Uma jornalista australiana de 40 anos, Amanda Goff, de certa notoriedade na televisão de seu país, para a qual faz a cobertura de dois setores de grande audiência, beleza e celebridades, revelou num programa de ainda maior audiência, Sunday Night, provavelmente uma espécie de Fantástico de lá, que há dois anos leva uma bem-sucedida vida paralela como prostituta de luxo, com o codinome de Samantha X.
Amanda, sem dúvida, tem todo o direito de levar essa vida dupla e creio que também o de não ser tratada por essa palavra tão desagradável, desqualificadora e fora de moda – prostituta. No Brasil ela podia apresentar-se como garota de programa, expressão muito mais simpática e já adotada por todos os sites de profissionais do sexo.
O que me leva a falar dela não é sua história, são seus argumentos e o que podem significar para os leitores de um veículo tão marcadamente político como este. Para situar o caso de Amanda/Samantha basta registrar, do que ela disse no Sunday Night, que “decidiu tentar a sorte na nova profissão ao visitar um bordel de luxo em Sidney, aproveitando a folga da hora de almoço”.
Com vinte anos de carreira na profissão de jornalista, que pretende conciliar com a de profissional do sexo, Amanda, depois de divorciar-se, saiu e fez sexo com vários homens e teve experiências bem desagradáveis. Foi então que pensou:
– Ninguém mais var tirar vantagem de mim.
A isso, aparentemente, seguiram-se a visita ao bordel de luxo e a decisão de profissionalizar-se.
Dois anos depois, com a experiência acumulada nesse período, Amanda/Samantha explica:
– Sou uma mulher de negócios, vendo meu tempo e sexo. Sexo é um negócio e um grande negócio.
Por que, devem ter perguntado, vender o próprio corpo?
– Não vendo o meu corpo – responde ela – só decidi cobrar por algo que já fazia de graça.
Samantha cobra 800 dólares (1.890 reais, esclarece o noticiário) por uma hora de programa e 5 mil dólares (11,8 mil reais) por uma noite completa. Fora isso, tem o salário da televisão, os direitos autorais do livro Hooked by Samantha X, “Fisgado por Samantha X” (hook, em inglês, é gancho. Vide o Capitão Gancho de Peter Pan; hooker é prostituta), e mantém um site, que também pode render algum, no qual fornece dicas sobre sexualidade e faz publicidade de seus serviços.
Como profissional do sexo, Samantha não trabalha em tempo integral. Divorciada, compartilha com o ex-marido a guarda dos filhos, de menos de 7 anos e passam metade do tempo com ela. Se só agora, dois anos depois, resolveu tornar pública a duplicidade de sua vida – disse ela – foi para evitar que os filhos soubessem por terceiros.
Esse é o resumo do principal da entrevista de Amanda/Samantha. Seus atos não comportam crítica ou maior discussão, mas seus argumentos nos levam a discutir o contexto de valores no qual ela optou, como diz, por cobrar por uma coisa que fazia de graça. Talvez sem ter consciência disso, Samantha, que exerce duas profissões muito exigentes em matéria de inteligência, aderiu às noções implícitas no modelo econômico do neoliberalismo, hoje vigente em quase todo o mundo. A principal dessas noções é a de que tudo pode ser mercadoria e o valor supremo nas sociedades é o dinheiro.
Se tudo pode ser mercadoria, o corpo de Samantha pode ser tratado por ela como mercadoria e poderia ser alugado, já que ela considera que não o vende. De fato Samantha não o vende; se vendesse, a transação seria legalmente nula. O que ela vende são serviços sexuais. Para prestá-los, aluga o corpo. Sexo, diz ela, é um grande negócio.
Samantha, no passado, poderia ser condenada judicialmente e molestada pela polícia, porque a prática da profissão do sexo, então sempre chamada de prostituição, era crime. Na atualidade Samantha poderia, em tese, ser condenada moralmente, mas não pode ser condenada, nem sequer criticada, porque na prática ela está aplicando ao próprio corpo a noção neoliberal, vigente hoje na economia de quase todos os países, de que tudo é ou pode ser mercadoria e de que o valor supremo nas sociedades é o dinheiro. Se tudo pode ser mercadoria, o corpo de Samantha também pode. Se o valor supremo é o dinheiro, Samantha está perfeitamente correta ao dizer que é uma mulher de negócios, que sexo é um grande negócio, que vende seu tempo e sexo e que só decidiu cobrar por algo que já fazia de graça.
Não discuto a questão a partir de um ponto de vista moralista ou puritano, mas de um ponto e vista político. O neoliberalismo ampliou consideravelmente a permissividade na vida econômica e hoje as pessoas admitem fazer o que no passado teriam vergonha de fazer e por isso não faziam.
O caso Enron, no passado recente dos Estados Unidos é um bom exemplo. Os funcionários dessa empresa tinham um plano de previdência semelhante ao da Petrobrás no Brasil, o plano de benefício definido, que assegura ao funcionário uma aposentadoria mínima decente e por isso exige mais prudência na aplicação dos recursos arrecadados e maior seriedade inteligência atuariais. Os safados (não há outra expressão) que administravam o fundo de pensões da Enron, e o faziam no interesse desta, não dos funcionários e até em detrimento destes, conseguiram substituir esse plano pelo de contribuições definidas, que não garante a aposentadoria mínima e permite aplicações imprudentes e as mais descabeladas aventuras contábeis e atuariais.
Quando a Enron quebrou, o fundo de pensões afundou junto e os funcionários ficaram privados de aposentadoria. Não foi só por isso que a Enron quebrou. Foi por safadezas da mesma ordem, legitimadas, até se constatar sua extensão e gravidade, pela permissividade do neoliberalismo.
Aqui no Brasil, propuseram na Petrobrás a mesma substituição do benefício definido pela contribuição definida, o que exigiu da AEPET uma luta difícil, prolongada, paciente, desgastante que não sei se já terminou, uma luta semelhante às que nem sempre conseguimos travar contra as mil iniciativas da política neoliberal.
O que traz para mais perto de nós a questão suscitada pelas confissões de Samantha X: um fundo de pensão também é mercadoria que pode ser negociada como uma garrafa de vinho ou um automóvel? O petróleo do Pré-Sal pode ser negociado como uma hora de sexo com Samantha? Nem Adam Smith, o grande teórico do capitalismo, admitia a permissividade econômica praticada em seu nome, nos dias de hoje. Ele achava que a tal mão invisível do mercado tinha de ser controlada, para que não permitisse práticas que hoje são vistas com normais e até legítimas.
O caso de Samantha não é um drama que tenhamos de lamentar. É apenas um indicador de como somos hoje levados a pensar sobre nós mesmos. Nenhum dos estridentes senhores que defendem a permissividade absoluta no mercado gostaria que uma filha sua fizesse a mesma opção de Samantha. Para serem coerentes, porém, teriam de reconhecer que essa opção é uma decorrência necessária dos valores que sustentam quando se trata da economia de seu país.