Por óbvio, aquele que não se emocionou com as cenas da posse de Lula, bom sujeito não é, e nem gosta de samba. Ou ainda, é um alguém que se deixou entorpecer e intoxicar tanto de ódio que chegou num ponto dificílimo de reverter seu processo de metamorfose em um ser desumano, quiçá um ogro.
Aquele caminhar sereno, ascendente na rampa, do envelhecido e enternecido peão nordestino triunfante, ombro a ombro com verdadeiros brasileiros (negros, mulheres, criança, indígena, PCD) arrepiou sim. E ainda com a sutileza da Resistência, que é uma testemunha ocular (e farejadora, no caso) da história e ao mesmo tempo a vira-latinha que (quase) toda família brasileira (a não “vira-lata”) conhece e guarda num lugar afetivo… Não bastou quebrar o protocolo, ousou-se subvertê-lo lindamente, quando a faixa passou de mão em mão até chegar no seu destino.
Simbolismo sublime. Símbolos são símbolos. São atalhos de conexão empática que nos movem. Sínteses convencionadas socialmente que dão indícios do espírito da coisa. Não devem ser menosprezados. Nem tampouco supervalorizados. Símbolos são condições necessárias para avançar, mas não suficientes. Não por acaso, havia aquele velho filósofo de barbas grisalhas que recomendava desvelar a essência a partir da aparência dos fenômenos…
De longe e em condições muito específicas de penumbra e embriaguez, a silhueta do carrasco a amolar sua espada pode ser confundida com a de um homem a tocar um violino. A confusão pode fazer germinar a emoção que irá impulsionar movimentos apaixonados. Não cabe a um bom amigo interromper bruscamente movimentos emotivos. Levantar a dúvida, sem estragar o prazer, aí sim. Pois tolo é aquele que tem como meta mostrar-se o dono da verdade. Afinal, qual seria o propósito em revelar a uma criança numa noite de Natal que o Papai Noel não existe, gesto de pura amargura? Enquanto houver dúvidas, deve-se estar por perto e solidário quando eventualmente a ilusão se tornar desilusão. E uma pequena dose de humildade não faz mal: vai que o carrasco, acuado e sob pressão de uma multidão inebriada, saque uma rabeca e comece a tocar magicamente? Sim, pode haver algum grau de magia na política e um analista experimentado não deve eliminar totalmente essas hipóteses, apesar de não prováveis. Tempos de crise profunda trazem elementos imponderáveis.
E afinal, se por um lado é certo desconfiar das “flores vencendo o canhão”, por outro não se faz política sem poesia.
Para os trabalhadores, a vida anda terrível e a conjuntura demanda não somente melhorias materiais, mas também sonhos. A militância é, de certa forma, um sonhar coletivamente.
Portanto não cabe a nós, no momento, uma postura de superioridade presunçosa ou autoproclamação infantil. Seria um erro nos excluirmos de um legítimo movimento de massas progressivo e antifascista, que tirou do protagonismo da cena a maldade. Sim, tiramos as trevas dos holofotes, e isso foi uma vitória gigante! Pois se o fascismo virou um verdadeiro fenômeno de massas nesses tristes trópicos, somente um movimento também de massas pode empurrá-lo novamente para o boeiro fétido de onde saiu.
Mas há rimas pobres nessa loa lírica. Um comunista escaldado tem obrigação sublinhar. De tão amplo, este governo abraçou o mesmíssimo MDB golpista de Temer. Decerto que revestido de nova roupagem e maquiado. Com uma moça de fino trato e fala mansa, porém ruralista, chamada Simone Tebet, muito à vontade. Vale lembrar, o plano A da burguesia, a dita terceira via que, ao final, coube dentro da via de Lula.
Isso sem falar de Alckmin, também entusiasta do golpe, que não faz muito tempo, foi símbolo do polo antipetista por anos a fio. Um homem privatista e reacionário, um direitista clássico. Repressor contumaz e costumaz de movimentos sociais. Sendo muito franco, quando se falava “ninguém solta a mão de ninguém” após as eleições de 2018, faltou nos alertar que entre elas estaria a mão peluda de Alckmin. Aquí vale lembrar: “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
São apenas alguns exemplos do complexo pegajoso do atraso que insiste em se entranhar no poder. O capital é ardiloso e encontra formas mil de manter a ordem. Nem que seja mudando muita coisa para garantir não revolucionar nada.
Portanto, não sejamos só amor. Não dá para nos desarmarmos totalmente. Receitas são melhores quando a doçura vem combinada com (e quebrada por) o amargo ou o acre. O afeto é o que deve nos unir, mas sem a indignação não afugentamos os inimigos da nossa classe.
Não, a Globo não é uma aliada dos movimentos e o capital não é nem de longe humano. Ele se traveste para te seduzir e conquistar, para poder te usar, somente.
Felizmente temos o Lula, o único capaz de derrotar bolsonaro e toda a perversidade inerente e adjacente a ele. Infelizmente nós só tivemos o Lula (com todas as suas alianças perigosas) para derrotá-lo, a essa altura.
Aliados perigosos são como agiotas. Se um amigo em desespero achou inevitável recorrer a um deles para se safar, antes de condenar, cabe alertar que a conta irá ser cobrada com certa veemência.
Portanto, devagar com o andor, que o santo é de barro, apesar de ninguém ser de ferro. “Coração pegando fogo e cabeça fria”. Vamos seguir caminhando juntos, a mão de ninguém sendo largada. Mas que sejam mãos à obra, que empunham e empurram, e não de meros aplausos torcedores. Não deixemos o povo em marcha virar simples plateia.
Gustavo Marun, petroleiro e militante do PCB e da Unidade Classista RJ
Fonte: Jornal Poder Popularular