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A Nação à conquista do Estado: raiou a República

Data da publicação: 11/09/2019

e o início da República no Brasil, fica nítida a compreensão de que nosso país tinha uma estrutura de poder no Estado, mas que esta não representava a Nação.

A Constituição do Império, de 1824, torna o Brasil, recém-independente, uma monarquia parlamentar, como a Inglaterra, centralizada e liberal.

A República surge por um conjunto de fatores onde releva também a necessidade da emergente elite agrária paulista, com o novo e valorizado produto – café – fazer o Estado se voltar para seus interesses. Assim, não mais precisaria disputar os parcos recursos estatais com o Nordeste nem com o Sul: pernambucanos, baianos, fluminenses ou gaúchos.

Triste alvorecer para nosso país,

onde as elites acordam a divisão do butim

As elites escravagistas haviam constituído a Guarda Nacional (1831), distribuindo títulos de coronel para os que não eram agraciados com os de uma nobreza de terras. Afirma Leôncio Basbaum (História Sincera da República, Editora Alfa-Omega, 3ª Edição, I volume): “A Guarda Nacional era mais uma organização civil que militar. Unida às forças do exército, diluía um pouco o espírito militar existente no seio da tropa”.

O Exército e a Marinha também eram prejudicados nos orçamentos do Império. Eduardo Prado (Fastos da Ditadura Militar, Livraria Magalhães, 1923) escreve que, no Brasil, existia “um exército esquecido, mal organizado, mal instruído e mal pago”.

Tomemos os orçamentos de 1830, de 1864 e 1870, período da Guerra contra o Paraguai, e os de 1880 e 1888, fim do Império, que mostram quem efetivamente controlava o Império de acordo com os dados colhidos por Liberato de Castro Carreira (História Financeira e Orçamentária do Império no Brasil, Senado Federal – MEC, 1980, 2 volumes).

Em 1830, o Exército recebia, para suas despesas, 26%, e a Marinha, 17% do orçamento, enquanto as finanças ficavam com 44% (pagar a permanente dívida com a Inglaterra), e a Corte do Império, com 7%.

Em 1864, preparando-se para guerra, o Exército recebeu 33%, e a Marinha, 16%; as finanças, 24%, a Corte, 6%, e já surgia a agricultura com 13%. No final da Guerra, 1870, o Exército ficou com 16%, a Marinha, 10%, as finanças, 47%, a Corte, 6%, e a agricultura 14%. Já se observava além da permanência da importante “finanças”, o despontar da “agricultura” no domínio do Estado.

Ao fim do Império tínhamos: em 1880, o Exército com 10%, Marinha com 8%, finanças com 44%, Corte com os mesmos 6% e agricultura com 26%; e, em 1888, o Exército com 10%, Marinha, 7%, finanças, 45%, Corte, 6%, e agricultura, 25%.

Com a República, o domínio regional, que, em alguns momentos se submetia ao poder central monárquico, fica absoluto, com a unanimidade do federalismo entre liberais, conservadores, ex-monarquistas e neorepublicanos, como Rui Barbosa. Apenas os positivistas, mais presos a um pensamento filosófico, propunham a manutenção centralizada do poder.

Mas toda tradição colonial e mesmo do império (vide o Ato Adicional de 1834, ampliando autonomia das províncias) era de um efetivo poder dos engenhos, dos senhores das terras, ou seja, descentralizadora, o que levou a confusão de alguns analistas, associando esta origem do poder nacional federativo à estrutura feudal, que nem existia em Portugal, principalmente quando da invasão europeia ao Brasil.

No biênio 1885/1886, as receitas próprias dos estados (Rio de Janeiro, exceto a Corte, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe) representavam 20% de todas receitas – correntes, especiais e extraordinárias – do Estado Imperial. Este montante ainda gerava um déficit, quase da mesma ordem de grandeza, coberto por empréstimos à Inglaterra (mais da sua metade) e pela emissão de apólices e de moeda.

Apropriar-se do poder central, maior fonte de recursos do Estado Imperial, era fundamental para o empoderamento nesta nova era republicana. Assim, não apenas os republicanos históricos como os liberais monarquistas apoiam uma república federativa, que irá retirar o poder das armas. O positivismo encontrava receptividade em parte do Exército e entre intelectuais, jornalistas, parcela da classe média urbana.

Vejamos algumas reflexões do professor Lincoln de Abreu Penna (O Progresso da Ordem, Sette Letras, RJ, 1997) sobre este período de transição da monarquia para a república. O lema positivista de nossa bandeira não tinha a mesma compreensão de ordem para os diversos grupos políticos; alguns destes também faziam restrições ao progresso.

“A república anunciada pelos opositores da continuidade monárquica deveria se comprometer com a preservação da ordem” no país que formalmente abolira há um ano a escravidão, que sob várias e novas formas perdura até hoje, 2019. Mas “o que importava era garantir a administração do conflito latente (entre as características desiguais dos proprietários de terra) e impedir o alargamento da participação política”.

Em outras palavras, pouco importava, à grande maioria no poder, o império ou a república desde que mantidas as condições econômicas, sociais e uma certa fragilidade do poder central, para garantir os interesses dos “coronéis”. Mesmo hoje, os feudos políticos dos estados, muitas vezes em conúbio com as milícias e outras organizações criminosas – vide o PCC, em São Paulo, e milicianos da zona oeste carioca – negociam seus interesses para apoio ao poder central.

Ainda em Abreu Penna lê-se que, para grupos precursores republicanos, o silêncio sobre a questão da escravidão era o modo de evitar o comprometimento com uma solução que não fosse pacífica, “dissociando seu conteúdo da problemática social, preferindo inovar apenas nos aspectos institucionais”.

Transcrevemos: “O descompasso do Marechal Deodoro com a opinião de grande parte de seus camaradas tornava insuportável o apoio irrestrito que obtivera quando assumiu o governo. Na área econômica comandada soberanamente por Rui Barbosa (um posto ypiranga), os interesses tradicionais de uma elite comercial e financeira que havia se constituído ao longo do (Segundo) Império (nova república) permanecera influente”.

E mais: “Acomodar possíveis oposições tinha a faculdade de fazer coexistir em seu interior as mais distintas perspectivas quanto ao funcionamento (do Estado)”. A precedência da governabilidade sobre um projeto nacional ou estas duas faces da mesma moeda, como na guerra híbrida, com seus múltiplos recursos no tratamento das informações, como vemos ampliar neste século XXI, são retratadas pela harmonia e pelo acordo que chegam governo e oposição “pelo bem do país”.

Embora muito importante, não trataremos da economia que a substituição de mão de obra escrava por emigrantes assalariados já é suficiente para compreender o grau de modificação. Vamos nos restringir à questão do Estado apropriado por uma facção mínima da população, que dele se aproveita desde sempre, em nossa História.

Em 16 de novembro de 1889, aparece o editorial com título “A República” na Gazeta de Notícias, jornal fundado no Rio de Janeiro, em 1875, com as seguintes primeiras palavras: “O movimento de ontem seria simplesmente uma desordem se terminasse por uma composição que não mais pode garantir a este grande país a paz e a tranquilidade de que tanto precisa”.

O fundador da Gazeta, José Ferreira de Souza Araújo, tinha o objetivo de propugnar pela abolição da escravatura e pela república ao investir no jornal. Mas repercutia os interesses mais relevantes para as elites: a manutenção da ordem, assim entendida a dominação do Estado restrita ao mesmo grupo que dele se aproveitara nos Impérios.

No estilo próprio da época fica evidente em “A República”, do editorial, que era uma mudança de forma, para garantir a perpetuidade da elite agroexportadora, agora sem eventuais arroubos imperiais, e a sujeição do exército àqueles interesses, associados aos estrangeiros, especialmente europeus, ingleses.

Leiamos em “A República”: “Está quebrada toda e qualquer ligação entre o exército e a monarquia, pelo fato da unanimidade com que aquele se manifestou e porque em questões desta ordem não se volta, depois de ter chegado a certo ponto”.

“Não só no interior, mas no estrangeiro, não poderíamos mais contar nem com o braço, nem com a inteligência, nem com o capital que nos há de vir do velho mundo”.

“Ouvimos de cavalheiros que tomaram parte conspícua no movimento de ontem que o governo provisório se encarrega de manter a ordem pública e que se propõe a consultar a nação pelas ruas sobre a forma de governo que ela quer adotar; decisão que o governo provisório por si e em nome da força armada se compromete aceitar”.

Um triste alvorecer para nosso país, onde as elites acordam a divisão do butim, o exército se encolhe, os estrangeiros veem seus advogados ocuparem os cargos mais significativos do Estado, e o povo? – ora, o povo – são os braços e apenas os braços referidos no editorial. O importante é que estavam afastados os receios de revanche dos escravos, quilombolas, forros e todos não proprietários que constituíam a quase totalidade dos brasileiros. Vencera a ordem, não o progresso.

Fechava-se a primeira parte do que viria a ser considerado o golpe da República pelo poder militar. A este seguir-se-ia a transição, o golpe civil, onde as elites agrárias paulistas e o capital inglês passariam a governar o Brasil.

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado.
Transcrito do Monitor Mercantil, quarta-feira, 10/09/2019

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