em bases científicas, industriais, altruístas e progressistas, ou seja, positivas, partindo do material intelectual e institucional acumulado nas experiências históricas. O estudo dos fenômenos sociais, considerando a relatividade e as “leis naturais invariáveis” inerentes a eles, devia servir de base para uma ação sobre a realidade, dirigida por um governo forte e centralizado, de modo a impulsionar um conjunto de transformações que favorecessem o aperfeiçoamento coletivo e, portanto, moral, das sociedades e dos seus membros. A etapa definitiva de evolução da humanidade em que isso se daria, a positiva, sucederia a metafísica, que por sua vez havia sucedido a teológica.
As fases teológica e metafísica procuravam determinado fator absoluto de explicação cosmológica. Nelas, o espírito humano buscava a origem e o destino do universo, atribuindo, na primeira, o princípio causal a entes sobrenaturais e, na segunda, a abstrações intelectuais. Na fase positiva, o espírito humano abdicaria dessa procura e passaria a investigar as leis que governam os fenômenos sociais, isto é, as relações invariáveis de semelhança e sucessão entre eles e que os caracterizam. O relativo substituiria o absoluto e prepararia a humanidade para conhecer adequadamente o seu próprio mundo e reconstrui-lo conforme seus próprios desígnios.
Para Comte, a modernidade até então, ao consagrar princípios individualistas, abstratos e negativos próprios da metafísica liberal (como o contratualismo, o constitucionalismo e o livre-cambismo), não lograra integrar a sociedade, ao contrário, a esfacelara em benefício apenas de oligarquias várias, como as proprietárias, as parlamentares e as intelectuais, essas últimas sobretudo na imprensa.
A ausência de critérios compartilhados de sociabilidade abriu caminho ao arbítrio, manifestado tanto pela “democracia anárquica” quanto pela “aristocracia retrógrada”, ambas incapazes de restabelecer a unidade social necessária ao desenvolvimento comum, ou, em outras palavras, a ordem e o progresso. A unidade social própria do medievo estaria, para Comte, perdida, mas não de maneira definitiva. A desorganização característica da modernidade ocidental se dava pela transição de um sistema social, o metafísico, para outro, o positivo, no qual adviria a reorganização por ele preconizada. A unidade a ser alcançada no estágio positivo seria, inclusive, superior ao do medievo, por a sociedade dispor de um grau maior de conhecimento acerca das suas condições e das leis que a regem. A positividade dessa nova fase consistiria, fundamentalmente, no domínio da humanidade sobre si mesma, fazendo prevalecer a ciência sobre a metafísica e o altruísmo sobre o egoísmo.
O proletariado e as mulheres seriam os porta-vozes e os agentes principais dessas mudanças, daí que Comte defendeu, ipsis litteris, as “revoluções” proletária e feminina. Revoluções que, longe de romperem com a ordem, a restabelecessem, fundamentando o progresso vindouro e vinculando-o ao conjunto histórico, que não deveria ser rechaçado mas elaborado, extraindo dele o impulso para o desenvolvimento social. A humanidade assumiria, a partir dessa fase, a posição anteriormente atribuída a Deus. A “religião da humanidade”, proposta por Comte, enaltece a imanência da humanidade e sua capacidade de aprimoramento, ao mesmo tempo progressivo e ordeiro.
Não é difícil verificar a incompatibilidade da doutrina positivista, largamente difundida no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, com a organização social e institucional existente durante a Primeira República.
Republicanos e abolicionistas inveterados, os positivistas brasileiros não tiveram força política para converter a maior parte de seus ideais em realidade quando da Proclamação da República, ainda que muitos deles fossem presentes em instituições politicamente decisivas como o Exército e tivessem apoiado e mesmo participado da instauração republicana.
O lema presente na bandeira nacional e a separação entre Estado e Igreja consagrada na Constituição de 1891 foram as principais contribuições positivistas em âmbito nacional. No mais, o reformismo político e social positivista, inspirado em Comte, não obteve efetividade prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir do governo de Prudente de Morais, que consolidou no comando do país a coalizão agrário-exportadora e mercantil. O arranjo institucional do período, caracterizado por um federalismo que fortalecia a autonomia dos estados em relação à União e facilitava assim o fenômeno do coronelismo, e o arranjo econômico, organizado sobretudo em torno da produção de café para o exterior e no aprofundamento da dependência para com o capital financeiro e industrial estrangeiro, principalmente inglês e estadunidense, consagravam o pleno domínio das oligarquias primário-exportadoras do centro-sul (particularmente de São Paulo) no comando do país.
Foi um período de vigência de valores e políticas de forte conteúdo liberal, que iam ao encontro das demandas oligárquicas vigentes, exceto quando se tratava de pleitear a proteção do Estado para negócios particulares ligados à cafeicultura, como se verificou no Convênio de Taubaté em 1906.
Nesse contexto, o positivismo, uma das ideologias fundantes da República, assumiu um papel crítico e contestador, análogo ao de Comte em relação à França que vivenciou, propugnando uma organização alternativa do país, consoante os princípios do mestre francês, jamais esquecendo de sua lição acerca da relatividade dos fenômenos sociais, o que estimulou a formulação de propostas adequadas à realidade específica brasileira.
Medidas defendidas pelos positivistas desde o Império, como o fortalecimento do Executivo e a centralização do poder, a função social da propriedade, a emancipação material (para além da formal) dos negros, a mediação do Estado nas relações entre o capital e o trabalho para proteger o segundo e a responsabilização do Estado pela educação pública e pelo desenvolvimento industrial, opostas aos interesses dos grupos dominantes na Primeira República, teriam que esperar a Revolução de 1930 para serem colocadas em prática.
Ainda assim, devido à forte autonomia estadual então existente, foi possível ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR), de linha programática positivista, governar o Rio Grande do Sul na contramão do governo federal e erigir instituições estaduais mais apropriadas à execução do programa positivista. Como bem assinalou Alfredo Bosi em seu brilhante Dialética da Colonização (Companhia das Letras, RJ, 1992), o positivismo gaúcho antagonizou, em termos de projeto de Estado e de país, com o liberalismo paulista/federal.
A Constituição do estado gaúcho, de 1891, teve o positivismo como sua linha-mestra. Poder Executivo forte, educação primária pública e leiga a todos, separação entre Estado e Igreja, abolição de privilégios de nascimento, nobiliárquicos e acadêmicos, estabelecimento de concurso para provisão dos cargos públicos civis e a supressão de todas as distinções entre funcionários públicos e outros tipos de empregados foram aspectos marcantes da Constituição do RS e balizaram o chamado castilhismo, tendência política batizada em homenagem a Júlio de Castilhos, líder do PRR, presidente do RS de 1891 a 1898 e autor dessa Carta, seguida por Borges de Medeiros, presidente do estado de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928.
Foram medidas políticas dos governos positivistas gaúchos: o imposto territorial, seguindo a preferência comteana por impostos diretos e desafiando o poder dos grandes fazendeiros que eram privilegiados no âmbito federal; incentivos fiscais às manufaturas gaúchas infantes, dentro de um projeto industrialista liderado pelo governo, contrastando com a opção primário-exportadora da Primeira República desde Prudente de Morais, quando as oligarquias paulistas conseguiram derrotar o desenvolvimentismo avant la lettre de Rui Barbosa e de Floriano Peixoto; a socialização dos serviços públicos, com a defesa explícita de Borges de Medeiros, em sua Mensagem de 1913, da municipalização de serviços essenciais como água, esgoto, iluminação, energia elétrica, bondes e ferrovias. A estatização do porto do Rio Grande e da belga Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil se contrapunha ao privatismo do governo federal, que manteve a política prevalecente no Segundo Império de subordinação da infraestrutura ao capital estrangeiro.
Também no âmbito trabalhista, o positivismo gaúcho opôs-se frontalmente ao liberalismo oligárquico federal. No programa do Partido Republicano Histórico, Júlio de Castilhos defendia uma série de medidas que anteciparam boa parte da legislação trabalhista implementada por Vargas desde na década de 1930, contradizendo assim o lamentável folclore da inspiração “fascista” das leis do trabalho: o regime de 8 horas de trabalho na indústria, férias, aposentadoria, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e um tribunal de arbitragem para resolução de conflitos entre patrões e empregados, tudo isso já constava no ideário castilhista.
Enquanto os governos federal e paulista reprimiam violentamente as greves operárias de 1917, o governo gaúcho negociou com os grevistas e induziu os patrões no estado a aceitarem as reivindicações dos trabalhadores (Bosi citado, cap. 9). Também o engenheiro paraense Aarão Reis, positivista e socialista, contribuiu enormemente para a oposição ao status quo oligárquico da Primeira República, ao defender, em compêndio de economia política adotado oficialmente na Escola Politécnica, a maior intervenção e direção do Estado na economia e da sociedade a fim de estimular a industrialização, proteger o trabalho da coerção do capital, fomentar o mercado interno e o associativismo civil, e promover “carinhosamente” a educação popular no sentido do aperfeiçoamento da cidadania e do patriotismo no âmbito de uma organização democrática da sociedade (Antônio Paim, O Pensamento Político Positivista na República, In: Adolpho Crippa (org.) As Idéias Políticas no Brasil, vol. II, Editora Convívio, RJ, 1979, p. 59-61).
Pode-se, portando, concluir que cabe ao positivismo brasileiro no Segundo Império e na Primeira República, aplicado na política nos governos estaduais gaúchos durante essa última, a formulação de um projeto alternativo ao que era dominante no período. Nesse projeto constava a edificação de país soberano, desenvolvido e socialmente igualitário, dirigido a partir de um Estado forte e centralizado que coordenasse a totalidade da Nação para equilibrar e harmonizar os grupos sociais particulares e estabelecer um planejamento de longo prazo, acima dos interesses privados e tendo por fim a construção nacional em bases industriais e solidárias. A gênese do Estado social e nacional-desenvolvimentista, triunfante entre 1930 e 1980 (apesar de recuos e nuances ao longo do período) em oposição ao liberalismo oligárquico prevalecente em quase todo o período republicano anterior, pode enfim ser localizada na teoria e na prática positivistas nas décadas anteriores à emergência de Vargas como líder político nacional.
O castilhismo, a principal vertente política do positivismo em sua versão gaúcha, foi o berço do trabalhismo de Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Assim como o conjunto do positivismo, tem ainda hoje muito a iluminar acerca dos problemas nacionais brasileiros e da formulação e encaminhamento de soluções integradas em um projeto de desenvolvimento nacional.
Felipe Quintas, doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense
Gustavo Galvão, doutor em economia e autor de “As 21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT)”
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado
(Publicado em 24/07/2019 no jornal Monitor Mercantil, pag. 2, Opinião)