Artigo

Ai de vós, mestres da Lei e Fariseus hipócritas

Data da publicação: 31/08/2017

Mateus inicia seu evangelho (Mateus 23) com a frase que intitulo este artigo. Por que este clamor contra os que, em princípio, seriam os garantidores, os responsáveis pela justiça e harmonia entre as pessoas? Não é resposta fácil.

Iniciemos pela constatação do jurista, historiador e pensador António Manuel Hespanha (O Caleidoscópio do Direito, Almedina, Coimbra, 2ª edição reelaborada, 2014):

“O mundo está cheio – cada vez mais cheio – de senso comum, de imagens feitas, de ideias recebidas e repetidas acriticamente, de uma ditadura doce dos meios de comunicação social que, além de confundir simplicidade com simplificação, torna automaticamente aceites os pontos de vista mais problemáticos”.

Vamos organizar nossas reflexões em dois grupos: um, poder e direito, outro, justiça e judiciário.

O poder, por muitos séculos, foi considerado uma emoção humana, ao lado das religiões e do amor (Adolf Berle, Power, 1969). Não me prenderei na vasta literatura que, da antiguidade clássica, passando por Santo Agostinho e Marx, procuraram conhecer sua gênese e sua extensão.

Pragmaticamente vou me limitar às manifestações ou expressões do poder: o poder militar, o poder econômico, o poder da ciência e da tecnologia, o poder psicossocial e o poder político. Onde poderíamos incluir o poder da lei, da intitulada imprecação evangélica?

Não sendo obtido pela força das armas, pelo emprego da riqueza, pela capacitação científica, restaria ao direito o poder semelhante ao da crença, ao da criação e comunicação humana, como uma obra de arte ou um mito, ou então o poder político.

E sendo o direito um poder político, ele poderá ser analisado como impositivo, ditatorial ou democrático, consensual.

Voltemos a Hespanha, na obra já citada: ”a questão principal reside na diferença específica do direito em relação às outras ordens normativas ….. ou seja, na virtualidade de o seu comportamento ser imposto pelo Estado sob a ameaça de uma sanção”.

Está na Roma republicana o princípio democrático, que dispõe ser o direito aquilo que o povo assim estabeleceu. Posição que se convencionou chamar: positivismo legalista. Embora muitos vejam neste entendimento o autoritarismo do Estado.

Que ameaças sofreriam um direito democrático? Para Hespanha, o primeiro risco é que alguém substitua o povo ao criar o direito. Alguma alusão à ação empoderada da Lava Jato? Trataremos disso nas reflexões sobre justiça e judiciário.

Outro risco é o da substituição por um direito baseado em normas pretensamente naturais, como as “leis do mercado” ou da “competição humana”. O terceiro risco, incrivelmente apoiado até por quem se diz de esquerda, é a subordinação do direito efetivamente desejado por uma comunidade – seja um município ou um Estado Nacional – pelo pretenso desejo da comunidade global, que desconheço como teria sido aferido.

Cuidemos destes dois últimos riscos.

Como sabem meus caros leitores, a banca (sistema financeiro internacional) tem intenção de dominar o mundo. E usa, no rol de seus sofismas, uma pretensa natureza humana que busca, antes do bem estar, a racionalidade econômica. Jürgen Habermas, um internacionalista, tratando (Direito e Democracia) da colonização do “mundo da vida” pelo “sistema”, olvida que os próprios dilemas dos indivíduos não chegam, muitas vezes, a ser apreendidos por eles. Ora, como tratar o direito como alguma coisa que nem é entendida pelas pessoas? Ou como colocar a competitividade à frente da solidariedade, tratando da “natureza humana”.

Vemos, portanto, que o direito vai se desgarrando dos seus conteúdos para se fixar em argumentos. Assim surgem, por exemplo, ideias exdrúxulas, como o “direito justo”, de Karl Larenz (haveria um direito injusto?), que tanto influencia alguns poucos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão além da compreensão de questões meramente processuais.

Entendemos que o direito, como parte do poder político, só pode ser exercido dentro das condicionantes democráticas, isto é, como organismo dependente daqueles diretamente elegíveis. Esta ideia de um poder sem voto, que pode arbitrar os poderes populares, é mais uma oportunidade de outras expressões de poder dominarem um povo. Infelizmente, e não só no Brasil, isto se observa há décadas.

O jurista e historiador John G. A. Pocock afirma que “de certa forma, a perda da cidadania, que nos afeta hoje, desponta na medida em que a soberania e a nação desaparecem sob o regime polimórfico do mercado”(na versão em francês, de 1997, de The Machiavellian Moment, 1975, tradução livre).

Ainda uma consideração, antes de fecharmos o primeiro grupo de reflexões. O jurista brasileiro, professor Marcelo Neves, especialista em Teoria do Estado, com forte influência do sociólogo alemão Niklas Luhmann, trata da “acentuada interpenetração entre os sistemas jurídico e político” (Entre Têmis e Leviatã, Martins Fontes, SP, 2016). E, nesta visão sistêmica do direito, deixa-nos entrever uma saída para esta complexa relação entre o direito e o poder político.

O poder político, originado da livre manifestação dos cidadãos, pode ser tratado em dois subsistemas: o legislativo e o administrativo. Quanto ao sistema das normatizações, desde a lei maior, constitucional, até os detalhamentos regulatórios, não parece haver dúvidas, nem contestações: pertence às assembleias ou congressos que expressam a vontade popular. Quanto à face administrativa, ao direito, como o estudo e a aplicação dos arbitramentos, suas exigências e seus procedimentos, caberiam nas funções administrativas do poder político.

Busco, no grande constitucionalista J.J. Gomes Canotilho, em seu alentado Direito Constitucional e Teoria da Constituição (Almedina, Coimbra, 7ª edição reimpressão, 2003), a constatação de que “a teoria da separação dos poderes engendrou um mito. Consistiria este mito na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados …… foi demonstrado que esta teoria nunca existiu em Montesquieu …… os juízes eram apenas a boca que pronuncia as palavras da lei”.

Cuidemos, agora, da justiça e do judiciário.

Começo por uma bela frase de Christian Atias, na “Épistemologie du droit”, em tradução livre:

“A mais bela qualidade do jurista é esta honestidade intelectual que transforma um ser tomado por paixões, por convicções e opiniões pessoais num observador imparcial e desinteressado”.

Colocar na complexidade da pessoa humana, e em sua formação, a absoluta responsabilidade pelos feitos públicos é uma desonestidade intelectual, para não ser mais agressivo.

É o sistema, engendrado por um conjunto de interesses, que possibilita, por exemplo, a corrupção parlamentar, do executivo e do judiciário, que tanto nos infelicita, principalmente após o golpe de 2016.

Se qualquer sistema é passível de fraude, ele também, quando há efetivo empenho da sociedade, busca a identificação e a correção dos malfeitos. Não me deterei em exemplos, mas mencionarei apenas um caso, que profissionalmente acompanhei de perto: a condenação do Presidente da empresa de petróleo francesa Elf-Aquitaine, Loïk Le Floch-Prigent, envolvendo vários membros do governo na época. Um bom sistema permitiu, sem necessidade de delações, identificar o ilícito, seus participantes e puni-los, independentemente das injunções partidárias.

A justiça começa pelo tratamento igualitário de toda população, o que não existe e sua ausência não constrange a sociedade brasileira. Houvesse um efetivo repúdio, não saberíamos de fatos que, até pela comprometida grande imprensa, nos chegam cotidianamente ao conhecimento; quer de improcedentes prisões quer de escandalosas solturas.

Ora, se de início já não acreditamos na justiça, e com boas razões, o que dirá de um “poder” que, nitidamente, tem um lado.

O histórico da justiça no Brasil é triste. Afinal, formou-se para defender uma aristocracia que nela colocava seu primogênito. Mesmo com toda abertura que o tempo lhe impôs, ela não se desgarrou desta ideologia da segregação.

E disto se aproveita a banca. Mais confiável do que o poder militar, que mostrou seu lado nacionalista no decorrer do golpe de 1964, a banca mirou no judiciário e seu braço acusador para desencadear, sempre com a mídia, o golpe de 2016.

Penso que a profunda reforma do judiciário, que nem o Presidente Geisel conseguiu realizar, seja de fundamental importância e necessidade para reconstrução dos poderes nacionais, o Estado de direito e começarmos a ter segurança jurídica e tranquilidade para a vida da população brasileira.

Concluo estas reflexões com uma transcrição, que expressa meu próprio entendimento, do professor Wanderley Guilherme dos Santos, em “Da oligarquia e suas máscaras institucionais”, que compõe o livro “Décadas de Espanto e Uma Apologia Democrática” (Rocco, RJ, 1998):

“Falta-nos fundamentalmente um contrato social que seja a expressão efetiva dos valores com os quais desejamos estar comprometidos. E falta-nos decidir se já alcançamos o ponto em que os custos da tolerância são inferiores aos custos da coação. Isso pode aprender-se através do bom combate político. Ou à antiga, pela força. Para mim, voto pela boa competição política”.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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