francisco Porfírio, em Mundo Educação, 14/11/2023). Com pequenas alterações e ênfases, esta formulação tem aceitação geral, e ficaremos com ela.
No “Consenso de Washington” tanto quanto nesta conceituação é nítido o papel secundário dos Estados Nacionais, principalmente enquanto regulador das relações, aparentemente econômicas, mas que englobava o próprio comportamento social, uma vez que eventuais restrições acabariam por atingir a liberdade de contratar ou se relacionar.
Toda a década de 1980 foi destinada a tirar o papel regulador e uniformizador do Estado Nacional, principalmente nas relações de trabalho e nos direitos sociais, no mundo ocidental.
O que denominaremos “mundo ocidental” é o mundo do Atlântico Norte, mundo Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) embora vá muito além do pacto militar.
Nem se dava conta que o liberalismo do acordo de Bretton Woods (julho de 1944), encontrava o mundo com poucos Estados Nacionais, pois prevaleciam na África, na Ásia, na Oceania e nas Américas e Caribe, estados colônias de potências europeias e estadunidenses. O que levou os Estados Unidos da América (EUA) a romper com o acordo (1971) foi que lhe tolhia o desenvolvimento, que a população dos EUA demandava, e a inserção mundial estavam exigindo.
As duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) transferiram para a industrialização o poder até então exercido pelas finanças.
Se os primeiros anos após a 2ª Grande Guerra foram de grande desenvolvimento, é preciso coletar algumas evidências e circunstâncias. De início a diferença das finanças que apenas precisavam dominar o Estado para que este se endividar e pagasse as mais altas taxas de juros possíveis, no que seria seguido por todos demais, pessoas físicas e jurídicas necessitadas de recursos.
Não havia preocupação com a produção nem com o consumo. Os rentistas, na quase totalidade, pertenciam à aristocracia fundiária, viviam dos aluguéis de todos que morassem em suas propriedades, que abrangiam os “manso” medievais: senhorial, servil e comunal.
A industrialização erigiu o consumidor como principal preocupação. As riquezas se originavam da quantidade de produtos vendidos, e a disputa se dava na qualidade e no preço. Também a comunicação de massa, antes reduzida aos alfabetizados, com o advento da televisão (1941) passou a incluir todas famílias e pessoas de todas idades. Estatísticas estadunidenses dão conta que, no pós-guerra, quase a totalidade das residências nos EUA possuía, no mínimo, um aparelho de TV. Era o maior incentivo ao consumo que o mundo até então conhecera.
A tecnologia desenvolvida para guerra foi transferida para uso da indústria de produção de bens e para empresas prestadoras de serviços. A universalização deste modelo se deu sob controle dos vencedores da guerra: no campo capitalista, os EUA; no mundo socialista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Em dez anos de aplicação das diretrizes de Bretton Woods, os países começaram a se organizar para a libertação das limitações impostas e ganhar suas soberanias. Foi realizada a Conferência de Bandung (abril de 1955), na Indonésia, que reuniu 29 líderes da Ásia e da África para a discussão de questões tais como a cooperação econômica, a autodeterminação, a descolonização e a paz, capitaneada pelos líderes da China (Xou En Lai), Indonésia (Sukarno), Índia (Nehru), Egito (Nasser), Camboja (Norodom Sihanouk): Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Ceilão, Etiópia, Filipinas, Irã, Iraque, Israel, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Paquistão, Síria, Turquia, República Democrática do Vietname, Vietname do Sul e Iémen. A Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia também enviou representante, Hocine Aït-Ahmed, mesmo não sendo Estado Independente.
De 1947 a 1991 tem-se a “Guerra Fria”, com início no discurso do presidente Harry Truman, no Congresso estadunidense, solicitando verba para combater o comunismo e a influência da URSS na Europa.
Os primeiros 40 anos – o desenvolvimento (1945-1985)
A Associação Francesa de Economia Política designa o período do fim da segunda guerra até as crises do petróleo (1973/1979) de “os 30 anos gloriosos”, pois aquele País conheceu o desenvolvimento social, econômico, cultural, com ampla participação popular, como jamais houvera.
Não queremos dizer, obviamente, que, em tal período, não tenha havido tensões e contradições. Existiram, e muitas, pois assim caminha a história. Realçamos, porém, que, do ponto de vista da construção nacional, foi nesse período que as melhores condições para o aprofundamento de políticas de desenvolvimento econômico e de integração social foram proporcionadas.
No Brasil tivemos a Era Vargas, nossos 50 anos gloriosos, que têm início com a vitoriosa Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, e vai até o golpe na sucessão do presidente Ernesto Geisel (1980), quando os setores transnacionalizantes, até então incubados, começaram a operar a captura do Estado a fim de desmontar a estrutura de planejamento que permitiu ao Brasil organizar, pela primeira vez, uma economia interna dinâmica e integrada geográfica e socialmente.
Descrever a Era Vargas foi o encargo que o historiador e jornalista José Augusto Ribeiro assumiu em três obras magníficas e indispensáveis: A Era Vargas (2001), em três volumes, Tancredo Neves A Noite do Destino (2015) e A História da Petrobrás (2023).
Como era o Brasil em 1930? Sob o ponto de vista político institucional uma imensa fazenda, dominada por oligarquias mineiras e paulistas, que se alternavam na Presidência da República, mantendo o país sob o regime agroexportador. Toda estrutura organizacional se concentrava nas funções de interesse imediato desta elite.
Assim, atividades como a educação, a saúde, a industrialização e, obviamente, o trabalho eram deixadas sem ação de governo, sem recursos públicos, fazendo o Brasil, na realidade, continuar um país de escravos.
Em 1920, 71,2% da população eram analfabetas (Ana Emília Cordeiro Souto Ferreira e Carlos Henrique de Carvalho, “Escolarização e Analfabetismo no Brasil: Estudo das Mensagens dos Presidentes dos Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Norte (1890-1930)”).
No confronto que Souto Ferreira e Carvalho apresentam em seu trabalho, também se verifica a desigualdade regional. Enquanto em São Paulo e no Paraná o índice de analfabetos era da ordem de 73%, no Rio Grande do Norte atingia 88%.
Um Brasil socialmente injusto, reduzido praticamente a poucas partes do sudeste, ou seja, com desigualdades econômicas, culturais, regionais, um Brasil de “diversos brasis”, na visão do genial antropólogo Darcy Ribeiro.
Assim não se surpreende que o Exército, alfabetizado por força da necessidade profissional, participante da mudança do regime monárquico para o republicano, passasse, com parte da intelectualidade, a década de 1920 organizando movimentos de insatisfação: a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922, a Revolta Paulista de 1924, a Comuna de Manaus de 1924, a Coluna Prestes, entre os anos de 1925 e 1927, aos quais se somam os culturais Movimento Pau-Brasil, Movimento Verde-Amarelo, Grupo da Anta, Movimento Antropofágico, além da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922. Em relação às publicações, destacamos as revistas Klaxon e Antropofagia.
Todos estes eventos traduziam a insatisfação de um povo com o imobilismo subserviente aos capitais estrangeiros que dirigiam, então, o Brasil. A Revolução de 1930, tendo nascido no Rio Grande do Sul e na Paraíba, com apoio de Minas Gerais, foi um movimento nacional brasileiro. E ela surge no meio da crise internacional, provocada pela financeirização, de 1929, na Bolsa de Nova Iorque. Que atinge o Brasil, exportador de café, por ter reduzido suas vendas internacionais. A elite cafeeira, em crise, não teve como combater a revolução, o que o fará em 1932, com auxílio dos capitais ingleses, que desde 1808 vinham controlando os governos brasileiros.
Com a Revolução de 1930, as oligarquias cafeeiras, se não perdem suas propriedades, são destronadas do comando político do Brasil, que passa à coalizão cívico-militar organizada em torno da candidatura de Getúlio Vargas. Inicia-se novo ciclo no País, no qual os interesses econômicos e regionais são incorporados ao sentido estratégico encetado pelo Estado que, pela primeira vez, deixava de ser cartorial e se tornava nacional.
A rápida industrialização e a simultânea implementação do bem-estar social pelas leis trabalhistas e previdenciárias manifestaram a conquista de soberania do Brasil, que, cada vez mais, colocou sob o guarda-chuva público as finanças, os recursos naturais e as infraestruturas, de modo a verter a dinâmica econômica para dentro, não mais para fora como havia sido até então.
Nos anos que vão de 1930 a 1985, o Brasil saiu de colônia de capitais estrangeiros para uma economia que fabricava, como somente outros quatro países no mundo, com hardware e software próprios, os minicomputadores. O Brasil conheceu por breves momentos a Soberania!
Felipe Maruf Quintas, doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), produz e apresenta o canal “Brasil Independente”, pelo YouTube.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas na África (UN/DTCD 1987/1988).
Fontes: