Millor Fernandes achava que devíamos reavaliar tudo quanto dissesse respeito à China, porque lá a escala das unidades de medida é bem maior. Se um chinês falasse em meia dúzia de gatos pingados em qualquer evento, deveríamos pensar no mínimo em sessenta mil pessoas.
Isso vale para gatos pingados, mas vale também para a demografia (o bilhão e já não sei quantas centenas de milhões de chineses) e para a economia. No Brasil pouco se tem falado no banco internacional de desenvolvimento e investimentos que a China está criando ou propõe criar: os americanos é que estão falando, sabedores como estão, desde o fim do século passado, de que a China logo vai ter, se é que ainda não tem, o maior PIB do planeta, desbancando o reinado talvez secular dos Estados Unidos.
No Brasil, porém já sabemos que os chineses ultrapassaram os americanos como nosso maior parceiro comercial e acabamos de saber do financiamento concedido pela China à Petrobrás, de 3,5 bilhões de dólares.
Quando nos angustiamos pelos efeitos demolidores, sobre o crédito da Petrobrás, das patifarias reveladas pela Operação Lava Jato (perdão, malfeitos), a China libera um crédito que equivale à contribuição hipotética de mais de dois dólares per capita de cada um dos integrantes de seu bilhão e tanto de habitantes. E a 11 bilhões de reais, quantia que teríamos em nossa poupança coletiva, dispensando-nos de tomá-los emprestados, se não fossem os malfeitos, no valor de 19 bilhões de reais, revelados por uma investigação paralela, a Operação Zelote.
A entrada da China em nosso cenário econômico obriga-nos a repensar algumas coisas.
A China, por exemplo, pensa a longo prazo, não no prazo curtíssimo, no overnight do capitalismo financeiro do Ocidente neoliberal. Há mais de meio século, quando pediram a Chou En-lai, então Primeiro-Ministro da China, sua opinião sobre a Revolução Francesa, ele respondeu:
– Acho que é cedo ainda para julgá-la.
A Revolução Francesa já tinha quase dois séculos e esse chinês culto, sofisticado e cosmopolita, filho de mandarim mas revolucionário marxista, considerava prematuro julgá-la.
Com sua experiência mais que milenar (até a acupuntura chinesa é milenar e, no entanto, modernamente científica), os chineses devem considerar os malfeitos da Petrobrás uma coisa transitória, mais ou menos inevitável na etapa atual do desenvolvimento do Brasil.
De corrupção eles sabem muito mais que nós, e como ela serve de instrumento a tantos interesses antinacionais. Desde as Guerra do Ópio, no século 19, quando a corrupção (sobretudo dos cipaios, os capitalistas nativos associados às multinacionais da época) abriu as portas da China ao ópio que ela não produzia nem consumia e à dominação política estrangeira, desde essa época, pelo menos, os chineses conhecem os tormentos impostos pela conjunção perversa da sujeição colonial com a corrupção. Até hoje a China castiga com extremo rigor, até com a pena de morte, os casos de corrupção, e só agora começa a ser ultrapassada pela Indonésia, com o fuzilamento de estrangeiros condenados por tráfico de tóxicos. Para os indonésios, a cocaína de hoje equivale ao ópio que submeteu a China ao domínio europeu no século 19.
Claro que o que os governos chinês e indonésios consideram bom para seus povos, a condenação à morte de corruptos e traficantes, não seria e não será bom para o Brasil, assim como nunca a consciência brasileira aceitou ou aceitaria a opinião de um ministro da ditadura de 1964, de que o que é bom para os Estados Unidos é necessariamente bom para o Brasil.
Pois esses chineses tão implacáveis com seus corruptos fecham os olhos ao que se ouve nos mercados financeiros ocidentais e liberam essa montanha de bilhões de dólares para a Petrobrás. Não há dúvida de que estão pensando no futuro. Pouco talvez lhes interesse a devolução desse dinheiro nos prazos e com os juros ajustados, porque na verdade esse financiamento é um investimento. A China, a rigor, está investindo no futuro da Petrobrás, que é o Pré Sal, não no presente da revelação de propinas e patifarias. Ao investir no futuro da Petrobrás, a China investe em seu próprio futuro, que depende do suprimento seguro de petróleo.
Nisso o modelo chinês revela muito mais sabedoria que o capitalismo financeiro do neoliberalismo ocidental, que, aliás, nãotem sabedoria alguma. Pelo pensamento ocidental hoje dominante (mas, ao que parece, já declinante), as empresas são descartáveis, podem trocar de mão ao sabor de conspirações acionárias e servem apenas para produzir dividendos. Ora, a Petrobrás foi concebida, há mais de sessenta anos, para produzir energia, não dividendos, e tem resistido, graças à consciência de seu corpo técnico e profissional, a todas as tentativas de desnaturá-la. Isso os chineses entenderam e por isso investem nela, não para socorrê-la,mas porque esse é seu interesse.
A nós, brasileiros, cabe sem demora aprender uma lição: que a Petrobrás não é como outras empresas e não pode ser conduzida pelos critérios da Bolsa de Nova York ou pelos da Bovespa. Ela não existe para o fim prioritário de pagar dividendos, e sim para assegurar e impulsionar o futuro de nosso país, isto é, de nossos filhos e netos,e, mais além, dos netos de nossos netos.
Se meia dúzia de gatos pingados chineses, os responsáveis pela liberação do financiamento, entendem isso, nós também podemos entender.