A campanha presidencial nos Estados Unidos, que mal entrou na fase das primárias, já apresenta dois fenômenos sem precedentes, um histriônico mas assustador, outro de um romantismo radical sem precedentes, mas aceito sem medo. É como se fossem o Dr.Jekyll e Mr. Hyde, o médico e o monstro da ficção científica.
Mr. Hyde é o bilionário Donald Trump, de fortuna lastreada sobretudo nas roletas e mesas de jogo de seus cassinos, que irrompeu nas prévias republicanas disposto a disputar a presidência como independente se não for aceito pela convenção que escolherá o candidato. Trump tem bala na agulha, financeiramente, e talento de marketing não só para ficar em segundo lugar na eleição de novembro, derrotando o candidato oficial republicano, mas até, em sua opinião, para sonhar com a vitória.
Dr. Jekyll é o senador democrata Bernie Sanders, de 74 anos, representante do pequeno Estado do Vermont, que se apresenta como socialista, um rótulo demonizado na cultura norte-americana, mas conseguiu o apoio da parcela jovem do eleitorado democrata, que o tem sustentado com milhões de dólares de milhões de pequenas contribuições financeiras. Sanders recusa contribuições de grandes empresas e, num primeiro debate entre muitos pretendentes democratas, respondeu que o maior inimigo que se orgulha de ter feito na carreira política é Wall Street.
Situados nos dois extremos de um espectro ideológico muito mais amplo que o das eleições do último meio século, os dois monopolizam a atenção do público norte-americano – e já agora do público estrangeiro – Trump pela novidade de sua postura extravagante, Sanders pela de suas propostas.
Trump, em suas posições extremadamente conservadoras, é mais radical até que os dois ex-Presidentes Bush, pai e filho, muito mais que Ronald Reagan e Richard Nixon e talvez que Barry Goldwater, o candidato republicano em 1964, derrotado por enorme diferença pelo Presidente Lyndon Johnson. Pelo que dizia, Goldwater parecia disposto a usar a bomba atômica para vencer os guerrilheiros vietcong no Vietnam, mesmo que isso levasse os Estados Unidos a desencadear a Terceira Guerra Mundial. Como a Guerra Fria ficou no passado, Trump não pode inventar valentias como essa, mas promete construir um muro na fronteira com o México e expulsar dos Estados Unidos todos os praticantes da religião islâmica, o que incluiria muitos cidadãos americanos. Ele adora esse papel de bicho papão e não é só uma invenção dele mesmo, é o produto da mentalidade paranóica que se estendeu, depois do 11 de setembro, da minoria inexpressiva que os americanos chamam de lunatic fringe, a franja lunática de sua sociedade, para grupos muito mais numerosos, intoxicados pela mentalidade guerreira da era Bush e vulneráveis ao apelo muito mais teatral de Trump.
Sanders, ao contrário, é o pré-candidato mais à esquerda desde o também Senador Eugene McCarthy, em 1968, que liderou a rebelião da juventude do Partido Democrata contra a guerra do Vietnam. Embora ataque o tempo todo o poder econômico e político dos bilionários de Wall Street, Sanders não se mostra um socialista decidido a coletivizar meios de produção e sequer a estatizar empresas estratégicas. O que mais propõe são programas sociais como universidade pública e assistência médica para todos. O que sua batalha contra Wall Street sugere é que ele adotaria medidas de defesa do setor produtivo, cada vez mais submetido ao setor financeiro da economia.
E prestaria atenção ao recente relatório da Oxfam, solenemente ignorado pela assembleia anual do FMI, à qual se dirigia, sobre o aumento da desigualdade no mundo. Segundo esse relatório, menos de 70 pessoas (exatamente 62) – são donas de metade da riqueza produzida num planeta de 7 bilhões de seres humanos. O que não é bom para o capitalismo Como o que não é bom para o capitalismo não é bom para os Estados Unidos, tal concentração de riqueza não pode ser boa para os Estados Unidos. Logo…