Artigo

O cerco dos excluidos (1)

Data da publicação: 15/09/2015

Foi preciso a foto do menino morto naquela praia da Turquia aparecer em todas as TVs, jornais, revistas e redes sociais do mundo para governos como o da Alemanha assumirem sua responsabilidade, tanto moral quanto política, na questão dos refugiados. Ainda bem que era um menino branco, de classe média, vestido à europeia e calçado de tênis possivelmente de griffe, porque fotos igualmente dramáticas, mas de crianças negras, reduzidas a pele e osso como os sobreviventes dos campos de concentração nazistas, crianças mortas de fome, produto da miséria e não da guerra civil, jamais causaram o mesmo impacto.

Nem a guerra civil que já dura quatro anos na Síria, nem a miséria de povos africanos são fatos em relação aos quais a Europa e países do mundo neoeuropeu como os Estados Unidos possam considerar-se inocentes. Também não podem alegar que ignoravam os fatos.

Em 1976, há quase quarenta anos, estive na Alemanha, integrando um grupo de jornalistas brasileiros convidados a acompanhar as eleições daquele ano no país, e tivemos em Stuttgart, uma das cidades que visitamos, um encontro com o prefeito Manfred Rommel, filho do famoso General Rommel, da Segunda Guerra Mundial. Manfred era democrata-cristão, um partido nada de esquerda nem muito reformista, e nos supreendeu ao levantar um problema do qual ninguém ainda suspeitava.

Nos últimos anos, disse ele, a Alemanha atraiu muitos imigrantes de países como a Turquia, porque precisava importar mão de obra para empregos que os alemães já recusavam, ou porque mal pagos ou porque os consideravam desagradáveis – garis, faxineiros, serventes, pedreiros, empregados domésticos. Esses imigrantes estavam na Alemanha já por muito tempo, trabalhavam, pagavam impostos, criavam filhos nascidos ali – e praticamente não tinham direito nenhum de representação, não tinham como fazer ouvir seu ponto de vista nem como defender-se ou protestar coletivamente. Manfred propôs então ao Conselho Municipal que se concedesse o direito de voto a esses imigrantes nas eleições locais. Assim eles poderiam ter ao menos um vereador que os representasse. A proposta foi recusada e Manfred, em 1976, estava muito preocupado com o futuro. Com o tempo, pensava, isso vai se transformar num grande problema.

Nem ele, porém, podia imaginar que o problema viesse a ser a tragédia de nossos dias. Perdemos a conta de quantos naufrágios já aconteceram, de quantos fugitivos morreram em embarcações ou caminhões, de quantos chegam vivos sem saber o que lhes acontecerá. A foto do menino morto na praia forçou a Alemanha a desendurecer um pouco sua posição e a Alemanha é o pais mais poderoso, economicamente, e portanto o mais influente, politicamente, da Europa Ocidental. Com isso, outros países começam a aceitar quotas ligeiramente maiores de imigrantes, embora a Hungria, governada por um primeiro ministro inegavelmente racista e ultrarreligioso, não queira saber de refugiados islâmicos.

A nova atitude da Europa pode aliviar um pouco o problema, mas não tem condições de resolvê-lo. O fenômeno da imigração em massa recrudesceu nos últimos anos ou nas últimas décadas em virtude de um aumento brutal na desigualdade econômica entre pessoas e países. Não é só a Europa que se vê acossada por ondas de imigrantes e reage a isso com propostas políticas cada vez mais intolerantes. Os Estados Unidos também atraem milhões de latino-americanos e são obrigados a discutir medidas como a construção de um muro na fronteira com o México e observar restrições rigorosas até na entrada de turistas, para evitar que estes acabem ficando por lá. Ainda agora o noticiário registra que muitas brasileiras grávidas planejam ou conseguem dar à luz em alguma cidade dos Estados Unidos, para que o filho nasça com a nacionalidade norte-americana.

Em certo sentido, isso parece ser o início do cerco dos excluídos às regiões mais ricas do planeta, às fortalezas supostamente inexpugnáveis do dinheiro e da concentração da riqueza. Em escala metafórica, poderíamos lembrar as vozes timoratas que, aqui mesmo, no Rio, profetizavam sombriamente: “No dia em que a Rocinha descer…”

No dia em que o povão das favelas (perdão, comunidades) saísse da inércia, descesse a encosta e cercasse os bairros ricos, nesse dia a cidade dividida começaria a pagar por seus pecados. No Brasil ficamos só na profecia, mas na Venezuela, na passagem do século passado para o atual, um golpe contra o Presidente Hugo Chaves, que já estava preso numa ilha, foi frustrado quando se percebeu que em Caracas a Rocinha de lá ameaçava descer ou começava a fazê-lo.

No caso dos refugiados que chegam ou tentam chegar à Europa rica, a solução só estará à vista no dia em que ninguém mais precisar fugir, ou da fome ou da guerra, e em que todos tenham condições de permanecer e viver em sua terra. Mas as circunstâncias do mundo de hoje, ainda mergulhado no arrastão neoliberal, tornam esse dia tão distante que ainda nem imaginamos como ele amanhecerá.