Abolida a escravidão e proclamada a República, o Brasil entrava em nova fase da sua formação, na qual a realidade popular já não poderia mais ser escamoteada. Por mais que a Primeira República tivesse conservado as hierarquias herdadas do escravismo e nada tenha feito para dignificar o trabalho, a passividade do cativo já não era a condição natural do povo brasileiro, cuja liberdade, ainda que formal, passou a reclamar outra concepção de Nação e outra organização de Estado.
O magnetismo exercido pelo Brasil profundo, sobre a atenção e a curiosidade dos setores intelectuais, era do país que, até então oculto sob as vestes aristocráticas de um Império, não poderia sê-lo senão na intenção, e reivindicava seu direito à representação. O federalismo oligárquico, se de um lado permitiu que maior atenção fosse dado a esse país não-oficial, por outro, em razão do seu caráter excludente, foi claramente insuficiente para corresponder ao pleito de integração à nação oficial.
Um dos pensadores mais profícuos do Brasil profundo, enquanto parte indissociável do Brasil real, foi Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (Cantagalo, 1866 – Rio de Janeiro, 1909). Formado em Engenharia Militar pela Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, pensou o Brasil em seu conjunto, pela articulação entre geografia, história, demografia e sociologia.
Euclides da Cunha inquietou-se com o abandono e o esquecimento da maior parte da extensão territorial e dos grupos humanos em nosso País. Analisando-os de forma pioneira, trouxe o Brasil profundo aos debates públicos e intelectuais, contribuindo para a sofisticação da Questão Nacional e para a formulação e implementação de políticas estratégicas integradoras e socializadoras nas décadas seguintes.
A preocupação de integração nacional e social está presente em sua obra magna, Os Sertões (1902), fruto de sua participação na Campanha de Canudos, enquanto correspondente do jornal A Província de S. Paulo, atual O Estado de S. Paulo.
Ele não se limita a narrar jornalisticamente os fatos, mas os insere em investigação acerca das condições geográficas e antropológicas do Brasil sertanejo.
As três partes do livro – A Terra, O Homem e A Luta – compõem uma unidade, cuja complexidade é elaborada ao longo da leitura. Obra de valor literário, considerada precursora do modernismo, que valeu a eleição de Euclides da Cunha, em 1903, para a Academia Brasileira de Letras (ABL), foi também escolhido para compor o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
É na última parte que ele descreve os combates, cuja compreensão demanda o perfil antropológico de homem dos sertões, bem como sua organização psicossocial. Euclides é categórico: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Mesmo “desgracioso, desengonçado, torto” e possuindo “caráter de humildade deprimente”, ele guarda, dentro de si, “energias adormecidas”, cujo despertar o transfigura e lhe confere altivez e robustez inesperadas (Cunha, 2001 [1902], p. 207-8).
Essa força o sustenta ante as intempéries da natureza hostil, sobretudo nas secas. Sua miséria, que o faz considerar a vida um “exílio insuportável” e invejar os mortos, e mesmo a comemorar o falecimento das crianças (ibid: p. 243), era, por outro lado, o repositório de determinação sustentada pela mais profunda fé, tanto mais viçosa quanto mais flagelada era sua condição material.
Seu “misticismo feroz e extravagante”, transbordando, em grupo, em “psicose coletiva”, seria o combustível do heroísmo peculiar aos sertões. Um heroísmo abnegado e messiânico, e, por isso mesmo, resistente e devoto, capaz de operar grandes esforços comuns de cooperação e luta, sob a liderança de apóstolos ascéticos, como Antônio Conselheiro, cuja existência Euclides afirma que há muito se considerava superada nos meios cultos das civilizações litorâneas. “Um heresiarca do século II em plena Idade Moderna”, assim Euclides classifica o Conselheiro (p. 278).
Esse homem, por sua vez, não existiria em abstrato, em lugar algum, mas no enraizamento em meio geográfico específico, que fornecia as condições físicas para a sua existência social bem como de cenário para os conflitos descritos. Esse meio, duro, seco e ríspido, modelaria o tipo de homem equivalente. Como Euclides afirmou: “O martírio do homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. Nasce do martírio secular da Terra…” (ibid: p. 147). A geografia prefiguraria o ser humano e, portanto, a história.
Os Sertões não é simplesmente um relato, mas uma interpretação de Brasil. Um Brasil que não se limitaria ao litoral opulento e ao tipo “neurastênico” de homem que ali vive, que, com olhos postos para a Europa e virado de costas para o continente, afetava ares de civilização, tanto mais artificial quanto importada.
Euclides revela, às elites políticas e intelectuais litorâneas, o Brasil por elas desconhecido, de sertanejos malnutridos e iletrados e, por isso mesmo, fortes e místicos. O Brasil indiferente às modas europeias, enraizado em chão de pedra e marcado pela miséria e pelo sofrimento. Brasil alheio à República recém-fundada e que não era representado pelos ideais e pelos valores encarnados nas instituições, mas inexistentes na vida das massas famélicas daqueles rincões esquecidos.
O encontro destes dois Brasis, em tudo contrários e irreconciliáveis, não poderia se dar sem a mácula da violência. Guerra, contudo, sem vitoriosos, pois perderam todos ante a vergonha suprema do País que, por tanto tempo governado segundo preceitos civilizados europeus, recentemente também estadunidenses, mantinha grande parte da sua população no mais profundo atraso, em condições sociais e psicológicas mais próprias dos albores do Medievo que das monarquias constitucionais europeias e daquela nascente República positivista.
Marcou-o profundamente o triste espetáculo do fanatismo dos excluídos e da brutalidade de governo e Exército, em guerra contra o próprio povo, do apartamento entre Brasil profundo e atávico e Brasil litorâneo e iluminista. O Brasil precisaria ser reformado em suas estruturas para se tornar a Nação coesa e harmoniosa, inclusive para alcançar a almejada homogeneidade étnica mestiça, até então inexistente. A denúncia social presente em Os Sertões aponta, enfim, o problema a ser sanado pela devida ação política.
Segundo Euclides, “estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (ibid: p. 157). Civilização, segundo ele, seria a “evolução social”, isto é, a elevação do patamar de desenvolvimento, de instrução e de afluência de todo o povo.
Em Nota Preliminar a Os Sertões, Euclides considera que a civilização inexoravelmente avançaria nos sertões. Contudo, isso não seria obra do acaso, mas de resultado específico de organização política. A integração nacional e a reconciliação dos dois Brasis, em um só Brasil plenamente desenvolvido, foram o ideário defendido ao longo da obra.
Na obra analítica de Olímpio de Souza Andrade, História e Interpretação de Os Sertões (Edart Livraria Editora, SP, 1960), encontramos: “Sempre vendo e vivendo o seu assunto, que Euclides conseguia dominá-lo, recriando-o artisticamente, a ponto de nô-lo transmitir com aparências de desfiguração. Poeta autêntico, capaz de ver o que os outros não viam, não foi a toa que colocou, no final da Nota Preliminar de Os Sertões, o trecho de Hippolyte Taine, expoente do positivismo:
“Il s’irrite contre les demi-vérités qui sont des demi-faussetés, contre les auters qui n’altèrent ni une date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événement et en changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l’âme: il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et parmis les anciens, en ancien” (em tradução livre: “Irrita-se com as meias verdades que são meias falsidades, com os autores que não alteram nem uma data nem uma genealogia, mas distorcem sentimentos e costumes, que mantêm o padrão dos acontecimentos e mudam a relevância, que copiam os fatos e desfiguram a alma: ele quer se sentir como um bárbaro, entre os bárbaros, e entre os antigos, como um antigo”).
Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil