Artigo

O Rio Grande é um abraço

Data da publicação: 16/05/2024

A Estância é de São Pedro. E São Pedro está incomodado.

De repente, a mão de rios avistada pelos colonizadores portugueses tornou-se garra, que com fúria olímpica devastou o Rio Grande.

Tornamo-nos cordeiros guachos[1], num balido único, procurando, no pampa, a mãe perdida.

Apesar de todas as nossas diferenças e nossos arraigados preconceitos, todos nós, os “pelo duro”, “os pretos”, os “bugres”, os “alemães-batata” e “os gringos” tornamo-nos um só. Amanhecemos lanceiros[2] e adormecemos Charruas[3] em volta do fogo, em busca de um conforto perdido em algum galpão empoeirado.

Foi como se o mate amargo[4] estivesse estado lá, sempre, como um aviso: há que se ter equilíbrio entre o verde da erva e o calor da água. E como se algum desavisado, ao adentrar no galpão, boleando[5] o pala[6], derrubasse a cuia[7]. Foi-se a erva, foi-se a água, fez-se o estrago.

Na década de 90, meu pai tinha uma égua tostada que sofreu um acidente num barranco, na velha Chácara da Cascata. Tinha sido presente de um sobrinho querido. O nome, Lixiguana (chuva fina que cai de lado). O veredito foi uníssono, era caso de sacrifício.

Não conformado com isso, levei a égua à Clínica da Hípica. Operada por mão de fada, a égua se reergueu. Não serviu mais para montaria, mas embelezava o campo e ainda deu para tirar uma cria. E que baita[8] cria. O tratamento foi longo e cansativo. Naquela ocasião, a égua foi rebatizada com o nome de “Esperança”.

Enfim, tem sempre um cavalo envolvido. O cavalo Caramelo não resistiu firme no telhado a troco de nada. Resistiu para lembra-nos que nós, gaúchos, somos centauros. Combalidos, mas centauros.

Chove torrencialmente, mas tornamo-nos abraço. E aos poucos a ele juntaram-se mãos amigas, vindas do Sul, Sudeste, Centro-oeste, Norte, Nordeste, de todos os mais recônditos cantos do Brasil, para lembrarmos que fazemos parte de algo maior e íntegro.

Um abraço oriundo da adversidade, mas que contém aquilo que os gregos denominavam filotimia (apreço pela honra, pela dignidade), a philia (amizade, afeição) e eunoia (benevolência). Estamos crescendo. A cada alvorecer somos mais gaúchos e menos guachos. E vamos reconstruir o Rio Grande. Como dizia o poeta:

“vai-se um ano, mais outro, não me iludo
foram tantas lixiguanas pelegueadas
Eu sinto frio mas apesar de tudo
O meu destino é andar quebrando geada”[9]

Se nessa pelegueada[10] conseguirmos nos tornar um Estado mais atento à mãe terra e à Justiça Social, teremos feito nossa maior façanha. E não seremos apenas o modelo, seremos gigantes.

César Vergara de Almeida Martins Costa – Advogado membro do Conselho Superior do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul

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[1] Guacho – animal sem mãe, amamentado com leite que não é o materno
[2] Alusão ao Lanceiros Negros – negros livres ou de libertos pela República Rio-Grandense que lutaram na Revolução Farroupilha.
[3] Alusão aos índios charruas que habitaram a região dos pampas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e do sul da Argentina.
[4] Chimarrão – infusão de erva-mate que passa de mão em mão.
[5] Bolear – sentido figurado – alçar, girar.
[6] Vestimenta típica do gaúcho – Poncho.
[7] Recipiente de cabaça onde se faz o chimarrão.
[8] Expressão gauchesca: grande, enorme.
[9] Jayme Caetano Braun -Geadas
[10] Luta, batalha, combate