Artigo

Função de confiança e cargo

Data da publicação: 10/06/2015

A recuperação dos danos causados à imagem da Petrobrás pelos recentes acontecimentos deve passar pela discussão de seus princípios e valores. Esta questão ficou mais uma vez evidenciada na saída de um grande contingente de técnicos, ocorrida este ano em decorrência do PIDV.

Para exemplificá-la, voltemos a 1995, quando a Petrobrás enfrentou uma de suas mais longas greves. Após longas e desgastantes negociações, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) julgou a paralisação ilegal, determinando o retorno da categoria ao trabalho.

No CENPES (Centro de Pesquisas), a direção da empresa, apesar do encerramento da greve, solicitou ao então superintendente (antiga denominação do gerente executivo), Álvaro Peres, uma lista de presentes na assembléia realizada após a determinação do TST. Foi informado que todos os empregados haviam retornado ao trabalho, não havendo nomes a serem listados. A resposta custou-lhe o cargo.

Numa recepção organizada quando Álvaro retornou das férias que se seguiram, foi feito um convite para que ele permanecesse no CENPES como técnico, que ele acabou aceitando.

Alguns ficaram perplexos com o fato. Afinal, perder um alto cargo gerencial e voltar à condição de “simples” técnico sempre parece causar constrangimentos (não sei por quê). Mas não para o Álvaro. Era um profissional que tinha em seu currículo um doutorado nos EUA, concluído junto com o mestrado, em apenas quatro anos. Sua tese foi alvo de numerosos e qualificados elogios e utilizada na engenharia de avaliação de formações petrolíferas, no país e no exterior. Logo, ser técnico era – e continuaria sendo – o seu ofício: se naquele momento ele “estava” gerente, ele não tinha deixado e nunca deixaria de ser engenheiro na continuação de sua brilhante carreira.

Na sede da Petrobrás, o fato deve ter causado espanto. Nos dias de hoje, com o aumento da diferença de remuneração dada ao corpo gerencial a partir da gestão Reichstul, causaria comoção.

Na sua despedida, em maio último, houve a presença e mensagens enviadas, com depoimentos de técnicos, gerentes gerais e gerentes executivos, diretora da área, todos atestando o quando suas carreiras foram influenciadas pelos seus trabalhos ao longo destes anos. Foi também lembrada sua atuação como professor universitário e como formador de equipes da Petrobras na sua área técnica de atuação. Mas se a qualidade técnica de seu trabalho foi a tônica da maioria desses depoimentos, houve também testemunhos sobre o quanto as atitudes coerentes e corajosas do Álvaro tinham significado para o estabelecimento de padrões de conduta que deveriam ser tomados como referência na atuação gerencial.

Para um profissional, não há nada mais recompensador do que ver seu trabalho dar frutos e ser reconhecido. Mais ainda quando, como ser humano, tem seu caráter e sua condição ética publicamente reconhecidos. Ainda mais nos dias de hoje.

Cargo e função

Se um empregado buscar seu nome na intranet, descobrirá que na frente da palavra “Função” haverá apenas um traço, indicando que não a possui. Na verdade, está-se referindo à “Função de Confiança”, ou seja, à gerencial, de coordenação ou consultor. O cargo, por outro lado, designa sua carreira na empresa, para a qual foi selecionado em concurso público, e, portanto, permanente.

O que tem causado espanto e desconforto é o fato de atualmente se classificar o consultor técnico como função de confiança. O corpo técnico sempre reivindicou a criação de uma carreira própria (técnica ou de especialista), o que se convencionou chamar de carreira Y. A idéia era evitar que se perdessem bons e experientes profissionais para a carreira gerencial, com prejuízos para as atividades da companhia. Em não poucos casos, trocava-se um ótimo técnico por um mau gerente. O aumento salarial e a possibilidade de ter maior influência nas decisões da companhia, com o poder daí decorrente, era um estímulo para a mudança. Mas nunca se imaginou que pensariam em tratá-la como função de confiança. Afinal, especialista acumula conhecimento em sua área por anos, não é escolhido para tal, ao contrário do gerente.

Nos últimos anos, os técnicos têm cada vez mais ocupado seu tempo em atividades de fiscalização e administrativas. As tarefas de execução são contratadas, aumentando o número de terceirizados e eliminando-se a capacitação interna. Com os gerentes, pior ainda, que pouco ou nenhum tempo têm para discutir os detalhes das questões técnicas. É até mais fácil repassar a responsabilidade para uma contratada, ficando numa posição de cobrança, sem ter a pressão e a responsabilidade da execução. As conseqüências estão à vista de todos, com os preços, prazos, aditivos de contratos explodindo orçamentos.

Pode-se sempre alegar que não dá para fazer tudo, mas o que se vê é a duplicação de gastos. Projetos e estudos são contratados com empresas externas, deixando equipes internas subutilizadas, sob a alegação de custos mais baixos. Paga-se duas vezes.

Nunca é demais lembrar que a REPLAN (Refinaria de Paulínia) foi inaugurada em maio de 1972 (construção iniciada em julho de 1969), entrando em operação três meses antes da inauguração.

Se na década de 1970 era possível, por que agora não? Porque o corpo técnico fazia mais, contratava menos, quem projetava não comprava, nem construía. [1] Hoje, as grandes empreiteiras ficam com todo o pacote, atrasam, cobram aditivos, compram no exterior, destruindo os fornecedores locais, criando condições propícias para aliciar políticos, \”crachás de aluguel\” e ficarem com um poder que não tinham.

Daí o desestímulo dos mais jovens em se especializarem como técnicos, procurando funções gerenciais e de coordenação. Há gerentes setoriais com menos de cinco anos de empresa e gerentes gerais com menos de dez. É possível que sejam ponto fora de curva, mas sempre fica a dúvida sobre a equipe comandada: são tão abaixo do desejado assim, apesar dos anos de experiência? Há outros casos em que a área técnica de origem do gerente nada tem a ver com a área que gerencia.

A criação da consultoria

O consultor foi uma resposta da Petrobrás à flexibilização do monopólio estatal do petróleo da União, a partir da Lei do Petróleo (Lei 9478/97), permitindo que as atividades do petróleo pudessem ser executadas também por outras empresas, nacionais ou estrangeiras, estatais ou privadas. Um dos locais mais prováveis onde os técnicos seriam buscados por essa empresas era, evidentemente, a Petrobrás. Para reter os mais experientes em atividades consideradas estratégicas, criou-se a consultoria técnica.

Mas a consultoria acabou também sendo utilizada como moeda de troca para atrair empregados de outros órgãos, ou para retê-los. Em outros casos, como prêmio de consolação para gerentes que não se adaptavam e acabavam perdendo ou pedindo demissão de funções gerenciais.

Como todo o processo de indicação, seleção e aprovação de consultores é gerencial, a subjetividade e a diferença de critérios nos diversos órgãos, ou dentro de um mesmo, sempre causou críticas entre os potenciais candidatos.

Separação do técnico e do consultor

Mais recentemente, a classificação da consultoria como função de confiança aprofundou-se. Sob o argumento de que o empregado “sem função” era prejudicado ao ser avaliado junto com o consultor, resolveu-se separá-los.

Se, antes, havia a possibilidade dos demais técnicos poderem avaliar a contribuição no treinamento, passagem de conhecimento e contribuição para sua especialidade, hoje, isso não é mais possível.

Num mesmo órgão, os técnicos podem analisar o desempenho dos demais membros de sua gerência, o mesmo acontecendo com os consultores entre si, mas um técnico não pode avaliar um consultor, nem o contrário. Se todos desempenham a mesma atividade técnica, qual o sentido da nova orientação?

Acreditamos que o RH da companhia deve reestudar o assunto, procurando ouvir os interessados. Não basta as pesquisas de ambiência, com perguntas que não são capazes de mapear a complexidade e amplitude dos problemas. Não é possível ouvir opiniões apenas no conforto dos computadores, sem um contato mais pessoal e completo.

Os empregados só acabam sabendo das mudanças após as decisões terem sido tomadas, embora tenham muito a contribuir para torná-las mais adequadas e, afinal, são os que sofrerão seus efeitos.

Num momento de reformulações, crise na economia, redução de investimentos, novas idéias são sempre bem vindas para romper com os tempos de poucos debates. Deixar de ter um cargo de confiança para voltar a ser técnico não é demérito ou constrangimento para ninguém, como nos demonstrou didaticamente o Álvaro Peres.