Artigo

Ao mestre, com carinho

Data da publicação: 24/09/2018
Autor(es): Ronaldo Tedesco

O engenheiro desempregado resolve dar aulas e vai para uma escola no subúrbio de Londres. Lá enfrenta as péssimas condições de ensino, as hostilidades e a difícil condição social dos alunos. Precisa superar a violência e os problemas para cumprir sua missão de educador. Ao final, recebe uma pequena homenagem de seus alunos.

Na semana passada, no CIEP Mestre Marçal, em Rio das Ostras, a 150 km do Rio de Janeiro, um professor da rede pública estadual foi humilhado, ameaçado e agredido de forma racista por seus alunos, entre 17 e 18 anos, quando tentava aplicar uma prova na terça-feira, dia 18 de setembro de 2018.

O professor de Língua Portuguesa Thiago dos Santos Conceição temendo pela vida, preferiu se exonerar. Quem não pediria? Talvez o personagem do filme. A realidade das escolas do Brasil de 2018 nos coloca desafios a todos que estamos precisando de respostas para os diversos problemas socais que vivenciamos. E a educação talvez seja um dos principais temas a serem enfrentados.

A educação é jurada por todos como a única saída para o país, mas quando os projetos são apresentados, tanto os governos como os setores privados apresentam ideias limitadas à aplicação de toda estrutura educacional, desde o básico até a pós-graduação, nos processos práticos que podem ser aproveitados para a empregabilidade e o desenvolvimento das profissões. É a educação voltada para o mercado de trabalho, não mais para produção de conhecimento e desenvolvimento de inteligência.

Mais do que aplicação funcional, o conhecimento como matéria prima da excelência; mais do que o programa, o desenvolvimento das inteligências como propulsoras do aprendizado; mais do que preceito ou preconceitos, as contradições como meio de pensar o novo; mais do que prédios, salas, quadro negro, giz e computadores, a estrutura educacional para dispor e construir o lúdico e turbinar mentes. Nada disso tem valor para uma parte significativa dos pensadores modernos da Educação.
Outra parte, importante dizer, resiste bravamente. Tenta apontar caminhos e soluções que estão ameaçadas pelo imediatismo da modernidade. Procura provocar mentes e confortos para liberar pensamentos e incentivar a criação humana. Não há apenas uma forma de conhecimento válido para a sociedade. E limitar esse conhecimento significa reduzir nossas possibilidades. A disponibilidade da informação, que a cada dia se torna quase que universal em nossos tempos, não deve nos satisfazer. É preciso permanentemente desenvolver o contraditório para extrair o conhecimento daquilo que é apenas informação e opinião, mas que pode servir para o avanço da sociedade se for trabalhada, entendida, questionada, aperfeiçoada, negada e superada.

Não é possível afirmar, 150 km longe do CIEP Mestre Marçal, que o Professor Thiago esteja em um ou outro grupo. Ou se prefere se situar numa posição intermediária, tão imprudente quando se trata de debates estratégicos. Mas pela resposta que o professor nos deu em um programa de entrevistas que participou (“Esses alunos estão gritando por socorro também…”), sua percepção social do processo que viveu tão sofridamente demonstra uma maturidade que precisamos em nossos educadores.

Thiago nos falou também que trabalha em três municípios, acordando todos os dias às quatro da manhã para dar aulas. Imaginei logo o professor aguardando sua condução, provavelmente um ônibus de carreira, com o dia quase amanhecendo, muitas vezes chuvoso, sempre perigoso. A deterioração da maioria dos serviços públicos fornecidos em nosso país não é muito diferente do que acontece com a Educação. E Thiago tinha mais de duas horas e meia por dia para refletir profundamente sobre tudo isso antes de entrar em sala de aula.

O engano, o profundo engano que os poderosos e os políticos da classe dominante desse país cometem é achar que as pessoas não percebem tudo o que lhes oferecem como projeto de sociedade e de futuro, para nós e nossos jovens. A percepção pode ser até inconsciente, mas se materializa nas condições objetivas da vida que levamos. Assim, foi natural a reação que vimos de Thiago, no vídeo que viralizou, diante da agressão que sofreu de seus alunos. Embora amedrontado, atacado e humilhado, reage com resignação e paciência a todos os desatinos a que é acometido.

Da mesma maneira que os alunos, diante dos mesmos desafios que Thiago, tenham optado pela violência, a humilhação e o racismo como forma – reprovável – de manifestar sua insatisfação com tudo, descontando no mais fraco – seu professor – as frustações e angústias cobertas por uma fúria racista injustificável.

Boa parte da sociedade hoje expressa e aposta em respostas desprovidas de qualquer conteúdo de inteligência, somente baseada na possibilidade remota de que nossas angústias possam ser resolvidas pela expressão da força bruta para submeter todos os que não suportamos ou não conseguimos entender.

Assim, negros, homossexuais, pobres, trabalhadores (e judeus e ciganos e mulçumanos e o que mais for) passam a ser os culpados. E a terem contra si o ódio e as ações violentas, humilhantes e discriminatórias. Para além de toda a carga social que recebemos da classe dominante, que somente nos enxerga como recursos para atingir maiores lucros, desde que não possamos usufruir da maior parte do que produzimos.

Aqueles que pensam que assim vamos resolver os problemas graves que temos que enfrentar, precisam responder a uma questão decisiva: ao fim e ao cabo, quando a maioria de negros, homossexuais, pobres, trabalhadores (e judeus e ciganos e mulçumanos e o que mais for) for dizimada, ultrajada, violentada, morta, como farão para resolver o problema social que permanecerá, agravado então pela intolerância, pela discriminação, pelo racismo e pelo ódio?

Não é novidade a intolerância e o racismo. A humanidade reproduz esse comportamento em diversos momentos. O ódio e a intolerância são a expressão mais vil de um processo de divisão de classes que pressupõe o merecimento de alguns poucos em detrimento de todos.

Precisamos fazer algo a respeito. E logo. Uma aula pública em Rio das Ostras seria um começo importante para a cidade e os alunos fazerem uma reflexão conjunta sobre os graves problemas que estão enfrentando agora. Mas é preciso muito mais.
Os brasileiros precisam muito de professores como Thiago e de sua luta cotidiana para educar e valorizar a condição humana. Essa luta é fundamental para nos tirar da condição colonial que os poderosos desejam nos deixar. É uma luta de todos nós que ultrapassa os limites de Rio das Ostras ou do Estado do Rio de Janeiro. E mesmo as fronteiras de nosso país. De Londres na Inglaterra à Cidade do Cabo na África do Sul, essa luta é uma só pela dignidade, contra a opressão e a exploração.
Precisamos dos Mestres e de seu carinho. Precisamos lutar para que eles possam realizar sua obra. Nos unimos com eles em sua indignação. A eles, nosso carinho.

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