Aos pobres dava a caridade educativa mais barata que pudesse, indiferente à sua qualidade. De fato, nunca quis dedicar ao povo aquela atenção escolar minimamente necessária para a alfabetização generalizada. Não tinha para isso a inspiração luterana de ensinar a ler para rezar, nem a napoleônica de formar a cidadania. A educação das crianças e a fartura das casas, de fato, nunca foram preocupação das classes dirigentes brasileiras” (Darcy Ribeiro, “Prólogo – A educação e a política”, in Carta’ nº 15 O novo livro dos Cieps, Senado Federal, Brasília, 1995).
Os Centros Integrados de Educação Pública – Cieps – são um projeto nacional que atende às exigências da consciência na formação da cidadania. Neles estão os espaços, as instalações e, obviamente, o projeto pedagógico para a formação integral, a saúde e o despertar para as habilidades das crianças.
Antes de discorrermos sobre os Cieps, verifiquemos o que deve constituir e por quanto tempo o ensino para as crianças, para os adolescentes e os jovens. Manuel Bergström Lourenço Filho (1897–1970) foi dos grandes pedagogos brasileiros, participante do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira entre outros.
Em trabalho publicado em 1961, Lourenço Filho apresentou seu estudo dos sistemas de ensino de dez países. Dele retiramos alguns dados para confrontarmos com a realidade atual brasileira (2021) e para o reerguimento do projeto dos Cieps.
Educação Comparada é o volume V, das obras completas de Lourenço Filho, publicadas pela Edições Melhoramentos (SP, 1961). Além das descrições do sistema de ensino na Inglaterra, na França, na então República Federal Alemã (Alemanha Ocidental – RFA), na Itália, na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), nos Estados Unidos da América (EUA), no México, na Argentina, no Japão e na Índia, ele ainda discorre sobre a Educação Rural no México e o Ensino Primário na América Latina.
Na Inglaterra e no País de Gales, o ensino primário e secundário, doravante denominados “ensino fundamental”, tem início com crianças de três anos (creche) e conclui com o jovem de 18 anos. O mesmo ocorre na Itália e na URSS. Sempre atentando que os dados, coletados por Lourenço Filho, são do início da década de 1960.
Este ensino fundamental, no México e no Japão, começa aos três anos e termina aos 17. Na Argentina vai dos três aos 16 anos. Na Alemanha dos três aos 19 anos, na França dos dois anos aos 19 anos e nos EUA dos dois aos 21, sendo que a partir dos 17 anos é ensino profissional, equivaleria aos cursos das nossas escolas técnicas. Na Índia não havia legislação específica mas as crianças estudavam dos seis aos 16 anos.
Hoje há no Brasil a seguinte distinção, estabelecida pela Lei 12.796, de 4/4/2013:
a) educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos 17 anos de idade, organizada da seguinte forma:
1) creche, para crianças até quatro anos de idade;
2) pré-escola, para as crianças de quatro a cinco anos de idade;
3) ensino fundamental, dos seis aos 14 anos;
4) ensino médio, dos 15 aos 17 anos.
Ou seja, o Brasil se insere, no que se refere ao tempo de aprendizagem, como a maioria dos países estudados por Lourenço Filho, há mais de 60 anos. No entanto sabemos da evasão escolar, das insuficiências em número e formação dos professores e das condições físicas, muitas vezes mais do que precárias, de grande número das escolas brasileiras.
As elites brasileiras, como assinalou Darcy Ribeiro, jamais se preocuparam com a educação, com a saúde e com a alimentação da população que sempre as serviu. O Ciep deveria se tornar um projeto nacional, da responsabilidade do governo nacional, porém, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), para ser executado pelos municípios.
Desenvolvamos a seguir algumas características e reflexões sobre o Ciep, a partir de O Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro (Bloch Editores, RJ, 1986) e, também organizado por Darcy Ribeiro, O Novo Livro dos Cieps, já citado.
Iniciemos pelo espaço. O projeto de Oscar Niemeyer estabelecia o “Ciep padrão” com 6.600 metros quadrados, assim distribuídos: 5.200 para o prédio principal, 320 para alojamento de residentes e biblioteca e 1.080 para o ginásio. “Em terrenos menores, que não comportavam as três edificações, foi concebido o Ciep compacto, com 5.200 m²”, e um terceiro andar para o ginásio, biblioteca e residências (“A Arquitetura dos Cieps”, in O Novo Livro dos Cieps).
Esta concepção dos anos 1980, passados mais de quatro décadas, mereceria algumas considerações. Não se previa a creche, nem maior integração com a comunidade. Também a questão pedagógica, tratada mais adiante, mereceria acréscimos pela própria transformação tecnológica. As construções do prédio principal, ginásio e a terceira edificação permaneceriam como no projeto original. Seriam destinadas novas áreas para creche, para existência de horta, para oficinas e para construção de um auditório, misto de teatro, cinema e pavilhão para outros eventos, conectado à rua, para fácil e seguro acesso pelos moradores da comunidade/bairro ao Ciep. Seria um Ciep mais integrado e identificado com a população em seu redor.
A “Estrutura do Programa Especial de Educação”, como preconizada em O Livro dos Cieps, seria revista para sua inserção neste projeto mais amplo de Construção do Estado Nacional, no conjunto da Cidadania, subconjunto Consciência, como apresentados nos artigos desta série.
Em 1995, Darcy Ribeiro apresentou o “Balanço Crítico de uma Experiência Educacional” (in O Novo Livro dos Cieps), onde além da lamentável perda pela fúria destrutiva dos Cieps, desestruturando 406 dos 500 construídos, pelo preconceito, pela politicagem baixa e pelo permanente combate à educação promovido pelas elites no poder no Brasil, amplia as possibilidades dos Cieps, não apenas na área da consciência, mas avançando naquela da comunicação e da participação da sociedade.
A proposta pedagógica do Ciep inaugurou uma etapa diferente e inovadora na história da educação no Brasil pela efetiva integração escola-casa. Para isto, todas as pessoas envolvidas no planejamento, organização, execução das tarefas nos Cieps deveriam conhecer e debater a nova proposta educacional. “Ao invés de escamotear a dura realidade em que vive a maioria de seus alunos, provenientes dos segmentos mais pobres, o Ciep compromete-se com ela, para poder transformá-la” (in O Livro dos Cieps).
Surgem daí a alimentação, a higiene, o cuidado com a saúde, a prática esportiva que todos os Cieps desenvolveram. O Ciep como formador do ser humano em sua acepção mais ampla e mais generosa, que remonta à paidéia grega. Uma revolução, avanço impressionante nas condições daquela época de desregulações financeiras e do Consenso de Washington.
A proposta político-pedagógica dos Cieps teve como eixo a integração da educação, da saúde e da cultura, na formação da cidadania. Porém incluir-se-iam na contemporaneidade desta terceira década do século 21, antevendo novas consequências desta era termonuclear-cibernética, algumas práticas e conceitos que encontramos em pedagogos brasileiros e estrangeiros, capazes de antever bases afetivas, psicológicas e culturais-cognitivas no processo educacional.
Vêm desta avaliação as distinções de letramentos, saberes e culturas no processo da formação, embora todos inseridos no mesmo conjunto da consciência cidadã.
Ressaltamos a horta como necessidade para se conhecer um processo de crescimento (vegetal), como ingrediente alimentar (saúde), como capacitação de ação produtiva (uso dos produtos da horta na alimentação no Ciep), e como letramento em ciências. De modo idêntico a música e o teatro, apresentação de diversidades culturais, com participação, em diversas oportunidades, da comunidade, na compreensão do humano, da integração sobre a exclusão e, sobre as divergências, as identidades.
Nas oficinas além do letramento nas tecnologias da informação, a integração com a comunidade na prestação de serviços de manutenção de aparelhos. Quando elaborada a área de informática (1991), os Cieps se limitavam ao letramento das plataformas IBM Windows e Macintosh. Hoje já poderia avançar, com o Linux e os trabalhos da Marinha Brasileira, no conhecimento de novas plataformas e equipamentos nacionais, antes que a destruição em processo de todo nosso Estado Nacional torne inexequível este ressurgimento ou renascimento.
A escola será uma escola da alegria, do sentir-se útil e produtivo, integrado ao seu ambiente, aumentando o liame com a casa, acolhendo as crianças dos dois ou três anos aos 18 ou 19 anos.
O projeto Ciep, espalhando-se pelos municípios do Brasil, em todos estados e regiões, usando as condições locais para a horta, a ênfase das oficinas, e a apreensão da diversidade cultural, será a verdadeira educação, não a robotização, mas a consciência cidadã, indispensável para termos o Brasil que todos desejamos.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil