Desde o século XVII, no Ocidente, as trocas dos séculos passaram a ter características específicas. E as alterações civilizacionais que se processam eram cada vez mais rápidas e profundas. Este conhecimento é fundamental para os detentores do poder e para os estudiosos da política, da história, das ciências sociais, em geral. Porém como entender as mudanças que ocorrem cotidianamente na nossa vida se somos, simultaneamente, atores e vítimas?
Nestas reflexões procuramos focar as Forças Armadas Brasileiras (FFAA) que foram constituídas, efetivamente, ao longo do século XX e receberam diversas influências, na maioria colonizadoras, para atender a interesses estrangeiros.
O período que as FFAA puderam desenvolver-se com mais autonomia foi aquele em que o positivismo à maneira brasileira dominou o poder e a cúpula militar. Buscaram-se soluções nacionais, no entanto o atraso social e o baixo nível de desenvolvimento industrial foram obstáculos restritivos importantes para que se constituíssem Forças Armadas Brasileiras.
Quando militares formados nesta época, Costa e Silva, Médici e Geisel, ocuparam o poder (1967-1980), buscaram eliminar os óbices do passado, como se verifica no grande impulso à industrialização, na integração social e regional, na educação, cultura e direitos sociais rurais e nos investimentos em fontes e gestão de energia.
O fim destes governos militares não se deu, como erroneamente é divulgado, inclusive por interesses contraditórios à esquerda e à direita, pelo renascimento da democracia, mas pelos neoliberais, que buscavam o poder para as finanças apátridas, e encontraram, numa esquerda mal formada, os desejados e nada críticos aliados.
Deste modo, todas as eleições, desde 1989, foram disputadas pela capacidade de atender o sistema financeiro internacional e o fiel cumprimento dos dez mandamentos do Consenso de Washington. Sempre que um governante, por alguma medida, fugia deste compromisso, o poder judiciário o obrigava a retornar ao leito do rio.
Assim, a instrução neoliberal que entrou no ensino militar ainda no período da Junta Governativa Provisória de 1969, formada por militares da Marinha, Augusto Rademaker, da Aeronáutica, Márcio de Souza e Mello e do Exército, Aurélio de Lyra Tavares, a princípio nos cursos de formação de comando e estado maior, foi se alastrando por todo ensino militar. Hoje, todos oficiais e suboficiais só conseguem se diplomar com respostas adequadas ao pensamento neoliberal: empreendedorismo, competitividade, estado mínimo, eficiência privada, e os erros de estatismo e da solidariedade, que não seja por financiamento privado, dito altruísta.
E, o que é fundamental, a crença religiosa na globalização. Para militares, esta certeza permite alienar bens esgotáveis e não renováveis, como minérios e petróleo, sem considerar crime de lesa-pátria. Também não se incomodar em destruir a nascente informática brasileira, construída no governo Geisel, para que a tenhamos hoje totalmente importada, verdadeiro atentado à soberania nacional.
Por iniciativa da Cátedra e Rede em Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas (REGGEN) têm sido realizados seminários, painéis de discussão e promovidas publicações sobre a globalização desde 1997. Que saibamos, nenhuma instituição militar brasileira tem enviado representante, até por serem majoritariamente “de esquerda” os brasileiros que dele participam.
A primeira falácia, que os militares brasileiros assumem como verdadeira, é o projeto de dominação comunista. Não compreendem que, mesmo a denominada esquerda, no Brasil e no mundo, adota pautas neoliberais e farsantes como a da questão climática.
Comparar o preparo intelectual dos militares do Brasil de hoje, com os de posto equivalente na década de 1950, quando os Estados Unidos da América (EUA) já se faziam presente na formação dos militares brasileiros, é comparar a profundidade de análise de um jovem da 8ª série do curso fundamental, com a de pós-doutor, aprovado com mérito e distinção.
E, como lhe foi ensinado pelos emissários de West Point, o que os distingue dos demais é o comando, “saber mandar” (!). Daí não ter constituído qualquer desconforto assumirem mais de quatro mil cargos civis no governo Bolsonaro. Um “especialista em logística” deixar faltar equipamento/material vital para salvar vidas em hospital, e muitas outras lamentáveis ocorrências, até permitem a interpretação de serem intencionais.
A compreensão do Brasil é fundamental, mas o entendimento das forças que regem o mundo no início do século XXI também é básico. E esta compreensão está na análise geopolítica.
DO MUNDO BIPOLAR AO MULTIPOLAR
A Guerra Fria deixou de ser motivo geopolítico com a ausência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e com a recuperação dos EUA, após sucessivas derrotas no Oriente, em guerras (Coreia, Vietnã) e na economia (emergência japonesa), e sob domínio do sistema financeiro, que se espraiava por quase cem locais (países, estados, cidades e bairros), sem leis e sem tributos, assumindo ativos reais e também sem lastro, em todos continentes. Por uma década se imaginou o mundo unipolar e, por ser o país de maior produto interno bruto (PIB), tecnologia e forças armadas mais desenvolvidas, os EUA ficaram como seu representante.
É óbvio que este poder das finanças gerou diversos tipos de descontentamento e revoltas, que foram tratadas com as Revoluções Coloridas e os tradicionais golpes de estado, que os EUA aplicavam à larga: 1945, Brasil; 1948, Venezuela; 1951, Argentina e Bolívia; 1953, Irã; 1954, Guatemala e Paraguai; 1962, República Dominicana; 1963, diversos na Ásia, Oriente Médio, África e América do Sul que atormentam estes continentes até a década de 1980. A partir das desregulações dos anos 1980, os golpes passaram a ter mais um sentido de mudança do controle monetário do que para derrubada de governos contrários aos EUA. Ocorrem inclusive na Europa e são, em alguns casos, promovidos pela comunicação de massa, para beneficiar dinastias nacionais favoráveis ao sistema financeiro apátrida, que assim se apossa dos países. Os pretextos de defesa das investidas das esquerdas têm até o benefício de encontros financiados pelo capital financeiro apátrida ou órgãos do estado estadunidense, com pautas identitárias ou sociais, ditas “de esquerda”, em favor de minorias, empoderamento feminino, liberdade sexual etc.
O mundo bipolar passa a unipolar e logo a multipolar, com a recuperação da Federação Russa e o extraordinário crescimento da República Popular da China (RPCh).
São dois casos exemplares que deveriam ser esmiuçados nas escolas militares, para sua compreensão mais profunda, o que exigiria também conhecimento de idiomas que, sendo de comunistas (sic), não estão nos currículos de quem deve conhecer o mundo para melhor defender o Brasil.
A Federação Russa, parte da Comunidade de Estados Independentes (CEI), foi resultado do desmonte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
As finanças colocaram em Moscou um palhaço, como fizeram, novamente, na Ucrânia, após o golpe Revolução Laranja 3, governando a Rússia. É até irônica a repetição das mesmas medidas, dos mesmos discursos, das mesmas acusações, em todos os golpes e tentativas. Se disserem que o dirigente é corrupto e o povo está revoltado, fiquem certos, trata-se de governo que atende os mais necessitados e cobra dos ricos o que jamais pagaram.
Algum evento pouco claro fez com que Boris Yeltsin passasse o governo da Rússia para Vladimir Putin. Este se revelou o mais notável estadista deste início do século, recuperando poder ainda mais consolidado e aberto do que o existente na URSS. A Federação Russa é efetiva potência, inclusive militar, que o Ocidente reunido não consegue derrotar, nem pelas armas, nem pelos embargos, nem pela economia e propaganda dentro da Rússia. E, dia a dia, as notícias e análises ocidentais sobre a Guerra na Ucrânia são desmentidas pelos fatos.
A China passou por diversas crises internas desde a Revolução Cultural de Mao Tse Tung, o capitalismo de Deng Xiao Ping (1978-1990), e as alterações ocorridas no final do século XX. Com Xi Jin Ping na direção do Partido Comunista Chinês, foi sendo aos poucos reestruturando o poder, de modo a incluir toda população, usando Assembleias descentralizadas e um sistema de repartição de responsabilidades no governo que fez de cada chinês eficaz construtor do seu país. Deste modo foi possível absorver os recursos financeiros e tecnológicos estrangeiros sem perder o controle do poder nacional. A esta construção deram o nome de comunismo à maneira chinesa. Podemos entender que o comunismo serviu mais para salvaguardar as lideranças que libertaram o país do “século da humilhação”, pois existe o modo de produção capitalista em muitas ações do Estado e nas iniciativas privadas.
A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, em inglês), também chamada Nova Rota da Seda, e a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) constituem sólida base para o mundo multipolar. Um mundo de cooperação já antevisto por Johann Gottlieb Fichte, em 1796, quando escreveu sobre o “Fundamento do Direito Natural Segundo os Princípios da Doutrina da Ciência”. Sinteticamente ele estabelece que
“se um povo não tem alguma forma de governo, não existindo um Estado, ele não tem quem o proteja, estando assim completamente destituído de direitos”. Logo o contrato social é impositivo para a cidadania. No entanto, os Estados só se obrigam a fazer acordo para usufruírem benefícios recíprocos, ou seja, mantendo suas individualidades. A lição da RPCh é a dessa união para benefício recíproco, que trouxe 149 países e 32 organizações internacionais, até outubro de 2022 para o BRI.
Há uma perspectiva das finanças não aceitarem sua derrota e impulsionarem uma guerra de fins catastróficos. O Brasil precisa estar bem preparado e consciente do que significa colocar o aborto e não a cooperação internacional na pauta de governo. Questões individuais, como as possibilidades do corpo, que não sejam o uso e abuso por terceiros, e ideais transcendentes, que apenas à pessoa tem valor, não podem ser confundidos com encargos do Estado Nacional, nem se pode sujeitar o Estado Nacional a acordos de humilhação, como a China conheceu das potências ocidentais e do Japão por cem anos.
Mais de meio século de doutrinação neoliberal provocou a desfiguração das Forças Armadas. É indispensável reexaminar os currículos, os professores e colocar todos da ativa nas salas de aula. Conhecer o Brasil e as novas relações internacionais. A Guerra Fria acabou e o inimigo de hoje não é o comunismo, mas as finanças apátridas, que trazem a corrupção, o desemprego, a chantagem, a miséria, a mentira e a fome para o País.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, pertenceu ao Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), é atual presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET.
Transcrito do MONITOR MERCANTIL