Em satírica crônica, Frei Beto diz que a conhecida história infantil, do título deste artigo, seria noticiada pela revista Veja com a manchete: “Lula sabia das intenções do lobo”.
Nas ditaduras, de qualquer ordem, aguçam-se as ações antihumanas, eivadas de irracionalidades.
Com fino humor e profundidade analítica, Marcos de Oliveira, em sua coluna Fatos & Comentários (Monitor Mercantil, 05/10/2017), trata do surto moralista que, subitamente, envolve parte da sociedade do sul e sudeste brasileiro em exposições de arte plástica (Alguma coisa está fora da ordem).
Se já nos é difícil acompanhar as transformações sociais e econômicas, que dirá as manifestações culturais sob a designação de artísticas.
Convido meus caros leitores a refletir sobre estes sombrios momentos de nossa contemporaneidade, em especial do Brasil após o golpe de 2016.
No século XX, de permanentes guerras, a sociedade humana passou por profundas e rápidas transformações. Peço que imaginem o início daquele século no Brasil, recém saído da tragédia da escravidão, começando o período republicano, com homens de chapéu e senhoras com saias nos tornozelos, e de como chegamos ao século XXI.
Na conturbadíssima Europa, por toda primeira metade do século XX surgiram pensadores, filósofos, cientistas sociais que se debruçaram na análise destas transformações e nos legaram instrumentos metodológicos e referenciais para reflexão. Talvez possa arriscar uma unidade afirmando que eles percebiam a sociedade que viviam sob as explicações/razões/ideias marxistas e iluministas.
Tomemos a questão do direito, como uma reflexão para organização social. Ponho o direito em questão por considerar a justiça ser, atualmente, o poder de dominação imposto pelo capital financeiro internacional (a banca).
Na Alemanha, da primeira década dos anos 1900, os juízes eram funcionários não remunerados do Império. Ora, eles tinham condição de sobrevivência – e com as exigências da classe social e da ocupação pública – que independia de salários. Era a classe que dispunha, para si e ao arrepio dos interesses opostos, o poder de decisão nos conflitos. E sabemos que o conflito, a tensão social é própria do Estado de classes. A inexistência do conflito indica a ditadura, o autoritarismo, a negação das classes.
A Constituição de Weimer, elaborada e promulgada após a derrota alemã na I Grande Guerra (1919), constituiu um marco na história do Estado Social, por oposição ao estado do indivíduo. E não chegou a ser integralmente implementada pela reação dos poderes até então governantes. Todos sabemos aonde levou este atraso civilizatório, quando 1932 chegou.
Para confrontar, examinemos os Estados Unidos da América (EUA), que se tornaram o país chave do capitalismo no século XX. Em 1881, seis importantes sindicados se uniram a vários grupos trabalhistas e formaram a Federação Trabalhista Americana (AFL). Começou com 138 mil associados que eram, em 1898, o dobro, chegando a meio milhão em 1904. Em 1920 totalizavam quatro milhões.
E não se deu sem luta este fortalecimento trabalhista, enquanto na Alemanha os operários continuavam sem voz nem direitos. Certamente o caro leitor conhece as atuações da Agência Pinkerton agredindo e matando grevistas, provocando a intervenção do Estado para “restaurar a ordem pública”. Foi a ação sindical, elevando salários e exigindo tempo para gastá-lo, que ajudou a construir o êxito industrial estadunidense.
Mas a sociedade contemporânea não poderia se esgotar nas relações de troca, deveria ser examinada num campo onde a liberdade individual se conformaria segundo o bem geral.
Examinemos os eventos no Rio Grande do Sul, em São Paulo e a manifestação do Prefeito Bispo no Rio de Janeiro, referidas na citada coluna do Monitor Mercantil.
O caso tem início com a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença da Arte Brasileira”, pela área cultural de um banco estrangeiro, em Porto Alegre. Havia, nas obras expostas, nus e cenas eróticas, muito comuns em reproduções orientais, especialmente indus e chinesas. Grupos conservadores, obviamente ignorantes culturais, em ação que lembra as alemães dos anos 1920, levaram o banco a interromper e, posteriormente, cancelar a exposição.
O representante do Ministério Público Federal, responsável pelos Direitos do Cidadão, manifestou sua crítica ao encerramento da amostra, em nota, onde lembrava “episódios de destruição de obras de arte durante o período nazista”. Poderia este procurador também mencionar os talibãs destruindo imagens de Buda no Afeganistão.
Ao mesmo tempo e sem qualquer ligação com o evento de Porto Alegre, em São Paulo, em exposição fechada da performance do coreógrafo Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna – MAM-SP – uma criança toca no pé do artista nu. Vê-se, de início, que uma criança não entraria sozinha numa exposição fechada e o adulto responsável, provavelmente, burlou a vigilância para o ingresso do menor.
Misturando, não se pode afirmar que intencionalmente, alhos com bugalhos, o bispo pentecostal, do religioso PRB que ocupa a Prefeitura do Rio de Janeiro, lança-se contra a exposição de Porto Alegre, porque seria exibida no Rio de Janeiro, e, conforme o jornal O Globo (02/10/2017), por não ser “legal estimular uma criança a tocar em um homem nu em ‘nome da arte’”. E manifestantes, surgidos não se sabe de onde, atacam o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, clamando contra o apoio à pedofilia (sic). Curioso entendimento de tocar num pé!
Todo este enojante movimento reflete um país sem governo, sem lei, em processo de desagregação social. E nisso lembra Berlim pré-nazista.
O pensador estadunidense Fredric Jameson escreveu que a estética, o consumo e a mídia estariam adquirindo novos papéis, fazendo com que os indivíduos, tendo uma identidade fragmentada, se tornassem incapazes de serem os agentes de seus destinos. O homem não teria condições de controlar os símbolos, que se formam no mundo globalizado, e substituiria a experiência social por um simulacrum do mundo real, pelo mundo da hipersimulação (Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism, Duke University Press, USA, 1991 e Ideologies of Theory, Verso Press, USA, 2008).
Não vejo nestes casos – o cancelamento da exposição, a fraude do adulto colocando a criança em local para ela interditado, na ingenuidade infantil de tocar o pé de um homem nu, ou, pior de todas, o oportunismo político e a ignorância de um Prefeito e dos convocados para manifestação no Rio – mais do que a adesão à banalidade da vida, à corrupção das mentes, esta muito pior do que a dos bolsos.
Este é, realmente, o fim da história, não como uma nova aurora, mas como a escravidão do pensamento, a via das políticas do mal, da concepção ilusória do status, magnificado pelo consumo endividado, como deseja o sistema financeiro internacional. Um mundo dos ricos consumidores, ilhados em confortáveis fortalezas, e dos pobres produtores, apáticos, satisfeitos em suas mediocridades culturais, disputando as migalhas dos feitores.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado