que hoje é o local de moradia da expressiva maioria da população; os outros dois são a habitação e a mobilidade urbana, e serão desenvolvidos em artigos específicos. Porém a cidade faz parte de universo maior do que a construção da cidadania. Está na própria constituição da Nação, pois pertence a um de seus elementos, o território.
A dimensão política do território nacional extrapola, portanto, os requisitos da cidadania, pelo que preferimos colocar o “território”, quando discorrermos sobre o uso da terra e de seus recursos, no campo da Soberania, como um bem inalienável da Nação.
No que se refere à cidadania, a questão fundiária mais visível pode ser identificada pelas migrações internas, na maioria das vezes buscando a sobrevivência, e que sofre um tipo de rejeição em seu próprio País.
A sociedade urbanizada é um novo estágio da evolução humana, embora há 5.500 anos já existissem cidades. Porém, como assinala o professor da Universidade da Califórnia, Kingsley Davis (Urbanização da Humanidade, in Cidades, tradução de José Reznik da publicação de 1967, Zahar Editores, RJ, 1970): “Eram pequenas e rodeadas por maioria substancial de gente do campo; e, facilmente, regrediam à condição de vilas”.
Ainda Kingsley Davis, no mesmo trabalho, mostra a velocidade da urbanização: “Antes de 1850, nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbana e, em 1900, apenas a Grã-Bretanha atingia essa condição. Hoje (1965), passados apenas 65 anos, todas as nações industriais são altamente urbanizadas e, em todo mundo, o processo de urbanização está se acelerando rapidamente.” E ele escreveu antes do domínio da informática, da cibernetização da vida.
Para questão urbana, como tantas outras, especialmente para o planejamento público, a ação do Estado é indispensável, pois sofre da imensa desigualdade econômica, social e política brasileira, do fosso que separa os que têm, os proprietários, dos despossuídos, dos desprovidos.
Os habitantes de rua, os sem-teto, as favelas, as invasões, mocambos, palafitas e outras designações para comunidades e loteamentos irregulares apenas registram a secular despreocupação das elites, do 1% com os 99% da população.
E, a cada ausência do Estado, agora aguçada pela ideologia neoliberal, mais ampla e profundamente esta desigualdade se acentuará, e ao fim, de algum modo, nos atingirá, a todos os brasileiros. Vivemos hoje, mesmo sem constituir os 1%, em condomínios, espaços cercados, com vigilância privada, e andamos com medo pelas ruas.
Há pouco mais de uma década, ganha espaço e publicidade na academia, nas mídias, mesmo na imprensa tradicional, a ideia do “retorno ao campo”. Seria impraticável manter crescente a civilização do automóvel, fazendo deste egoísta meio de transporte um ícone do inimigo a combater e, em consequência, os combustíveis fósseis.
Anualmente, o Grupo BP apresenta o sumário estatístico “BP Statistical Review of World Energy”, que é fonte de estudos sobre o setor. Ao apresentar a edição de 2018, o presidente do Grupo afirmou: “2017 foi um ano em que as forças estruturais no mercado de energia continuaram a impulsionar a transição para uma economia de baixo carbono, mas fatores cíclicos reverteram ou retardaram alguns dos ganhos dos anos anteriores. Esses fatores, combinados com a crescente demanda por energia, resultaram em um aumento significativo nas emissões de carbono após três anos de pouco ou nenhum crescimento.”
Os dados publicados na 67ª edição anual da Revista mostram que:
a) a demanda por energia aumentou, liderada pela crescente demanda por gás natural e renováveis;
b) os ganhos em eficiência energética diminuíram à medida que a atividade industrial na OCDE acelerou, e a produção dos setores de uso mais intenso de energia na China voltou a crescer; e
c) o consumo de carvão aumentou, pela primeira vez em quatro anos, liderado pela crescente demanda na Índia e na China, e estima-se que as emissões de carbono tenham aumentado após três anos de pouco ou nenhum crescimento.
Em 2017, a demanda global por energia cresceu 2,2%, acima da média de dez anos de 1,7%. Este crescimento acima da tendência foi impulsionado por um crescimento econômico mais forte no mundo desenvolvido e uma ligeira desaceleração no ritmo de melhoria na intensidade energética.
A demanda por petróleo cresceu 1,8%, enquanto o crescimento da produção ficou abaixo da média pelo segundo anos consecutivo.
Concluindo: o mundo financista neoliberal estava cedendo espaço de poder para o desenvolvimentista industrial. O consumo de energia primária confiável para manutenção da demanda era maior do que a produção de petróleo e de carvão. Porém este tema será desenvolvido nos artigos sobre Soberania.
Cabe aqui apenas ressaltar a razão de um súbito surto para regressão do desenvolvimento urbano. A ação das finanças internacionais busca a reversão da condição favorável da indesejada “tendência de crescimento econômico”, com consequentes gastos em investimentos para pesquisa e desenvolvimento industrial, no lugar da distribuição de maiores dividendos.
Não há dúvida da necessária e urgente reforma urbana, mudando os atuais parâmetros de valores, de tempo e de conforto, quer em deslocamentos quer nas condições habitacionais. Mas a resposta não é a fuga, mas o correto enfrentamento.
Primeiramente, trazer para decisão os mais prejudicados que, melhor do que quaisquer outros, saberão manifestar suas carências e hierarquizá-las. Esta inclusão reforçará o modelo participativo de gestão em todos os níveis decisórios e colocará nas mãos dos mais diretamente atingidos as prioridades.
Pode ser um sonho, mas vemos a especulação imobiliária, uma constante de todos os locais e épocas industriais, ter que enfrentar algo mais do que a corrupção nos poderes formalmente estabelecidos. Será a força da cidadania impondo as condições da gestão.
Todas as questões e temas associados, tais como preservação ambiental, áreas para educação, econômicas (produção, comércio e serviços), atendimentos da saúde preventivo-corretiva, esportivas e culturais, de lazer etc. estarão, necessariamente, incluídas neste plano urbanístico setorial e no global para a cidade.
Estará também afastada a criminosa remoção de favelas, invasões, comunidades, demolições para valorizações artificiais e especulação de áreas urbanas, e muitas outras medidas que apenas aumentavam a distância sócio-política-econômica entre habitantes urbanos.
Magda de Almeida Neves e Antonio Carvalho Neto (Novos Espaços de Produção, “Governança” e Relações de Trabalho, in Josué Pereira da Silva, Myrian Sepúlveda dos Santos, Iram Jácome Rodrigues (organizadores), Crítica contemporânea, Annablume, SP, 2002) afiançam que “esta necessária cooperação entre os atores sociais locais, os stakeholders (entendidos como poderes públicos, empresas, consumidores, fornecedores, sindicatos, ONGs, entre outras instituições), é condição fundamental para estabelecer uma governança que possibilite o sucesso das políticas públicas”.
E, acrescentamos, decisores, executores e atores escolhidos pelo voto de toda população envolvida, aquela que sofrerá as consequências das decisões e dos meios adotados.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil