Não sei se sou eu quem tem estado atenta a este assunto, mas me parece que o feminismo, de uns tempos para cá, ganhou um novo fôlego e tem despertado um crescente interesse, estimulado por acontecimentos recentes como o tema da redação do ENEM, a reportagem “Bela, Recatada e do Lar” da Veja, o afastamento da PresidentA, o estupro coletivo e divulgação do vídeo nas redes sociais, além de um congresso, considerado o mais conservador desde a Ditadura, ameaçando direitos conquistados, inclusive os relativos às mulheres, com o risco de não haver os avanços necessários e, ainda, de haver retrocessos.
O preocupante é que essa onda feminista evidenciou um movimento inverso que se manifesta através de críticas, muitas baseadas no senso comum construído pela nossa sociedade patriarcal, e ameaças a mulheres que foram vítimas de violência de gênero e, também, as que saem em defesa dos direitos iguais denunciando a “cultura do estupro”. A internet tem sido um grande catalizador amplificando as discussões, tem contribuído para o empoderamento da mulher ao mostrar que este é um problema de todas, mas também atua perpetuando o senso comum que apreende o papel social da mulher definido pela biologia como sendo natural.
Muitas das dificuldades para implementação de avanços em relação à posição da mulher na sociedade vem do senso comum, pois ele impede que enxerguemos o problema dificultando o diálogo. A definição do que é ser mulher e sua posição na sociedade já está naturalizada em todos nós, não só nos homens, mas também nas mulheres, inclusive as feministas estão sujeitas a atitudes sexistas mesmo sendo esclarecidas e lutarem pela mudança. Isso ocorre porque há um consenso arraigado em nossa consciência de que certos comportamentos são considerados biologicamente naturais de cada sexo, dificultando demonstrar que são decorrentes da cultura de uma sociedade em que prevalece a supremacia do homem.
Certa vez um amigo postou uma imagem de duas portas de banheiro de algum bar, onde no masculino estava escrito “Bla” e no feminino “Bla bla bla…” na porta inteira, argumentei que aquilo era expressão da cultura machista. Ele reclamou que as pessoas estão radicais demais, disse que era só uma brincadeira, tudo esta sendo levado muito a sério e não se pode mais fazer uma piada. Tentei argumentar, mas desisti, sei que este amigo não teve intensão de ser sexista, a maioria não tem, e nós mulheres acabamos aprendendo a conviver com isso, cansamos de estar o tempo todo em alerta, preocupadas e se defendendo, nos acostumamos.
A questão não são as portas do banheiro, o problema é quando ligo o rádio e toca “Palpite” e a letra diz “tô com saudades de você censurando meu vestido…”; andando na rua escuto um cara abordando, de supetão, uma funcionária da limpeza dizendo “homem bom é o que bate em mulher, é disso que vocês gostam, não é?” e a vejo sem saber o que responder; dentro do metrô, tentando ler, sou interrompida por risinhos de dois amigos que estão fazendo piadinhas sobre mulheres com quem saíram e sobre seu comportamento liberal; entrando no trabalho escuto alguém dizer “vai Verão, vem Verão” para mim e; no meu momento de lazer, seja usando uma rede social ou numa ida descontraída a um barzinho me deparo com uma porta de banheiro feminino escrito: “bla bla bla…”. São essas coisas rotineiras que me refiro quando falo em senso comum e a naturalização imperceptível da opressão contra a mulher.
Depois de ver a tal postagem, assisti a uma sessão do Congresso em que uma deputada estava tentando falar e foi interrompida agressivamente por um coro de seus pares, então ela reclamou de que toda vez que uma mulher está falando é impedida por este tipo de comportamento, não há respeito. Mas, o que esperar de uma sociedade em que a nossa voz ainda tem poucos espaços? Muitas vezes quando tentamos denunciar o que acontece somos taxadas de “feminazi”, ameaçadas para nos fazer calar, ou tidas como fofoqueiras, linguarudas, as que falam demais e até a porta de um banheiro te mostra isto.
Nos deparamos com comportamentos desse tipo todos os dias e acabamos aprendendo a conviver, mas precisamos questionar até as piadinhas de todo dia, mesmo ouvindo reclamações de que o mundo está ficando politicamente correto demais e estamos vendo opressão em tudo. É preciso entender que o machismo também está permeado nas coisas banais e o que provoca a sensação do exagero é a naturalização, por todos nós, de um senso comum construído sobre uma sociedade de privilégios masculinos. A opressão contra a mulher está no cotidiano, no trivial, na porta do banheiro, dentro de casa e até em muitas das minhas atitudes, é no somatório de todas essas pequenas coisas que aflora a violência de gênero que leva a morte treze mulheres por dia só aqui no Brasil.