Artigo

A necessidade de utopia

Data da publicação: 15/07/2010
Autor(es): Dominique Vidal

Um paradoxo surpreendente! O neoliberalismo mostra todo dia a sua falência: a superacumulação de riqueza é acompanhada por um número crescente de pobres e desempregados; a especulação provoca a crise mais grave desde 1929; a lógica do lucro ameaça até mesmo a sobrevivência da espécie. No entanto, o sistema é bom.

Essa contradição se explica – após os anos Thatcher, Reagan e … Mitterrand – o acontecimento que, por mais de vinte anos, alterou o curso da história: a queda do Muro de Berlim. A vitória do Ocidente na guerra-fria precipitou o fim do campo socialista, incluindo a União Soviética, que orgulhosa de seu papel na queda do nazismo, havia expandido consideravelmente seu império. Mas ela sofreu também um duro golpe, talvez fatal, para o ideal comunista, pervertido pelos apparatchiks do partido que preferiam reclamar.

Alguns esperavam que o desaparecimento do comunismo soviético faria surgir uma hipoteca. Desde 1917, todo o projeto socialista era visto como contrário ao ‘socialismo real’. E o horizonte da URSS limitava a elaboração de uma alternativa radical. Poderíamos, portanto, estimar que a queda da ‘casa comunista’ permitiria repensar um socialismo dentro da liberdade. Que, longe de anunciar o fim da história e da marginalização de qualquer espírito revolucionário, liberaria, ao contrário, a utopia completa.

Devemos reconhecer que até aqui não foi assim. No Sul, as lutas pela soberania política e econômica perderam seu ponto de apoio representado pelo campo socialista. No Norte, as lutas sociais não podem explorar a pressão que sua concorrência exerce sobre as potências ocidentais. E, acima de tudo, em todos os lugares, as pessoas parecem órfãs um ideal.

Agora, as duas décadas que se passaram têm demonstrado que: sem o horizonte de um ideal, falta alma aos combates sociais. Eles ocorrem mais frequentemente na defensiva, com o objetivo de defender conquistas ameaçadas. Pois o grande capital e os homens a seu serviço estão usando a crise pela qual são responsáveis para tentar desmantelar as conquistas sociais acumuladas ao longo do século XX.

O acadêmico Jean-Denis Bredin tinha previsto, quatro meses antes da bandeira vermelha desaparecer das torres do Kremlin: ‘é possível imaginar que o socialismo talvez não tivesse sido entre nós, nada mais que um radicalismo com nome diferente, se não tivesse havido o comunismo (…) que o impediu de se desviar muito rapidamente ou muito fortemente? É admissível imaginar que, às vezes perturbador, às vezes assumindo o resto da esquerda, o comunismo francês, estranho guardião de um catecismo universal, portador de uma legitimidade terrível, tenha ajudado o socialismo francês a tomar o seu curso, e que sem ele, a Frente Popular não teria sido uma frente popular, que a união da esquerda provavelmente não teria sido nada além uma união de centros, ou um sonho, e que muitas leis sociais ainda estariam pendentes? É possível argumentar que todos esses teimosos, estes sectários, esses grevistas incansáveis, esses invasores de nossas fábricas e nossas ruas que implantavam a desordem, esses obstinados que nunca paravam de exigir reformas sonhando com a revolução, esses marxistas, contra a maré da história, que impediam o capitalismo de dormir bem, nós lhes devemos muito?’ (1)

Vinte anos depois, o movimento social sofre com a falta de alternativas. Benjamin Netanyahu se lançaria em sua corrida para a frente e para a guerra se o outro lado com visão social e pacifista propusesse uma alternativa aos israelenses? A guerra da Chechênia teria durado tanto tempo se Vladimir Putin tivesse enfrentado um oponente popular que representasse uma outra escolha para a Rússia? E Nicolas Sarkozy, teria sido eleito presidente, se seu adversário estivesse de posse de uma outra escolha para a França? Finalmente, se uma perspectiva de mudanças se desenhasse, aqueles que nos governam conseguiriam sem encontrar maiores resistências, apertar o cinto de povos inteiros, à grega, após terem distribuído muitos bilhões de euros aos bancos? Sem esquecer os atrasos nas aposentadorias, o trabalho aos domingos, os serviços públicos privatizados, a saúde e o ensino superior pagos …

O que caracteriza essa mortífera ‘crise de alternativa’? Ela resulta, obviamente, da fraqueza das forças da mudança, da pobreza de suas propostas e da apatia de seus programas. Mas, decorre sobretudo de sua incapacidade de encarnar uma utopia. No singular: pois, se as ‘grandes utopias’ (econômicas, sociais, políticas, culturais e ambientais) se alimentam das pequenas, elas também podem escondê-las.

Sim, é primeiramente de uma utopia que o mundo precisa. O grande escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu de forma magnífica (2): ‘Ela está no horizonte’, disse Fernando Birri. Eu me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Eu caminho dez passos e o horizonte se afasta dez passos para mais longe. Quanto mais eu caminho, nunca vou alcançá-la. Para que serve a utopia? Serve para isso: caminhar’.

Dominique Vidal (jornalista)

(1) Jean-Denis Bredin, ‘É permitido?’, Le Monde, 31 de agosto de 1991, citado por Serge Halimi, Le Grand Bond en arrière, Fayard, Paris, 2004.

(2) Eduardo Galeano, As palavras andantes, Madri: Siglo XXI, 1993.

Tradução: Argemiro Pertence (engenheiro, ex-vice-presidente da AEPET e comentarista internacional do programa ‘Faixa Livre’ – Rádio Bandeiras 1360 kHz – AM – Rio de Janeiro, 8 às 10 horas).

Fonte: Le Monde Diplomatique – julho-agosto de 2010