Em 24 de julho de 2023 a AEPET em seu boletim replicou notícia que surgiu na imprensa (Monitor Mercantil) de que a “Petrobrás vai transferir tecnologia para seus fornecedores” (1), fazendo referência à matéria publicada na Página da Petrobrás na Internet (\tecnologia.petrobras.com.br), sobre a Licitação para Licenciamento de um Lote de 214 patentes.
Nesta página, abaixo do título: Transferência de Tecnologias, consta que “a Petrobrás busca empresas, ICTs (2) e outros agentes do ecossistema de inovação para licenciamento de nossas tecnologias com o foco em aprimorar, acelerar, e/ou viabilizar a implementação de novos produtos, processos ou serviços”. Selecionando “Oportunidades” ao lado, pode-se ler: “A Petrobrás está ofertando 214 tecnologias para licenciamento de forma simples e rápida. O objetivo é acelerar a implantação de inovações e contribuir para desenvolvimento de fornecedores que possam implantar as tecnologias nos negócios da Petrobrás. Há oportunidades disponíveis nas áreas de Exploração e Produção, Desenvolvimento da Produção, Refino e Sustentabilidade”.
Aparentemente parece ser uma ótima notícia para todos. Essa aparência decorre em primeiro fato do desconhecimento da grande maioria das pessoas sobre o significado de licenciar uma tecnologia, e em segundo do fato do desconhecimento dos processos de desenvolvimento de tecnologia, principalmente quanto aos fatores humanos.
PATENTES e o INVENTOR
Segundo o INPI: Patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade, outorgado pelo Estado aos inventores ou autores ou outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Com este direito, o inventor ou o detentor da patente tem o direito de impedir terceiros, de produzir, usar, colocar a venda, vender ou importar produto objeto de sua patente e/ou processo ou produto obtido diretamente por processo por ele patenteado. Em contrapartida, o inventor se obriga a revelar detalhadamente todo o conteúdo técnico da matéria protegida pela patente. A legislação garante o uso exclusivo de uma invenção por um período limitado, sendo o prazo máximo de proteção de 20 anos em patentes de invenção e de 15 anos nas patentes de modelos de utilidade.
Na Carta Patente do INPI constam os Titulares e os Inventores. O titular de uma patente é o proprietário da invenção, em nome do qual a patente é concedida e que pode explorá-la comercialmente; o inventor é a pessoa que teve a ideia inicial da invenção ou participou no desenvolvimento dela.
Embora o titular da tecnologia seja detentor dos direitos de propriedade, podendo licenciar ou transferir total ou parcial os direitos patrimoniais, a legislação resguarda os direitos dos autores e inventores. Conforme preconiza a Lei de Inovação nº 10.973/2004, regulamentada pelo Decreto 9.283/2018, aos pesquisadores serão assegurados no mínimo 5% (cinco por cento) e no máximo 1/3 (um terço) sobre os ganhos econômicos auferidos pela empresa titular, em caso de licenciamento ou transferência de tecnologia a terceiros (NIT/UFT).
O fato de existir um Titular não acarreta o desaparecimento do Inventor. Neste caso a própria carta patente estabelece um vínculo com o inventor.
No caso dos inventores empregados, e sendo a invenção decorrente do seu trabalho, a titularidade pertence a empresa caso conste no contrato de trabalho cláusula específica. Esta é uma situação que permanece em debate, pois tem uma influência negativa sobre a própria atividade criativa do empregado inventor. Existem pessoas que por diversos fatores tendem a ser mais inventivas que outras, e a maneira como a empresa administra as invenções e respeita a relação invento – inventor, pode desestimular o trabalho criativo na empresa.
PATENTE, CONHECIMENTO e SABER FAZER
A referida notícia informa que a “Petrobrás anunciou que vai fazer uma grande transferência de tecnologia para o mercado de fornecedores da estatal”. Na mesma linha diz que são 214 segredos industriais.
A patente é um texto público, portanto não se refere a um “segredo industrial”. Qualquer pessoa pode consultar a base de dados de patentes do INPI, ou usar o “google” para ler a redação de uma patente e inspecionar seus desenhos e diagramas. Portanto, licenciar uma carta patente não é repassar segredos tecnológicos para o mercado.
Podemos usar uma metáfora: a patente descreve o gato, mas não o pulo do gato. A patente descreve resumidamente a invenção, com redação adequada para quem entende da área da invenção possa identificar e compreender as “Reinvindicações”, ou seja, aquilo que efetivamente se pretende proteger. O pulo do gato é o conhecimento e a competência para saber fazer. Por isso a página da Petrobrás se refere a: “licenciamento de nossas tecnologias”, ou seja, um compromisso muito maior.
Podemos exemplificar: quando uma empresa, digamos estrangeira, que domina a tecnologia de sua atividade e se depara com a situação na qual não poder utilizar uma dessas suas tecnologias devido a uma patente Petrobrás, como por exemplo, no caso da produção de petróleo no Brasil, ela pode negociar um acordo de licenciamento da patente, sem se preocupar com a transferência da tecnologia (por também possuir esta tecnologia). No entanto, no caso de uma empresa, digamos brasileira, que não domina a tecnologia que a Petrobrás está licitando, o acordo será obrigatoriamente de transferência de tecnologia. Isto é muito diferente, pois exige treinamento, apoio e garantias, que certamente incorrerá no uso de recursos e na participação de empregados Petrobrás, inclusive dos empregados inventores.
No documento da Petrobrás consta que não haverá disponibilização de Know-How (saber fazer) nem de assistência técnica, e consta também que o licenciamento irá “contribuir para desenvolvimento de fornecedores que possam implantar as tecnologias nos negócios da Petrobrás”. Ou seja, existe uma contradição entre o texto e a realidade. O contrassenso entre licenciar algo publicado pelo INPI e a dificuldade das empresas brasileiras em saber fazer a materialização do objeto patenteado, permite concluir que só empresas que já dispõem de Know-How irão licenciar e usar. É possível, portanto, que o tal “salto tecnológico de fornecedores” seja peça de propaganda.
Aqui surge outra dúvida: transferir tecnologia referente a 214 patentes de uma só vez. Será que a Petrobrás dispõe de recursos, principalmente humanos, para isto? Mesmo que não exista transferência de Know-How existirão consultas e questionamentos. Esta situação levanta a suspeita: talvez o fato de licitar 214 patentes de uma vez seja para esconder algum outro objetivo ou transação…
Patentes são negociadas caso a caso, dada às características diversas de cada uma, o grau de maturidade da tecnologia e as necessidades específicas da transferência do saber fazer. Podemos ter tecnologias negociadas em bloco, quando se referem a um objeto comum. Licitar 214 patentes diferentes, simultaneamente, para diversos interessados é algo que desperta indagações e até suspeições por ser irresponsável, ou precipitado, ou sem o adequado planejamento. Por exemplo, a declaração de que será sem transferência de Know-How é genérica e será praticada de forma efetiva, ou alguns interessados terão alguma ajuda e outros não? Uma ajuda não igualitária é, por exemplo, um interessado poder participar de um Termo de Cooperação e outro não.
Quais foram os critérios de seleção dessas tecnologias? Pelo que se sabe da gestão do CENPES, a seleção das patentes licenciáveis é feita por uma comissão, que atua segundo padrões estabelecidos exatamente pelos mesmos gestores que determinaram a licitação em lote, com todas as falhas, lacunas e suspeitas, apresentadas até o momento. Esta comissão atende as orientações e solicitações a ela encaminhadas, não sendo comum qualquer avaliação de natureza técnica por parte de seus membros, nesta fase. Ou seja, pelo que é sabido a seleção foi fruto de um rito burocrático.
As suspeitas vão se encadeando: Patente é pública, não é segredo industrial; empresas brasileiras têm dificuldade em desenvolver tecnologia a partir de patentes; existe forte suspeita de que algumas das patentes não foram testadas (veja “porque patentear”) e a Petrobrás informa que não irá dar assistência; patentes devem ser licitadas individualmente ou em lotes relacionados, dada todas as dificuldades e negociações envolvidas; existe uma forte dose de propaganda; tentar justificar que é uma licença e não uma venda, não justifica a licitação em lote, nem a falta de assistência técnica aos interessados.
POR QUE PATENTEAR?
Alguns dos motivos que levam a empresas como a Petrobrás a patentear:
– Proteger-se de patente de outra empresa que a impeça do uso, ou cobre valores abusivos no uso de uma tecnologia;
– Poder negociar a eliminação de sobre preço de fornecedor que detenha patente sobre produto de interesse a ser fornecido;
– Obter uma vantagem temporária em relação aos concorrentes;
– Proteger o desenvolvimento tecnológico em andamento;
Como se trata do Centro de Pesquisas da Petrobrás entende-se que as patentes existam para proteger desenvolvimentos tecnológicos em andamento. Neste caso, cada patente tem um grau de maturidade diferente. Pelas datas dos depósitos e pelo tempo que algumas dessas tecnologias demoram em serem desenvolvidas, é muito provável que algumas destas tecnologias ainda estejam paradas em algum dos comitês internos que aprovam os projetos tecnológicos; ou paradas e dependendo do interesse de algum “gerente cliente”, ou da sua boa vontade ou da sua visão de futuro. Isto sem falar da burocracia interna do CENPES, cuja lentidão é alvo de reclamações dos pesquisadores e de parceiros tecnológicos.
Parece evidente que nesta licitação existem patentes de tecnologias que ainda não foram testadas e demonstradas pela Petrobrás. Não estão explícitos os critérios técnicos usados para a seleção das patentes, inventores não foram consultados, o diferente grau de maturidade de cada patente parece não ter sido levado em consideração, não está claro em qual projeto de pesquisa foi, ao menos, realizado teste de conceito. Essa licitação nos traz a suspeita de que se trata apenas de propaganda.
VALORAÇÃO
A gestão do CENPES informa uma expectativa de retorno de royalties de até R$ 10 milhões por ano, caso todas as patentes sejam exploradas. Seria interessante que apresentassem o histórico de royalties recebidos pelo licenciamento de cada patente anteriormente licenciada.
É prática comum em instituições de pesquisa como as universidades e como no próprio CENPES, que o desenvolvimento de tecnologia inicie com uma busca de patentes. As patentes identificadas são então estudadas, junto com artigos publicados pelos inventores, pela empresa, e por instituições de pesquisas com as quais trabalharam. A partir desse ponto o estado da arte está delimitado, a instituição se capacita tecnicamente, e um trabalho interno de desenvolvimento de tecnologia é iniciado até que se obtenha uma solução melhor que a patenteada. Neste momento, a instituição pede o depósito da patente. Decorre daí que o monopólio provisório da patente é quebrado, e a empresa em lugar de pagar royalties pela patente de terceiros, passa a usar a sua própria patente. O próprio documento da Petrobrás prevê essa situação, como citado a seguir.
Resumindo: quem tem competência não irá ficar pagando patente para a Petrobrás, e quem não tem competência irá provocar um dispêndio potencialmente maior para a Petrobrás que os royalties recebidos, pela necessidade posterior de negociar a transferência do saber fazer, mesmo constando no documento que o licenciamento não inclui essa transferência.
COINCIDÊNCIA OU OPORTUNISMO
Na notícia citada é dito que, “para a estatal, o licenciamento das patentes é uma aposta no potencial da inovação para gerar impacto positivo no país”. O CENPES ao longo de sua existência sempre contribuiu e atuou para o desenvolvimento tecnológico da indústria nacional. Para tanto tem lançado mão de diversos mecanismos para gerar esse impacto no país, atuando de forma objetiva e responsável.
Essa situação fica mais intrigante quando consideramos que os interessados terão acesso gratuito a tecnologia (ao menos sob a forma de pedido de informações complementares); que só pagarão se “fizerem dinheiro” com o uso da tecnologia; que “caso a empresa licenciada aperfeiçoe a tecnologia, ela tem garantida a titularidade do desenvolvimento”; e agora, de forma reversa, “a Petrobrás poderá obter uma licença para uso dos aperfeiçoamentos”.
