Tenho comentado sobre a inadequação das instituições, ditas nacionais, e o estágio civilizatório brasileiro. Deste fato decorre, inclusive, o golpismo institucional do qual fomos vítimas em 2016.
Preocupa-me que este último golpe, contestado pela incapacidade absoluta de seus condutores, pretenda ser prorrogado com a simples mudança de atores e mantidos seus objetivos e princípios institucionais.
Em toda nossa história, cheia de golpes violentos ou “constitucionais”, jamais tivemos um modelo institucional brasileiro, aquele que pudéssemos chamar de nosso.
O pensamento colonial está na origem de todo nosso sistema institucional. É este pilar, com sua falsa “homogeneidade político-cultural, cujas bases epistemológicas sustentam a sistematicidade e normatividade Estatal como única dotada de validade e legitimidade”, que nos inunda a história e os golpes. Esta citação é do trabalho da professora Sandra Nascimento, “Constituição, Estado Plurinacional e Autodeterminação Étnico-Indígena: um giro ao constitucionalismo latinoamericano” – PDF anexado a este artigo – que, no entanto, está mais centrado na questão das populações originárias e sua presença constitucional do que na crítica institucional.
Pretendo, sem desmerecer nem contestar esta importantíssima questão que ficou à margem de nossa última constituição, colocar à reflexão de meus caros leitores a questão do conhecimento, ou seja, a questão epistemológica, como tratada pelo pensador contemporâneo Boaventura de Sousa Santos (Epistemologias do Sul, Boaventura de S. Santos e Maria Paula Meneses, coordenadores, Edições Almedina, Coimbra, 2010, e diversos artigos).
Afirma Boaventura: “não há epistemologias neutras” e esta reflexão não deve incidir “nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimentos e nos seus impactos do colonialismo e do capitalismo modernos na construção das epistemologias dominantes”.
Comecemos pela questão deste conhecimento reconhecido pelas práticas. Quantas vezes o prezado leitor não se deparou com nosso “fracasso civilizatório”? O “nada pode dar certo aqui” que vem acompanhado de um referencial que nem é nosso; não concorda? Todo conhecimento que valorizamos é uma importação colonial. Diz-se que o modelo colonial é da exportação para metrópole de bens econômicos e da importação do pensamento, dos bens culturais, da epistemologia do colonizador.
Uma pausa para entendermos esta modernidade colonial. Sempre vemos esta qualificação – colonial – associada às naus portuguesas ou às canhoneiras britânicas ou aos porta-aviões estadunidenses, e, sem dúvida, assim o foram. Hoje a colonização vem pelos sinais virtuais, pela internet, como o saber da Google, pelo saber da teoria da informação. Ou há dúvida que este último golpe começou, por exemplo, em espionagens eletrônicas na Petrobrás e no Palácio do Alvorada, nas comunicações da própria Presidente Dilma Rousseff, e com o uso das redes sociais, como as “Primaveras” estrangeiras?
O golpe de 1964, talvez um exemplo do último golpe old fashioned, foi diferente do que afastou os militares, que levou à constituição de 1988, às eleições dos governos neoliberais, e dos golpes eleitorais, parlamentares, melhor diríamos jurídicos-parlamentares, que tivemos no atual modelo colonial.
De comum a todos sempre tivemos a supressão dos saberes nacionais pela epistemologia excludente da dominação colonial e sobre esta norma estrangeira construimos nossas (!) instituições. Isto não é “uma jabuticaba”, ocorreu e ocorre em todo mundo sob colonização.
Boaventura Santos fala de um pensamento abissal, uma linha que divide a existência, o campo da realidade relevante, da invisibilidade, da inexistência, da ausência não dialética. Os saberes, a epistemologia nativa estão nesta área do invisível, ou seja, incapazes sequer de produzir distinções. Como observa nosso leitor, é uma crítica ainda mais contundente do que a apresentada por Pierre Bourdieu e por autores da Teoria Crítica contemporânea.
Retomemos nossos continuados fracassos. Jamais ocorreu que a medida poderia ou deveria ser outra? Que o padrão de desenvolvimento não ocorre apenas com variações positivas do Produto Interno Bruto (PIB) ou do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)? Que Cuba ou Coreia do Norte ou bantos da África Meridional, aqueles denominados zulus, ou os massais, nilóticos orientais, tenham instituições, projetos de vida e felicidade distintos do capitalismo consumista ou concentrador?
“Esta distinção invisível é a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. A dicotomia regulação/emancipação apenas se aplica a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais. Nestes aplica-se …… a dicotomia apropriação/violência”, escreve, na citada obra, Boaventura Santos.
A corrupção é uma consequência. É a decorrência natural do sistema de aferição do prazer pela propriedade ou disponibilidade de bens valorados pelo “mercado”. Mas a corrupção também gerou, formalmente, até poucos anos, redução tributária nas metrópoles e punição nas colônias, confirmando Santos, “a capacidade de produzir e radicalizar distinções”.
Como é do conhecimento público, estados europeus, até recentemente, aceitavam como despesas dedutíveis dos impostos de renda de suas pessoas jurídicas o suborno nas áreas coloniais.
Tratemos então da necessidade de elaborar, democraticamente, com a efetiva participação de toda sociedade – não restrita à representação de banqueiros e empresários e um mínimo de povo, para exibição no exterior – a nossa, verdadeiramente brasileira, Constituição.
Não se pode apagar o passado, ele vive conosco, mas podemos colocar novos referenciais para o futuro. Haverá alguma utopia? Talvez, e é necessário buscar padrões mais elevados que configurem nosso sentimento de nação e nossa compreensão da cidadania. Penso que nestes dois elementos: a soberania do Estado brasileiro e a construção da cidadania possam estar os norteadores da construção institucional do Brasil.
As Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) avançaram nesta compreensão epistemológica não colonial ao inserir o constitucionalismo plurinacional e intercultural. Não devemos desprezar este avanço, mas creio que outras questões como dos Princípios, Valores e Fins do Estado, seu Modelo e Estrutura Orgânica Básica, além da instrumentação para a construção da cidadania, como condição da efetiva paridade participativa, devam estar enunciadas explicitamente.
Os fatos históricos que estamos presenciando não deixam dúvida que faltam mecanismos de defesa do Estado, o que deverá ocupar, com propostas inovadoras, a elaboração do novo acordo nacional, traduzido na Constituição.
É um tema de muitas vertentes que merecerá novas reflexões.
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*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado.
Publicado em 24/05/2017 em Pátria Latina.