Artigo

A preguiça dos americanos

Data da publicação: 30/09/2014

A economia dos Estados Unidos não se recupera tão bem como se diz, o problema do desemprego permanece sério e uma das mais altas autoridades do governo norte-americano, o Presidente da Câmara dos Representantes, John Boehner, anunciou ter descoberto o maior obstáculo à queda do desemprego no país: a preguiça dos americanos.

Falando presumivelmente a empresários, no Instituto da Empresa Americana, entidade que, pelo nome tão ambicioso, poderia exigir maior Q.I. de seus convidados, Boehner afirmou que os americanos têm, realmente, a ideia de que não precisam trabalhar e de fato pensam:

– Eu realmente não quero fazer nada. Acho melhor apenas ficar sentado por aí.

É inacreditável não que essa seja a opinião do Presidente da Câmara dos Representantes do país mais rico e poderoso jamais surgido na face do planeta. O inacreditável é que um homem de tão insignificante dimensão mental e moral tenha conseguido chegar ao posto de Presidente da Câmara dos Representantes. Como o Presidente dos Estados Unidos é considerado o homem mais poderoso do mundo e, na hierarquia do governo norte-americano, só ele e o Vice-Presidente situam-se acima do Presidente da Câmara, esse Boehner é o terceiro norte americano mais importante em seu país e um dos norte-americanos mais importantes no mundo.

Se Boehner não fosse Presidente da Câmara dos Representantes, sua opinião poderia não ter maior importância. Mas ele dispõe de grande poder de decisão sobre a agenda de deliberações da Câmara e grande poder de persuasão sobre grande parte, talvez mesmo a maioria, de seus colegas representantes.

O mais grave é que essa opinião perversa é compartilhada por quase toda a direita norte-americana, que não conseguiu impedir a eleição e a reeleição do Presidente Barack Obama, mas consegue bloquear a maior parte de suas iniciativas e impedi-lo quase completamente de governar. A mesma coisa aconteceu com o Presidente Bill Clinton e poderia ter acontecido depois dele se seu sucessor não fosse um homem da mesma turma atrasada e ignorante desse Boehner, o ex George W. Bush, considerado o pior de todos os Presidentes dos Estados Unidos, nos duzentos e muitos anos de sua história.

Paul Krugman, o grande economista que o jornalismo teve a sorte de cooptar, respondeu em sua coluna:

– Essa está longe de ser a primeira vez que um conservador proeminente diz algo assim. Desde que a crise financeira nos lançou em uma recessão, tem sido um refrão ininterrupto da direita que os desempregados não estão se esforçando, que eles estão aceitando tranquilamente [o desemprego], graças aos benefícios generosos para desempregados, que são constantemente caracterizados como “pagamento para pessoas não trabalharem”. E o impulso de culpar as vítimas de uma economia deprimida provou ser imune à lógica e evidências.

Segundo Krugman, são quase 3 milhões os americanos que não conseguem trabalho já há seis meses, período que é a duração máxima habitual de seguro-desemprego. Apenas 26% dos americanos desempregados recebem algum tipo de benefício por desemprego, o que é o mais baixo percentual em décadas. O valor total de benefícios por desemprego é hoje menor que em 2003, quando a taxa de desemprego era quase a mesma de agora.

A afirmação de que os americanos estão ficando preguiçosos combina ignorância de um lado e interesse do outro. A redução drástica dos benefícios aos desempregados tem sido a oportunidade de reduzir os impostos dos ricos. Daí o festival de ostentação, consumismo e vulgaridade, as mansões cada vez maiores e mais suntuosas, os iates de luxo, os carrões que bebem gasolina em excesso e poluem a atmosfera. Daí o desarranjo de uma economia em que sobra tanto a uns poucos e falta tanto à maioria.

Mas os Estados Unidos não foram sempre assim. Em meados do século 19, o futuro Presidente Abraham Lincoln fez uma conferência na sede de um sindicato em Nova York sobre a questão que apaixonada e dividia os americanos e logo os levaria à guerra civil: a escravidão.

Os Estados do Sul, escravagistas, queriam estender a escravidão aos novos territórios conquistados a oeste e, se pudessem, dariam um jeito de estendê-la também aos Estados do Norte. Estes ou queriam confina-la ao Sul ou a aboliriam.

Lincoln, na conferência, lembrou que os líderes do Sul acusavam o Norte de praticar outra forma de escravidão – a dos operários brancos de suas fábricas, condenados a salários de fome e a um regime de trabalho tão desumano quanto o das plantations do Sul. A Europa vivia nesse momento o trauma de suas revoluções, já sociais, de 1848. Muitos, na Europa e nos Estados Unidos, perguntavam-se quando a maré socialista chegaria aos Estados Unidos, pois isso parecia inexorável. Lincoln achava que não.

Os Estados Unidos, reconheceu, vivem duas situações explosivas – a dos escravos negros no Sul e a do operariado branco do Norte. Isso poderia conduzir à revolução, a não ser pelo fato de que, paralelamente a essas duas escravidões, havia no país um enorme contingente de trabalhadores e pequenos empreendedores livres. Em cada cidade nova que se fundava, surgiam logo o dono do armazém, o dono da farmácia, o médico, o advogado, o contador – e o xerife e o dono e as dançarinas do saloon. A esse contingente somavam-se os pequenos agricultores, milhões, cujo número se multiplicaria exponencialmente depois da lei do homestead (reforma agrária), já no governo de Lincoln.

Fosse essa ou não a razão, o fato é que os Estados Unidos não passaram até hoje por qualquer revolução. Mas esse contingente de trabalhadores e empreendedores livres deve ser hoje menor, proporcionalmente aos trabalhadores assalariados, devido às fusões e incorporações que, nas últimas décadas, colocaram a economia americana sob o domínio das grandes multinacionais. E os avanços da tecnologia e da automação pesam consideravelmente sobre os números do desemprego.

Enquanto a ignorância e o obscurantismo continuarem a predominar sobre o pensamento conservador nos Estados Unidos, um Presidente esclarecido e avançado como Barak Obama pouco poderá fazer.