Artigo

A mão invisível e a energia no século XXI

Data da publicação: 04/03/2020

Tinha os dedos cobertos de anéis de ouro, grossos anéis onde estavam presas manipulações, ordens de guerra e de paz, grandes fortunas. Pude então compreender como agia a mão invisível: sob embuste. Com todas as cartas marcadas para que apenas uns poucos a conhecessem e dela se aproveitassem.

Havia alguma incongruência entre o título da obra, de 1759 de Adam Smith (1723-1790), A Teoria dos Sentimentos Morais, e esta mão que eu descobrira. Mas aquele célebre trabalho tinha enorme subtítulo: “Ensaio para uma análise dos princípios pelos quais os homens naturalmente julgam a conduta e o caráter, primeiro de seus próximos, depois de si mesmos”.

Não foi, nem é o comunismo, que

combate o industrialismo; é o financismo

Os homens que tomavam os outros pelas suas próprias qualidades não seriam psicopatas? Afinal, por que apenas alguns poucos poderiam se alimentar, se proteger do frio, ter acesso a bens materiais e morais ou espirituais? Por que a lei da selva seria mais humana do que a da solidariedade?

Que “simpatia será este mecanismo, dotado pelos homens, que mediará a formulação de sentimento apropriado, pela força da imaginação, permitindo que alguém, em alguma medida, possa sentir o que o outro sente, como se estivesse em seu lugar”? (Teoria Dos Sentimentos Morais, pdf).

Nas últimas duas décadas do século XX já víamos a transformação da economia, da valoração da energia e de alterações profundas nos próprios sentimentos morais. Teve início o poder do sistema financeiro, ou da banca, como o abrevio.

Felipe Coutinho, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), escreveu, em setembro de 2017, “O Fim do Petróleo Barato e do Mundo que Conhecemos” (Aepet Direto). O que ocorreu de mais grave e profundo nestas quatro décadas, de 1980 a 2020, foi a substituição do ganho da produção pelo ganho da especulação.

E, apesar disso, o consumo de energia não caiu. Em 1980, o mundo produziu 6,733 bilhões de toneladas equivalentes de óleo (toe). Em 2018 foram 13,864 bilhões de toe, ambos dados conforme a BP Statistical Review of World Energy. Mas os investimentos no upstream (exploração e produção de petróleo) passaram de cerca de 100 bilhões de dólares estadunidenses (USD), em 1985, para 630 bilhões USD (2016), enquanto a produção de petróleo oscilou de 56 para 80 milhões de barris por dia (bpd).

A geopolítica da energia foi quem deu as cartas. Passamos a assistir guerras, golpes de estado, verdadeiras e falsas revoluções, movimentações populares das mais diferentes e diversionistas, tudo movido pela conquista e controle das fontes de uma energia cada vez mais cara e sem queda na demanda. Considerando os investimentos para encontrar e produzir petróleo e a produção desta energia primária, cabe afirmar que em 40 anos produziu-se o dobro de energia para um dispêndio cerca de seis vezes maior.

Embora tenha sintetizado, e de modo bastante simplificado, dados do artigo de Coutinho e da BP Statistical, esta relação é bem o retrato das mudanças nas sociedades, em especial na denominada ocidental, ou seja, as do Atlântico, ainda dominantes, quer pela presença militar dos Estados Unidos da América (EUA) quer por ser a sede dos grandes capitais financeiros e da moeda referência mundial, o dólar estadunidense (USD).

Poucas notícias fazem conhecer que a civilização eurasiana (Federação Russa e Ásia, exceto Ásia Menor) desenvolve modos de produção de energia fundados nos mesmos componentes que, há dois séculos, promovem o desenvolvimento material e transformações morais, diferentes das adamsmithonianas.

Dmitry Bokarev, em artigo traduzido para Dinâmica Global, “Tecnologia Russa para Conter a Crise Global de Energia” (24/2/2020), expõe: “Nossa civilização moderna precisa dos três principais combustíveis fósseis, ou seja, carvão, petróleo e gás natural. Talvez o esforço persistente do Ocidente para fazer as pessoas mudarem para carros elétricos faça parte dos preparativos para uma vida sem petróleo e gás”.

Discorre, então, sobre a conversão do carvão em combustível líquido, “pois possui propriedades químicas semelhantes ao petróleo”. E mostra como a Federação Russa, a República Popular da China e a República Popular Democrática da Coreia, desde 2016, desenvolvem aparelhos produtores de combustíveis sintéticos a partir do carvão. Há relatos de interesse nestes aparelhos, o que levará seus desenvolvedores a apresentá-los na reunião de 2020 da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e na cúpula dos Brics.

Recordemos que, em 2018, dos 13.864,9 milhões de toe, o petróleo contribuiu com 4.662,1 milhões, o carvão com 3.772,1 milhões e o gás natural com 3.309,4 milhões de toe, ou seja, os combustíveis fósseis representaram 85% da produção mundial de energia. E, com as perspectivas atuais de esgotamento das reservas destes insumos básicos, o carvão é o mais longevo.

Não me move discorrer sobre princípios morais nem comportamentos éticos, principalmente neste mundo que criou a “teologia da prosperidade” e vê surgir, em cada quarteirão, a cada quadra, uma igreja neopentecostal com o pastor semialfabetizado, mas “esperto”. Tenho-os por tão falaciosos quanto a mão invisível. Mas creio ser indispensável a construção de novo consenso sobre a real significação do controle das fontes de energia, ao qual se associam deturpações nas ideias de competição, empreendedorismo, riscos e, sobretudo, sucesso. E não por entidades sobrenaturais, mas pela fria e comprovada realidade.

A base da revolução seiscentista/setecentista foi a liberdade; libertação de um poder divino dos reis europeus. O que se nos impõem, hoje, os colonizados colonizadores nacionais e a banca como humanitária é, tão somente, uma questão europeia, que pela destruidora ação de seus impérios, extinguindo etnias, idiomas, culturas, se considerou globalizante. Adam Smith foi um representante, como o investidor e rentista John Locke (1632-1704), individualista liberal, e, antes destes, Thomas Hobbes (1588-1679), individualista autoritário, cuja fé no ser humano era mínima.

Fiquemos, portanto, no século XXI. O que herdamos do século anterior não foi o industrialismo, o consumismo, a inventiva ou o ideal de progresso, foi a concentração de renda e a assimilação dos recursos ilícitos nas finanças oficiais. Se alguém desejar discutir a corrupção contemporânea, precisa iniciar com as desregulações da dupla Thatcher-Reagan, a multiplicidade de paraísos fiscais e o crescimento do poder das economias das drogas e dos contrabandos nos governos, em todas as nações.

Não são valores perfeitamente identificáveis – a ninguém, por enquanto, interessa divulgá-los – mas adotando critérios de participações, crescimentos diferenciados, crises financeiras e outros métodos indiretos, posso avaliar que os capitais ilícitos e os capitais tradicionais estejam bem perto de repartir os montantes (quase 100 trilhões de USD) que circulam pela mão invisível do mercado financeiro, conhecido por mercado, simplesmente. Em valores aproximados, diria que o capital das drogas, contrabando de pessoas e órgão humanos, contrabando de armas e outros produtos movimentam perto de 50 produtos internos brutos (PIB) brasileiros.

Ou seja, corrompem toda estrutura dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros, obtendo as garantias da venda/compra e/ou controle de nossos ativos energéticos.

Os avanços na industrialização, de Vargas a Geisel, faziam antever o fim da escravidão, não por qualquer humanismo tardio das elites, mas o que parecia ser a tomada de consciência de que o processo industrial exigia mão de obra preparada e consumidores, como há um século e meio propugnava José Bonifácio de Andrada e Silva para a constituição de um Brasil Independente.

No entanto, a invasão neoliberal que se dá a partir de 1980 – com falsas moralidades, defesa da família, a corruptíssima luta contra a corrupção (vejam-se as fraudes processuais e o enriquecimento de magistrados e membros do Ministério Público), impedimentos para a comprovação de votos nas eleições, defesa das privatizações, como se os corruptores privados fossem mais honestos do que os corrompidos funcionários públicos civis e militares, a excrescência do Estado Mínimo – representou a vitória da especulação sobre a produção.

O Brasil encerra este seu ciclo de desenvolvimento (1980) em 55º lugar na aferição dos países pelo consumo de energia per capita. Em 2010 já se posicionava em 72º lugar.

Consta que o General Villas Bôas, comandante do Exército, teria dito a Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente da Nação: “O senhor traz a necessária renovação e a libertação das amarras ideológicas que sequestraram o livre pensar”.

Qual renovação e libertação se referiria tal elevado membro do Governo Temer? Pois tenho demonstrado que, desde a sucessão do presidente Geisel, o país mergulhou no neoliberalismo, no domínio do capital especulativo, das finanças internacionais, regredindo em sua soberania de Estado Nacional e usando questões identitárias e ecológicas para ofuscar o desmonte que se fazia e ainda se faz do Brasil, suas riquezas e instituições.

Visto o significado do liberalismo, vejamos o do comunismo. O liberalismo é o lar do rentismo, do capital parasitário, como se observa desde a criação do Banco da Inglaterra pelos Stuart. A ele se contrapôs o industrialismo, que levou os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) a disputarem a hegemonia econômica, militar e tecnológica da Terra.

Não foi, nem é o comunismo, que combate o industrialismo; é o financismo. Tanto que este financismo foi a razão do retrocesso dos EUA e do fim da URSS, nestas quatro décadas. Também é o neoliberalismo que mais prejudica o capitalismo do progresso, do desenvolvimento tecnológico, da produção, da instrução, da dignidade e da liberdade humana. E este capitalismo precisa do Estado, do mediador que garanta os direitos, que ofereça segurança e limites para que exista verdadeira liberdade em vez de novas formas de escravidão, uberizadas.

O historiador brasileiro Capistrano de Abreu (1853-1927) cunhou a frase: “A mim me interessa o povo, há três séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado”. “(O rio Tietê foi) o rio da escravidão dos índios. Está muito longe de haver sido o Nilo, em cujas margens se fundou a nossa civilização”, escreveu o pernambucano Anníbal Falcão (1859-1900), relatado por Capistrano (C. de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, Civilização Brasileira, RJ, 1975, 4ª edição).

À farsa da ideologia neoliberal precisamos conhecermo-nos, brasileiros, patriotas, estudar o Brasil, sua história, suas riquezas, encher o peito de orgulho de nossa nacionalidade. Não buscar em ideologias estrangeiras o nosso futuro, mas em nossas virtudes e defeitos, em nossa cultura.

Ative-me ao aspecto da energia. Mas em outros modelos também se nos impõe a força da colonização. No passado representada por países: Portugal, Espanha, Inglaterra, EUA, mas hoje é a ideologia. Ideologia que vem corroendo a civilização ocidental e incentivando a guerra intercontinental deste mesmo ocidente com a eurásia. É o fim da humanidade, o ideal de uma ideologia da concentração de renda. Neomalthusiana, para quem o ser humano é um ônus e não o objetivo da civilização.

Fonte: Monitor Mercantil

Acessar publicação original:

aepet.org.br