Isto posto, resta claro que ela admite posições diferentes e divergentes. Cabe acrescer que os economistas usam propositalmente uma linguagem cifrada visando dificultar seu entendimento pela sociedade em geral e valorizar (?) seu papel.
Estava eu outro dia a assistir um ‘debate’ televisivo entre dois economistas neoliberais e um progressista. Para início de conversa, os (neo)liberais não se assumem como tal. Preferem ser apenas ‘liberais’.
Os (neo)liberais apregoam aos quatro ventos as vantagens da redução ou da retirada total do Estado de grande parte da atividade econômica, entregando-a ao setor privado, por ser este mais eficiente (sic) na visão deles. Curioso é que enquanto pregam a entrega de grande parte da atividade econômica ao setor privado, admitem também que esse modelo levaria à redução das desigualdades sociais.
Aí está a primeira contradição do (neo)liberalismo. Como é possível concentrar a execução de boa parte da atividade econômica no setor privado e reduzir desigualdades? Esta concentração é apenas o resultado da transferência de recursos e riqueza, por meio da atividade empresarial, para acionistas, sócios e proprietários de empresas pelas vendas, faturamento e lucro.
É, porém, possível que mesmo no sistema capitalista selvagem em que vivemos, se faça algo menos desbalanceado. Para tanto, é condição sine qua non que haja elevação da carga tributária sobre o patrimônio e o lucro dessa gente, devolvendo à sociedade uma parcela do valor apropriado pelos donos do capital transformado em lucro e propriedade. Esta devolução seria obrigatoriamente empregada na redução da diferença entre ricos e pobres. Infelizmente, é certo que esta devolução jamais seria aprovada pela classe política, em um país como o Brasil, ela mesma formada por empresários privados ou por eles financiada.
Por outro lado, a presença de lucro na atividade humana tem, em geral, desvirtuado a principal finalidade dessa atividade. Vejamos alguns exemplos em que a atividade empresarial privada é nociva às sociedades que as abrigam:
· Medicamentos – de início, é bom lembrar que a pesquisa de novos medicamentos, em todo o mundo, é financiada majoritariamente pelos Estados e desenvolvida em universidades públicas. É nos estágios finais deste processo que um laboratório interessado na produção da nova droga passa a participar do estudo, levando em consideração os possíveis ganhos dali advindos. Um dos fatores importantes em cada caso é assegurar que a produção de um medicamento por empresas privadas somente será rentável se este não levar à cura total de doenças. A existência de laboratórios farmacêuticos rentáveis pressupõe a existência de doenças. Sua cura é, portanto, indesejável. Esta situação obriga o setor privado a limitar o oferecimento de reais avanços médicos às sociedades. Esses avanços tornados públicos reduziriam o lucro do “Big Pharma” – o conjunto dos grandes laboratórios farmacêuticos multinacionais – o que iria gerar sentidos protestos dos ‘infelizes’ acionistas dessas empresas. Em última análise, é bastante claro que saúde e lucro não combinam.
· Saúde pública – a saúde pública entregue ao setor privado é outro grande problema para as sociedades. A saúde pública privada está ao alcance apenas daqueles que podem pagar por ela. Ela é tarefa dos seguros-saúde e planos de saúde pagos pelos participantes, inclusive os menos favorecidos. O aumento da idade dos participantes impõe aumentos progressivos no custo do serviço, em fases da vida em que esse serviço é mais necessário. Nos EUA, tidos como a maior democracia do planeta, as pessoas com idade entre 18 e 65 anos não têm direito a quaisquer serviços de saúde pública. Terão de pagar seguros de saúde privados. Há relatos de pessoas que ficaram doentes e preferiram não se tratar, por causa do alto custo dos serviços privados. Outros ousaram se tratar em serviços de saúde privados, assumindo dívidas estratosféricas para o restante de suas vidas. No Brasil, recentemente, tivemos um exemplo da falta de ética médica de um desses planos, que usou seres humanos doentes como cobaias para medicamentos comprovadamente ineficazes na atual pandemia. Não se pode mencionar a saúde privada em nosso e em outros países sem esquecer dos hospitais privados. Esses hospitais atuam como uma forma de negócio puro e simples. Em cada um deles há gente encarregada de verificar diariamente a lotação da instituição. Todo esforço é feito para que não haja quartos ou qualquer outra forma de internação desocupados. Doentes em fase terminal já não interessam mais. Doentes em franca recuperação têm sua alta antecipada para ceder espaço a alguém mais doente e que propiciará um maior faturamento à instituição. Claro está que a saúde privada no Brasil é por demais ineficiente.
· Educação pública – a educação pública no Brasil e em muitos outros países da periferia do sistema tem tido sua dotação orçamentária sensivelmente reduzida em anos recentes. Isto tem resultado em uma óbvia redução de sua qualidade. A educação privada impõe limites ao acesso. Somente os que podem pagar por esse tipo de serviço terão acesso a ela. Uma sociedade em que somente uma minoria tem acesso à educação de melhor qualidade não é uma sociedade de iguais. A prevalência da educação privada aumenta a desigualdade em países já tão desiguais quanto o nosso e dezenas de outros. Assim, a educação privada no Brasil e nesses países é claramente ineficiente.
· Transporte público – os serviços de transportes públicos sob a forma de concessão privada se contrapõe às normas de segurança, higiene e sanitárias. A lógica do lucro capitalista leva o empresário de transportes públicos a pôr em circulação um número mínimo de veículos, buscando reduzir seu custo, sem se importar com a situação dos passageiros. É deste modo que funcionam os sistemas de trens urbanos, os metrôs e ônibus urbanos nas grandes cidades, tornando-os verdadeiros criadouros de vírus e bactérias. Enfim, o serviço público de transportes no Brasil e em muitos outros países é altamente ineficiente.
· Estabelecimentos correcionais – Em alguns países centrais do capitalismo, inclusive em alguns estados dos EUA, funcionam penitenciárias privadas ou que são concessionárias de estabelecimentos construídos pelo Estado. O lucro das empresas proprietárias ou concessionárias de estabelecimentos correcionais está vinculado ao número de indivíduos internados sob sua guarda. Portanto, não interessa a tais empresas a redução da criminalidade nas áreas de sua jurisdição . Esta contradição gerada pela busca do lucro à custa do crime, dá margem a um sem-número de manobras visando elevar a população carcerária, inclusive algumas imorais. Vê-se aí que a privatização de estabelecimentos penais, além de arriscada, traz em si o perigo e a insegurança para a sociedade.
Outros setores – Além desses setores, há contradições em vários outros, tais como o não tratamento d’água e esgotos e as doenças daí resultantes, sobretudo, as infantis em áreas não urbanizadas na periferia das metrópoles, a questão da segurança pública e um sem-número de conflitos entre a atuação das empresas privadas e o interesse da sociedade, sendo um dos mais importantes a diferença de remuneração entre privilegiados e os esquecidos pelo sistema. Há dados apontando que a relação entre esses números em alguns países chega a 3.200 para 1.
Não há igualdade que resista!!!
Apenas alguns desses dados servem para que os (neo)liberais se lembrem de que a entrega da atividade econômica ao setor privado produziria muitos males às sociedades. Por fim, esqueceram-se os (neo)liberais de mencionar o notório aumento das tarifas e custos dos serviços e atividades privatizadas.
Argemiro Pertence é engenheiro mecânico e observador da sociedade