“Para afirmar nossa identidade e realizar nossas potencialidades só necessitamos nos livrar de nossas próprias classes dominantes, medíocres e infecundas, que fizeram de nós um proletariado externo do primeiro mundo, impiedosamente explorado. Quando sairmos da pobreza e da ignorância a que estivemos secularmente condenados, como produtores do que não consumimos para gerar prosperidades alheias, esplenderemos, afinal, como a civilização nova, criativa, solidária, alegre e feliz que havemos de ser” (Darcy Ribeiro, “O Brasil como Problema”, 1995)
“O medo do que possamos descobrir nos impele a rejeitar o exame de nossas crenças mais profundas, mas esse exame é ineludível se quisermos alcançar uma compreensão científica do mundo de nossos dias” (Berry J. Meggers, antropóloga estadunidense, no prefácio à edição em inglês de “O Processo Civilizatório”, de Darcy Ribeiro, 1968).
O gênio brasileiro Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros (MG) no dia 26 de outubro de 1922.
Nesta quinta-feira, 26 de outubro de 2023, completaria 101 anos, se uma dolorosa doença não nos tivesse privado do seu convívio em 17 de fevereiro de 1997, aos 74 anos.
Darcy Ribeiro, sempre instrutivo, era intelectualmente desafiador.
Muito nos deixou de pesquisas, conhecimentos, reflexões, propostas, principalmente sobre o Brasil, o qual interpretou a partir do próprio Brasil, tanto pelas facticidades quanto pelas potencialidades, dentro de uma fecunda dialética entre a ciência e a utopia.
Para fins de recorte analítico, trataremos neste artigo somente dos pilares da construção do nosso Estado Nacional: a Soberania e a Cidadania.
Há natural inter-relação entre estes dois pilares, que se interconectam em muitas situações, em diversos sistemas, mas há, igualmente, uma precedência.
Não há Estado sem Soberania. Pois um Estado sem Soberania é um Estado Colonial, não é um Estado Nacional. E um Estado Colonial, ainda que dificilmente, pode ter algum vetor de Cidadania em sua área de atuação, mas não pode permitir qualquer ação de Soberania, pois estaria restringindo a atividade colonizadora.
O país colonizado não desenvolve tecnologia, a tem transplantada do colonizador, é uma projeção, se necessária adaptada para as condições geográficas diferentes, para a realidade do colonizado.
Buscando melhor explorar os recursos das colônias, o colonizador pode até desenvolver tecnologias específicas para aplicar no colonizado, mas esta estará assentada nas bases daquela desenvolvida na teoria colonizadora.
Dada esta precedência, iniciaremos pela Soberania estas considerações sobre o Estado Nacional Brasileiro, pois, como muito bem definem os chineses, cada Estado Nacional é uma realidade, o mundo do século 21 é aquele de sociedade multipolar.
SOBERANIA
Darcy Ribeiro escreve:
“Nações há no Novo Mundo – Estados Unidos, Canadá, Austrália – que são meros transplantes da Europa para amplos espaços de além-mar. Não apresentam novidade alguma neste mundo. São excedentes que não cabiam mais no Velho Mundo e aqui vieram repetir a Europa, reconstruindo suas paisagens natais para viverem com mais folga e liberdade, sentindo-se em casa. É certo que às vezes se fazem criativos, reinventando a república e a eleição grega. São, a rigor, o oposto de nós” (“O Povo Brasileiro A Formação e o Sentido do Brasil”, 1995).
Duas realidades dão as características onde se assentam a nossa Soberania: a física e a social.
O Brasil multiétnico, miscigenado é naturalmente pacífico, ao que se acrescenta a imensa riqueza natural: mineral, vegetal, animal, energética, que não nos impulsiona para conquistas de espaços e de bens, fora dos limites do território nacional.
Em seus anos como senador pelo Estado do Rio de Janeiro, o gênio Darcy Ribeiro fez publicar, pelo Senado Federal, a revista Carta’, onde contribuíram outros importantes intelectuais brasileiros e estrangeiros, para o profícuo debate onde aperfeiçoaríamos nossos conhecimentos, nossa capacidade analítica e propositiva.
Em julho de 1993, foi publicada a Carta’ nº 8, com inclusão do artigo “As Ilusões do Neoliberalismo”, do professor Theotônio dos Santos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor de numerosas obras fundamentais para o conhecimento da economia dependente e do desenvolvimento.
Neste artigo, de 1992, Theotônio dos Santos discorre sobre o crescimento econômico e o endividamento ocorridos nas últimas quatro décadas do século 20, 1950 a 1990.
Ele alerta para a gestão do déficit público que assombra as economias, principalmente as dependentes, nos anos 1980, e escreve:
“Muito mais difícil (do que gerir os papéis sem valor, sem respaldo de bens) é obrigar os contribuintes a aceitar a ideia de sustentar as empresas e bancos em quebra indefinidamente. Mesmo porque a cada ano aumenta o volume dessas quebras e diminui a possibilidade de o Estado financiá-las”.
Conclui com o que denomina “íntimos pensamentos” dos neoliberais, que combatem, mas desejam, a intervenção dos Estados:
“O mercado nos mata. Avancemos sobre os mercados que ainda existam e liquidemo-los. Que se abram os mercados … dos outros”.
Theotônio dos Santos ainda esclarece:
“Robert Kuttner, no Economic Viewpoint do Business Week de 15/10/1990, revela esta realidade no velho debate sobre a globalização da economia mundial e o desaparecimento ou não dos interesses nacionais”.
Ao transcrevermos estas considerações, chamamos a atenção para a atividade que está sempre encimando as ações pela Soberania: a defesa nacional. Que defesa pode realizar a nação contra esta invasão sem armas, vestida com a ideologia que permeia, sem maiores reflexões, todas sociedades ao final do século 20?
Que defesa pode realizar a nação contra esta invasão sem armas, vestida com a ideologia que permeia, sem maiores reflexões, todas sociedades ao final do século 20?
No que cabe à Soberania é deter toda tecnologia de hardware e software das comunicações nas mãos do Estado Nacional Brasileiro.
Não é questão de intervenção do Estado na economia, é entender que a comunicação e seus equipamentos são elementos da guerra de dominação contemporânea. Que a informação transforma realidades, se infiltra em todos domínios do espírito, da produção, do consumo, de tudo que é humano.
E que o interesse nacional, de todos, está acima do interesse individual, seja este quem for.
Porém, esta realidade não se esgota na comunicação, ele avança na produção de energia. Qual a energia de maior densidade por unidade?
Qual a mais facilmente e menos onerosa para ser produzida, transportada, comercializada, e mantida sem descontinuidade?
E qual aquela que impulsiona o desenvolvimento tecnológico para o futuro?
Obviamente não será aquela intermitente, cara e difícil de manter e de atender locais mais remotos.
Ou seja, o controle da energia do petróleo e a nuclear deve ficar nas mãos do Estado Nacional, assim como não se imagina que um Estado Soberano tenha as Forças Terrestres, Marítimas e Aéreas sobre domínio de outros Estados ou de confederação de estados.
E a integração científica e tecnológica é a realidade das civilizações que atingiram maiores níveis de complexidade.
Estamos fadados pela nossa dimensão geográfica, pelos nossos recursos naturais, pela nossa expressão demográfica a sermos grandes. Não podemos nos considerar dependentes, logo a ciência e tecnologia necessitam compor a estrutura de governança do Estado Nacional.
Em maio de 1994, foi publicada a Carta nº 11, onde Darcy Ribeiro trata de “Nossa Herança Política”, e se lê:
“No plano da Soberania, desde a Independência, o Brasil agia como nação orgulhosa de sua autonomia e ciumenta de sua autodeterminação, repelindo qualquer interferência política estrangeira. No plano econômico, ao longo de todo um século, nossa economia crescera ao ritmo anual de 4,4% do PIB. Fato extraordinário, a nível mundial, que nos situava entre os países que mais prosperavam”.
Outro vetor da Soberania é a economia, o controle da moeda e do crédito, a gestão das trocas internacionais, entendo e privilegiando o interesse nacional. O Banco Central é um instrumento do Estado, da sua governança.
O absurdo nesta era neoliberal financeira é considerar que uma ação de soberania do Estado, como a política e gestão monetária, seja conduzida por organização “independente” do Estado e “dependente” do mercado financeiro, cujos interesses são quase sempre, senão sistematicamente opostos, ao interesse Nacional Brasileiro.
A transnacionalização da economia transforma o território nacional em peneira por onde se extroverte os frutos do trabalho nacional, tornando o país mais submisso e vulnerável.
No campo da Soberania há muito que fazer para dar autonomia decisória e governança ao Brasil.
O Brasil, vocacionado a ser a Roma dos trópicos, como Darcy anuncia ao final de “O Povo Brasileiro” (1995), precisa de um grau de soberania à altura da sua aspiração imperial, não no sentido imperialista, mas no sentido clássico de unidade política universal, abrangente de vários povos e humanidades, aqui sincretizadas em um povo novo, original e humanista, capaz de se relacionar com todos sem se deixar subjugar por ninguém.
Urge, porém, os brasileiros despertarem para sua condição:
“Não tendo expressão própria como potência, (o Brasil) paga um alto preço pelos compromissos internacionais que assume…. Mais graves são suas contribuições espontâneas aos Estados Unidos (da América), através de uma política de seguidismo servil com respeito às diretrizes de Washington para a América Latina” (Darcy Ribeiro, “Os Brasileiros I Teoria do Brasil”, 1969, nos “Estudos de Antropologia da Civilização”, volume IV).
CIDADANIA
“Em nossas sociedades subdesenvolvidas e, por isto mesmo, descontentes consigo mesmas, tudo deve estar em causa. Cumpre a todos indagar dos fundamentos de tudo, perguntando a cada instituição, a cada forma de luta e até a cada pessoa, se contribui para manter e perpetuar a ordem vigente ou se atua no sentido de transformá-la e instituir uma ordem social melhor. Esta ordem melhor … representa, tão somente, aquilo que permitirá a maior número de pessoas comer mais, morar decentemente e educar-se” (Darcy Ribeiro, “As Américas e a Civilização Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos”, 1970, nos “Estudos de Antropologia da Civilização, volume II”).
Foi Caracala (século 212 d.C.) quem ampliou, a todos os homens livres pela extensão do Império Romano, o direito de cidadania. O que significou este direito?
O jurista e sociólogo francês Henri Lévy-Bruhl (1884-1954) identificou com clareza as características do direito romano, esta avançada sociedade que dominou a Europa, a Ásia Menor e norte da África de 753 a.C. até 395 d.C.: o laicismo, a formalidade, a capacidade de inovar e o individualismo que, “pela habilidade de colocar vinho novo em odres velhos”, se ajustava aos espaços do poder de Roma e aos seus tempos da vigência (Henri Lévy-Bruhl, “Sur la laïcisation du droit à Rome”, 1951).
Por conseguinte, a cidadania não é um direito divino ou uma herança social ou familiar, é um direito definido pela lei, onde esta seja aplicada, e entendida como conquista da sociedade.
E, assim, podemos interpretar, com esse ajustamento às mudanças das sociedades, o conceito de cidadania. E, precisando ainda mais o conceito de mudança, atribuir seu permanente ajustamento ao tempo das relações do homem com a sociedade, afirmando ser a cidadania uma construção.
A cidadania no Brasil difere qualitativamente daquela de outros países pelo fato do Brasil não ser um Estado-nação como qualquer outro, mas um Estado-império, a Nova Roma.
A cidadania brasileira não se limita por formalidades jurídicas e comunidades de sangue, mas se fortalece pela assimilação miscigenadora de diferentes influências que, aqui, formam unidade sem prejuízo da diversidade.
A autenticidade que aqui se verifica tanto mais se vivifica quanto mais sofrida é a trajetória do povo brasileiro, marcado pela escravidão e mais ainda pela sempiterna luta para dela se emancipar.
A cidadania brasileira pressupõe, então, um arranjo de poder capaz de lhe conferir sentido estratégico frente aos desafios internos e externos, o qual somente pode se materializar na forma de robusto Estado capaz de orientar os equilíbrios sociais necessários.
Infelizmente não é o que ocorre hoje, pois, nesta vigência do neoliberalismo, em que a cidadania é esvaziada pela privatização sistemática dos espaços sociais e do Estado que os representa, não nos deve estranhar que o homem social, isto é, o homem que teria no direito dos outros seus limites, é um homem sem limites, sem freios, sem ajustar-se a viver entre outros seres humanos, respeitando apenas suas conveniências, onde a vida em sociedade impõe regras específicas para o convívio.
Ao dissertar sobre a questão indígena no mundo colonizado pelos europeus, Darcy Ribeiro discorre, magnificamente, sobre a questão da cidadania, onde ela inexiste (Darcy Ribeiro, “Os Índios e a Civilização A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno”, 1970, nos “Estudos de Antropologia da Civilização”, volume V):
“As relações da sociedade nacional com as tribos indígenas se processam como um enfrentamento entre entidades étnicas mutuamente exclusivas. Dada a desproporção demográfica e a de nível evolutivo que existe entre elas, a integração representa uma ameaça permanente de desintegração das etnias tribais. A reação destas consiste, essencialmente, num esforço para manter ou recuperar sua autonomia e para preservar sua identidade étnica, seja através do retorno real ou compensatório a formas tradicionais de existência, sempre quando isto ainda é possível; seja mediante alterações sucessivas nas instituições tribais que tornem menos deletéria a interação com a sociedade nacional”.
Recordemos que o gênio afirmava não ter o Brasil expressão própria (Estudos, vol. IV).
Ora sem ter-se construído a cidadania nacional brasileira, ou ter seu processo construtivo em marcha, pela permanente dominação externa, as relações com modelos diferentes são inevitavelmente desrespeitosas, ou pela atitude de imposição, agressiva, ou pela da submissão, alienada.
Por conseguinte, é necessário estabelecer o “comer”, o “morar”, o “estudar” e dar, a estas bases construtoras, a lei e dar-lhe, igualmente, as condições de aplicá-las, torná-las efetivas.
Nossa característica miscigenada, inter-racial, nos leva naturalmente a sermos pacíficos.
A vigência do belicoso poder financeiro nos faz receber doses descomunais de propaganda do ódio, lembrando o romance distópico de George Orwell: “guerra é paz, ignorância é força, nada é ilegal porque não há leis” (George Orwell, “1984”, 1949).
“Comer” significa ter saúde, ter trabalho, nutrir-se e dar nutrição para a sociedade; “morar” é abrigar, é se conectar com a sociedade e o meio ambiente; “estudar” é conhecer-se a si e aos outros, pessoas e coisas, desejos e realizações, e, também, trabalhar, planejar, ou seja, influenciar o futuro com seu conhecimento transformador.
“Este complexo de desconexões mecânicas e humanas requer … uma revisão completa do sistema educacional” (Darcy Ribeiro, “O Processo Civilizatório Etapas da Evolução Sociocultural”, 1968, nos “Estudos de Antropologia da Civilização”, volume I).
Para que haja Soberania e Cidadania, o Estado deve assumir o controle efetivo da comunicação, como já discorremos, porém deve igualmente “utilizar exaustivamente os novos e prodigiosos sistemas de comunicação em massa”, como o fazem as forças antagônicas ao Estado Nacional, “para conformar uma opinião pública submissa e disciplinada, mediante doutrinação que a torne incapaz de qualquer opção radical”, impossibilitada de vencer a pedagogia colonial (Estudos, vol. I).
A questão científica e tecnológica, “faz-se intencional e lúcida em todos os conteúdos científicos e tecnológicos, mas residual e irracional nos conteúdos institucionais e sociais”; nem construímos o Estado Nacional Brasileiro, nem fornecemos a condição para o povo construir sua cidadania. Na transformação de tudo em mercadoria, “o menor problema é o da corrupção” (Estudos, vol. I).
Concluindo a questão da cidadania, coloquemos a Garantia dos Direitos.
Na Carta nº 10, lê-se a transcrição do discurso do Senador Darcy Ribeiro, no Plenário do Senado de Federal (15/12/1993):
“Nossas responsabilidades vão além dos limites desta Casa. O Parlamento, voz da cidadania, deveria ser o centro de lucidez e honradez responsável pela correção da forma, da estrutura e do funcionamento das instituições que cria e consagra. Temos não só o direito, mas o dever de acompanhar criticamente as práticas dos outros poderes”.
E na mesma fala:
”Nosso ideal de justiça não pode ser meramente formalista. Queremos a Justiça como a Justiça deve ser: atenta à letra da lei. Mas não a Justiça ritualista que não se exalte nem se comove, quando promove a injustiça. Isto ela o faz, quando deixa notórios bandidos em liberdade, para mais roubarem e mais usufruírem de seus roubos, em razão de chicanas processuais. Este ritualismo ameaça converter a Justiça brasileira numa burocracia da lei, desinteressada pela verdade de qualquer questão, porque só tem olhos para processualística. Do feio pecado do faraonismo peca também o Poder Judiciário” e “são tão reiteradas as acusações de nepotismo e de clientelismo que a Justiça não pode mais esconder sua realidade da opinião pública. O povo quer saber”.
Felipe Maruf Quintas é Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), criador e produtor do canal “Brasil Independente”, pelo YouTube.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas (UM/DTCD).
Fontes: