Artigo

A política externa de Getúlio Vargas

Data da publicação: 22/08/2023

A política externa foi dos pontos mais controversos da Era Vargas, e a que mais rendeu calúnias e desinformações. Naturalmente, as forças antipatrióticas, vinculadas a interesses externos, jamais poderiam compreender o profundo sentido nacionalista assumido pelo Brasil no âmbito internacional durante a Era Vargas. Elas medem a diplomacia e a defesa brasileiras no período conforme a sua régua. Daí que enxergam adesão ao nazifascismo ou subserviência aos Estados Unidos da América (EUA), onde o que estava em jogo era apenas o interesse nacional brasileiro, ideacionalmente definido pela visão de grandeza e unidade do Brasil, e pragmaticamente conduzido pelas possibilidades disponíveis em período de alta turbulência e incerteza internacionais.

Com efeito, Vargas buscou afirmar nacionalmente o Brasil não apenas para dentro, pela valorização do trabalho, do emprego e da produção, isto é, pelo desenvolvimentismo e pela justiça social, como, igualmente, para fora, buscando, na inserção internacional do País, os meios para sustentar os objetivos internos. Houve, assim, retroalimentação entre a política interna e a política externa, unificadas pelo centro de liderança institucionalmente representado no Estado.

O desenvolvimento foi o fio condutor da política externa de Vargas. A “diplomacia da prosperidade”, por assim dizer, objetivava abrir mercados para os produtos brasileiros a fim de estimular e diversificar a produção interna, o que se tornava ainda mais imperioso com o estrangulamento do comércio internacional após a Crise de 1929 e a adoção de políticas autarcizantes em grande parte do mundo. Apesar de todas as limitações de país ainda primário-exportador e pautado quase exclusivamente pelo café, a política externa varguista aperfeiçoou o pragmatismo realista da diplomacia brasileira e conseguiu encontrar caminhos para viabilizar o objetivo nacional de desenvolvimento econômico, situado no cerne da nova concepção de interesse nacional.

Como afirma Clodoaldo Bueno: “No decurso da década de 1930, as transformações econômicas e sociais levaram os detentores do poder a uma nova percepção do interesse nacional. Embora sem descurar dos interesses das exportações tradicionais, a política externa brasileira buscou formas de cooperação e barganhas voltadas para um interesse nacional compreendido de maneira mais abrangente do que o período anterior, pois visava contemplar outros segmentos da sociedade. Isto explica as transformações havidas na política externa brasileira, como o reforço do pragmatismo e do seu sentido de instrumento do projeto de desenvolvimento nacional, que tinha na implantação de uma siderúrgica sua pedra angular.” (CERVO, Amado, BUENO, Clodoaldo, “História da Política Exterior do Brasil”, 5ª ed. rev. ampl. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2015, p. 252).

Neste sentido que se deve compreender o polêmico estreitamento das relações comerciais entre o Brasil e a Alemanha de Hitler, na década de 1930. O III Reich, a fim de contornar o que o ministro das Finanças denominava “ditadura de Wall Street”, praticava o comércio internacional por meio de acordos de trocas bilaterais, isto é, mercadorias por mercadorias, para reduzir a mediação monetária, introduzindo um sistema de compensação para o marco bastante atraente para os países que quisessem exportar gêneros primários à Alemanha em troca de bens de capital. Para o Brasil, que sofria com a alta volatilidade dos preços do café, esse mecanismo era bastante proveitoso, pois permitiu a aquisição de maquinário e equipamentos alemães de primeira linha em troca da remessa de sacas cafeeiras.

Estavam, portanto, em jogo apenas interesses econômicos recíprocos; nenhuma afinidade ideológica, tanto que Vargas não hesitou em romper relações diplomáticas com o III Reich quando comprovado que ele aqui fomentava separatismos étnicos, como já mencionado. Não seria justo com os brasileiros que o Governo Federal, em nome de querelas ideológicas, dispensasse as condições comerciais favoráveis, oferecidas pela Alemanha, para a aquisição dos bens de capital necessários para o nosso desenvolvimento. Não é assim que funcionam as relações internacionais, guiadas como são pela Razão de Estado. Se for para acusar Vargas de simpatia nazifascista, por que não estender a acusação às democracias ocidentais, que também comercializavam com a Alemanha?

Da mesma forma, a deportação de Olga Benário para a Alemanha não se deveu a qualquer conchavo secreto entre Vargas e Hitler, mas pelo fato dela ser cidadã alemã e ter sido condenada por crimes em seu país natal antes de entrar clandestinamente no Brasil. Todo o processo de deportação cumpriu à risca o Direito Internacional, não cabendo a Vargas assumir os ônus de desafiá-lo em prol de quem esteve na linha de frente para derrubá-lo e assassiná-lo, de acordo com o credo revolucionário seguido pela esposa de Luís Carlos Prestes.

Também nada há que remeta ao nazifascismo o célebre discurso de Vargas, a bordo do navio Minas Gerais, proferido em 11 de junho de 1940, comumente utilizado pelos adversários como prova da aproximação de Vargas ao Eixo. A crítica ao liberalismo não apontava explícita ou implicitamente para a direção totalitária, mas para a necessidade de fortalecer o caráter social da organização econômica brasileira e, assim, fortificar a nacionalidade no momento em que se assistia, por toda a parte, inclusive nos EUA e na União Soviética, “à exacerbação dos nacionalismos, as nações fortes impondo-se pela organização baseada no sentimento da Pátria e sustentando-se pela convicção da própria superioridade”. Vargas reconhecia, em termos realistas, a existência de países objetivamente fortes, defendendo o fortalecimento do Brasil para resguardá-lo de abusos imperialistas, fossem quais fossem.

Distante dos totalitarismos de direita e de esquerda que vicejavam na Europa, a política externa varguista priorizou o ideário pan-americanista, formulado por José Bonifácio nos primeiros momentos do Brasil independente. Segundo essa concepção, a esfera de pertencimento do Brasil seria o continente americano, não apenas no sentido de espaço geográfico e de compartilhamento de fronteiras, mas de Novo Mundo, de terra de promessas e esperanças, de progresso e de paz. O Brasil não renegaria suas raízes europeias, mas não tomaria como seus os dilemas e impasses europeus, pois se situava em plano geopolítico e geoculturalmente autônomo ao Velho Mundo.

Como Vargas proclamou, em discurso de 29 de junho de 1940: “Vivemos num continente de civilização jovem, em que a luta mais árdua é ainda a do aproveitamento dos abundantes recursos que a Natureza nos oferece. Habituados a cultivar a paz como diretriz de convivência internacional, continuaremos fiéis ao ideal de fortalecer, cada vez mais, a união dos povos americanos. Com eles estamos solidários para a defesa comum em face de ameaças ou intromissões estranhas, cumprindo, por isso mesmo, abster-nos de intervir em lutas travadas fora do Continente. E essa união, essa solidariedade, para ser firme e duradoura, deve basear-se no mútuo respeito das soberanias nacionais e na liberdade de nos organizarmos, politicamente, segundo as próprias tendências, interesses e necessidades. Assim entendemos a doutrina de Monroe e assim a praticamos. O nosso pan-americanismo nunca teve em vista a defesa de regimes políticos, pois isso seria atentar contra o direito que tem cada povo de dirigir a sua vida interna e governar-se. Fomos um Império e somos, hoje, uma República, sem que a mudança de regime nos afastasse dessa política de cooperação, que é uma tradição da nossa história”.

Na prática, o pan-americanismo enfraqueceu a tradicional vinculação do Brasil à Grã-Bretanha e colocou o Brasil na zona de influência dos EUA, liderança do continente em função da sua superioridade econômica e militar. A entrada do Brasil na II Guerra Mundial, no bloco dos Aliados, em 1942, logo após o ingresso dos EUA no conflito, selou a aliança, que permanece, de forma mais ou menos turbulenta, até hoje.

Contudo, o alinhamento não foi incondicional, pois Vargas o atrelou ao financiamento da Siderurgia Nacional, prioridade máxima do governo, e ao apoio à nacionalização dos recursos naturais, particularmente do patrimônio mineralógico do especulador Percival Farquhar – ao que os EUA, nos Acordos de Washington, de 1942, que sacramentaram o apoio estadunidense à criação da Siderúrgica Nacional e da Companhia Vale do Rio Doce, exigiram, em troca, dois assentos no Conselho Diretor da Vale do Rio Doce, concedidos por Vargas. A “Política da Boa Vizinhança” do governo Franklin D. Roosevelt, voltado a atrair os países ibero-americanos para a zona de influência estadunidense e afastá-los da hegemonia britânica e das tentações nazifascistas e soviéticas, foi um gigantesco facilitador da aproximação do Brasil aos EUA, pois contemplou os interesses estratégicos brasileiros. No segundo governo, se Vargas, de um lado, celebrou, mesmo reticente, o Tratado Militar com os EUA, por outro, se recusou a enviar tropas para a Coreia, demarcando, dentro do possível, a autonomia dos interesses brasileiros. O Brasil de Vargas era aliado, não servo estadunidense.

Também no sentido desenvolvimentista e pan-americanista, Vargas promoveu inédita aproximação do Brasil com a hispano-américa. O Brasil, como parte da redescoberta de si, passava a se interessar mais pelas questões continentais, que ele começou a considerar como suas. O Brasil não se prestava mais a ser a reprodução tropical da Europa, pois buscava se impor como potência regional e especificamente americana. Exatamente por isso, Vargas tratou de pacificar as relações com os vizinhos: perdoou as dívidas de guerra do Paraguai e elegeu Argentina e Uruguai, países fronteiriços onde, por muito tempo, perduraram litígios e indefinições territoriais, como suas únicas viagens internacionais oficiais.

Aproximou culturalmente o Brasil do restante da ibero-américa ao introduzir o espanhol como disciplina escolar obrigatória e promover o estudo de temas ibero-americanos nas publicações oficiais do governo, como a revista Cultura Política. A hispano-américa também foi visada como destino das nascentes exportações industriais brasileiras, que, ainda sem condições de competir com os centros capitalistas, eram atrativas somente para países com menor grau de desenvolvimento e mais próximos geograficamente. Daí o empenho governamental em atrair para si o restante da América do Sul através da interiorização da fronteira econômica pela Marcha para o Oeste, tomando da Argentina o posto de primeira potência sul-americana.

Em linhas gerais, a política externa de Vargas primou pela soberania nacional e pelo fortalecimento geoeconômico e geopolítico do Brasil enquanto nação americana, cujas questões se diferenciavam dos centros europeus aos quais o Brasil estava vinculado de forma subalterna desde sua gênese. Enquanto parte do “Novo Mundo”, o Brasil era o “País do Futuro” – alcunha dada pelo escritor austríaco Stefan Zweig, autor de livro homônimo, bastante prestigiado por Vargas –, portador de civilização própria cujas potencialidades seriam realizadas pelo direcionamento nacionalista imprimido por Vargas ao conjunto das relações do País. Daí que o desenvolvimento econômico tenha assumido centralidade, inclusive na política externa, pois, como Vargas afirmou, “Somente os países economicamente fortes são realmente livres. E é essa liberdade que eu desejaria dar a meu país.” (apud PEIXOTO, Alzira Vargas do A., “Getúlio Vargas Meu Pai”, Rio de Janeiro, Objetiva, 2017, p. 94).

Felipe Maruf Quintas, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).