Salta aos olhos o fato de que várias das patentes licitadas se referem à produção de petróleo no mar, e sabemos que quem domina esta aplicação tecnológica, além da Petrobrás, são as grandes empresas petrolíferas (Shell, Total, Equinor, Petrogal, Repsol, Sinopec, Petronas, Equinor) ou as grandes prestadoras de serviço internacionais. Note que todas essas empresas possuem condições e recursos para desenvolver tecnologia quando lhes interessa. Essa política vai, portanto, na contramão da construção de um mercado de empresas de base tecnológica de capital nacional, e, para quem busca um país soberano, vai na contramão da história, transferindo para empresas de capital estrangeiro tecnologias desenvolvidas com recursos nacionais.
Por outro lado, dentro do pensamento liberal, para o qual, tecnologia é comodity: a iniciativa privada é mais eficiente que a iniciativa estatal; e as multinacionais são parceiras e interessadas no nosso desenvolvimento; sendo, portanto, razoável licitar o conhecimento tecnológico em troca de quase nada. Afinal, para os executivos que têm essa mentalidade, o mercado é o melhor meio e, deste modo, é o mercado quem deve decidir quais empresas privadas que tem direito a tecnologia desenvolvida pelas empresas do Estado. Ou seja, não é necessário estabelecer uma política de gestão tecnológica a partir das patentes e mecanismos fortes para a transferência de tecnologia, de modo a efetivamente promover o fortalecimento tecnológico das indústrias de capital nacional, basta deixar o mercado resolver.
ASSÉDIO MORAL INTELECTUAL?
Fatores humanos são fundamentais para a inventividade na pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Considerando a história do Centro de Pesquisas, em momentos históricos diferentes, os inventores eram consultados quando a administração, a título de corte de custos, pretendia deixar de pagar a taxa de manutenção devida ao INPI. Porém, temos que reconhecer que nunca houve uma gestão tecnológica baseada em patentes. O que existe nos últimos seis anos é um escritório interno, GIT (Gestão da Inovação Tecnológica), responsável, entre outras atividades, pela gestão do patenteamento no país (INPI) e internacional. Aflora desta situação inusitada que uma de suas políticas de gestão de tecnologia vem incentivando o patenteamento apenas para usar o número de patentes como propaganda para que a PETROBRÁS apareça como a empresa que mais patenteia no Brasil.
Mas qual o resultado desta farsa propagandística? O resultado é que não existe um vínculo entre patente e projeto de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia. Não existe vínculo, nem estratégia e nem o reconhecimento de que “a inovação é uma atividade exclusivamente humana”! Nenhum computador, com a mais poderosa Inteligência Artificial, consegue realizar essa atividade mental!
Existe na Petrobrás, e principalmente no CENPES, debate sobre o atual modelo de gestão da função Pesquisa e Desenvolvimento de Tecnologia. Artigos recentes revelam esse debate (https://sindipetro.org.br/reage-cenpes-agosto-2023/). É fato notório no CENPES que nem sempre gerentes que foram bem-sucedidos na área operacional, se adequem para a gestão da Pesquisa e do Desenvolvimento de Tecnologia. Nos últimos 10 anos a gestão do CENPES sofreu forte influência do modelo de gestão do desenvolvimento de programas de informática, criticando: “como se no PD&I a realidade fosse virtual”. Uma consequência desta transformação foi um distanciamento da gerência responsável pelos processos internos do PD&I, da prática científica. Comparado com o passado, a atual gestão tem uma postura “cartorial” em relação às patentes, como se apropriassem dos inventos alheios. Um exemplo desta prática é criar padrões para a gestão do processo “patente” que atendam a seus objetivos e esvaziem a participação do inventor. No passado os inventores e o gerente imediato da área eram consultados sobre qualquer modificação que afetasse o invento. Sabe-se que pelo contrato de trabalho, a PETROBRÁS é quem tem o direito de exploração comercial das inovações de seus empregados. No entanto, se esquece que os inventores estão nomeados na carta patente e permanecem com direitos de participação no resultado do uso das patentes (incluindo seu destino).
O CENPES faz campanha interna para que o número de patentes cresça. Contraditoriamente, não valoriza e reconhece adequadamente sua produção, oferece a terceiros e renuncia a seu desenvolvimento e aplicação com recursos e profissionais próprios.
Diretoria da AEPET
2. Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT)