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Reflexões para Teoria do Estado Nacional: público e privado

Data da publicação: 28/07/2022

“Quando o professor Souza Lima assumiu a cátedra de Medicina Legal, os exames periciais de corpo de delito já eram usuais no Brasil. Mas foi ele quem desenvolveu o ensino prático em laboratório, e inaugurou o primeiro curso de tanatologia forense, ministrado no necrotério da polícia. Essa matéria estuda a morte e o morto; e também o destino legal do cadáver e os direitos sobre ele. Sobre o destino do Valonguinho, os partidários de Floriano achavam que deveria ser a vala comum, sem maiores complicações. Mas o dr. Souza Lima entendia que aquele era um ser humano especial, por suas características morfológicas e comportamentais; e por isso seu corpo seria fonte importante de estudos, devendo constituir-se em um patrimônio da ciência brasileira” (Nei Lopes, Valonguinho, em Nas águas desta baía há muito tempo Contos da Guanabara, 2017).

A diferenciação entre público e privado é uma das principais questões do pensamento político desde a Antiguidade. Ela é fundamental para delimitar o que é político do que não é, o que diz respeito ao bem comum, a todos, e o que diz respeito apenas a indivíduos ou a grupos específicos. Não se pode entender o conceito de política sem atinar para a distinção entre público e privado, pois a política, por definição, se dá no âmbito do público, diz respeito à organização das formas e modos coletivos de vida para a realização do bem comum.

Na Grécia antiga, da qual herdamos o entendimento de política, a diferenciação entre o público e o privado era da maior importância para a definição da cidadania. Como se sabe, apenas eram cidadãos os homens adultos, nativos e livres. Mulheres, crianças, escravos e estrangeiros estavam excluídos do estatuto de cidadania.

Na democracia ateniense, o espaço público e, portanto, a cidadania, estava restrita a um pequeno número de pessoas, que eram politicamente iguais, enquanto aos demais restava o âmbito privado. A dignidade humana e a capacidade de se fazer ver e ouvir estavam associadas ao pertencimento, ao âmbito comum da polis, enquanto a esfera privada era vista como dimensão inferior de existência. Por isso, os cidadãos eram iguais, não importando as suas posses.

Na era moderna, com o advento do capitalismo liberal, a hierarquia entre o público e o privado se inverteu. Com a primazia da propriedade privada no ordenamento político, a esfera privada passa a ser entendida como o espaço por excelência da dignidade e da liberdade humanas. Como se depreende do Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke, a obra magna do pensamento burguês, cidadão é o proprietário.

A propriedade é o resultado do trabalho corporal e, portanto, uma extensão do próprio corpo, tão inviolável quanto esse, cabendo ao poder político defender a vida, a liberdade e a propriedade, entendidas como coextensivas. Diferentemente da polis grega, na qual a propriedade se subordinava à política e o privado ao público, a partir de Locke, e das transformações históricas contemporâneas a ele, a política se subordina à propriedade, o público ao privado.

A história do capitalismo, porém, não seguiu à risca a doutrina lockeana. O capitalismo, como ensina Fernand Braudel, somente se realiza quando é o Estado que expropria o poder feudal dos aristocratas e acompanha a centralização econômica em grandes firmas que, como ensina Max Weber, no processo de centralização política dos modernos Estados Nacionais capitalistas, expropriam os artesãos e produtores independentes.

A própria ética individualista burguesa, fundamental à transição do feudalismo para o capitalismo e à substituição do ócio cavalheiresco pelo ascetismo aquisitivo, enquanto padrão social de conduta, torna-se descartável na medida em que o alto capital deixa de pertencer a indivíduos e famílias e se socializa na forma de sociedade anônima, separando a administração da propriedade.

O burguês, autossuficiente e dono dos seus meios de subsistência, dotado de gênio individual e empreendedor, de autocontrole, de capacidade prospectiva e de cultura média, é substituído pela burocracia gerencial anônima e por megaespeculadores afoitos e irracionais, cujo comportamento em nada difere de viciados em jogatina.

O capitalismo, monopolista por definição, não conhece, na sua cúpula, distinção entre o estatal e o particular, borrando as fronteiras entre o público e o privado. Sistema político-econômico-ideológico voltado para a acumulação de capital, o capitalismo transforma toda a sociedade à sua imagem e semelhança, fazendo do lucro um imperativo não apenas do ambiente de trabalho, mas de todas as instâncias vitais, das relações entre pais e filhos e maridos e esposas até os processos eleitorais e as manifestações culturais.

Da mesma forma que o privado se torna público, uma vez que o enriquecimento privado se torna a medida de todas as coisas, o público se torna privado, pois aquilo que é comum a todos, desde as redes de água e esgoto até o patrimônio histórico e artístico nacional, passa a ser apropriado por entidades privadas associadas ao poder estatal.

No século 20, a emergência da questão social em vários países impôs mediação pública às relações entre o capital e a sociedade, de modo que o Estado deixou a salvo da influência capitalista amplos setores da vida coletiva, como a educação básica, as redes hospitalares, as infraestruturas de energia e comunicações e certas indústrias estratégicas. Podia-se dizer que o Estado Social delimitou as atividades públicas e deu a elas uma dinâmica distinta das privadas.

Com o neoliberalismo, porém, essas fronteiras foram apagadas, e o que era público foi capturado, com a anuência das autoridades estatais, por fundos de investimentos e gestores de ativos interessados em transformar em capital aquilo que era atividade social, financeirizando os mais ínfimos recônditos da existência humana, seja social ou individual. Mesmo os setores e atividades que permaneceram estatais passaram a funcionar como se privados fossem.

O sentido profundo de privatização não diz respeito somente à simples transferência formal da propriedade do Estado e de cooperativas para grupos financeiros corporativos, mas, principalmente, à modificação da dinâmica e aos objetivos do seu funcionamento, passando a priorizar a capitalização, o lucro, ao atendimento das funções sociais e não-econômicas.

O capitalismo neoliberal é, assim, o capitalismo puro, sem os anteparos coletivos garantidos pelo Estado Social. Enquanto tal, é um sistema totalitário, pois subordina a totalidade das relações sociais a um único princípio, o da lucratividade, eliminando, pela força e/ou pela fraude, tudo aquilo que não se incorpore a essa dinâmica. Não havendo mais um caráter público a ser resguardado e um bem comum a ser realizado, a política passa a ter como objetivo o crescimento dos bens particulares dos grandes proprietários, degenerando na politicagem do toma-lá-dá-cá, em que princípios e valores se tornam moeda de troca para aferição de vantagens pessoais.

Os partidos passam, então, a se assemelhar a diferentes peças de roupa à mostra na mesma loja, disponíveis ao gosto do cliente, no caso o eleitor, que, pagando por uma ou outra, estará dando dinheiro para o mesmo dono. E, para que esta fraude à escolha não se evidencie, há o simulacro de democracia da Constituição dos Estados Unidos da América (EUA), promulgada em 1787 e ratificada dois anos depois pelos 13 estados americanos, com o acréscimo de 1791 e as 27 emendas em toda sua existência, que só elege candidatos que não alterem o mesmo sistema plutocrático de poder, seja também rico ou pobre, branco ou negro, homem ou mulher (até hoje sem representante) para presidência.

Simultaneamente, a esfera privada é dissolvida pela ação invasiva dos grandes conglomerados capitalistas, que, por meio de novas tecnologias, as quais o poder dominante torna necessárias e inescapáveis para as pessoas comuns, aperfeiçoam os sistemas de vigilância e controle tanto em nível coletivo quanto em nível individual.

Hoje, empresas como Google e Meta são capazes de supervisionar e coletar informações íntimas das pessoas de maneira tal que nenhum ditador do passado jamais ousara sonhar. O pesadelo distópico do Grande Irmão não veio pelo comunismo, como receavam os liberais, mas pelo capitalismo neoliberal; não pelo Estado onipotente, mas pelas corporações onipresentes, inclusive dentro do Estado, transformado em correia de transmissão dos seus interesses e desalojado de qualquer conteúdo nacional e popular.

Nos tempos de capitalismo selvagem, a diferenciação entre público e privado torna-se civilizatória, porque significa, acima de tudo, a contenção do poder capitalista e a reorganização da sociedade em bases e termos mais propícios ao desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas que não se enquadram na lógica do lucro e da acumulação capitalista.

Distinguir o público e o privado significa rearticular o sentido de bem comum, a ser realizado por uma política de fato nacional, despida de privatismos, de modo que se estabeleça um âmbito comum de ação coletiva estruturada nos marcos da nacionalidade.

Evidentemente não se trata de restabelecer as assimetrias da Antiguidade grega, mas de reelaborar o domínio público em bases solidaristas e humanistas, em que as pessoas valham pelo que são e fazem de si e não pelas circunstâncias em que nasceram.

Também significa restaurar a privacidade perdida com o advento da tecnocracia neoliberal e oferecer aos indivíduos a devida proteção ao que constitui a sua intimidade e subjetividade, sem os controles e manipulações perpetrados pela tecnocracia neoliberal. E mais, impedindo que esses domínios se imiscuam com a política, em submeter as pessoas a servidões de toda espécie. Diferenciar o público e o privado significa, pois, salvar a política e o ser humano das compulsões e distorções do poder ilimitado do capitalismo totalitário financeiro.

A questão que se esconde em roupagens de liberdade, de manifestações de autenticidade e amplitude de escolha, o extremado individualismo, é na verdade do argentarismo contra a própria opção de vida, sufocada pelos recursos das “Open Societies” aos identitarismos.

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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