que nos governa a todos democraticamente, que atua conforme nossa devoção, a fé que a todos é permitida. Por dez séculos foi a orientação que organizou a comunidade humana: uma hierarquia da religião, do pensamento transcendente.
Surgem heresias, ou seja, pensamentos e práticas contrárias ou diferentes das ortodoxias estabelecidas pela religião. Tem-se então um cisma àquela democracia. Um grupo de pessoas diverge da explicação única, verdadeira, hierarquicamente organizada.
O historiador Geoges Duby (Idade Média, Idade Dos Homens Do Amor e Outros Ensaios, Companhia das Letras, SP, 1989) afirma que “todo o herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros”. Logo, não há a heresia absoluta, um contraponto de mesma força, mas a posição que o poder hierárquico dominante, mais forte, imputa aos divergentes, aos antagônicos, estabelecendo então penas e exclusões.
A hierarquia do poder encontra e cria as razões para punir e eliminar os cismáticos, os que não professam a democracia da fé de todos, igualitária.
Na religião deste século 21, a hierarquia é dada pelo poder do mercado financeiro, pelo dono do dinheiro, da forma mais imediata e visível, pelas moedas e pelas terras; um retrocesso que nos leva antes da formação dos bancos centrais dos Orange e Stuart, mais do que seis séculos.
O templo no século 21 será o escritório do “Gestor de Ativos”, o local de aplicações e movimentações das mais elevadas finanças, onde se entra reverente como o homem medieval nas catedrais.
Durante os últimos anos do século 20, as finanças trataram de concentrar a renda e eliminar direitos e benefícios de quaisquer outras receitas, em especial as oriundas do trabalho e do lucro. Para tanto fizeram o povo aprovar novas estruturas de leis e direitos, impostas por crises e pelo convencimento do que se chamariam falsas notícias ou inverídicas interpretações.
Vejamos um exemplo recente, saído em O Globo (21/2/2021), a propósito da mudança de um administrador de confiança dos gestores de ativos, destes novos bispos. Assim foi qualificada a autoridade, que ainda não vira tolhida, pela lei ou pela jurisprudência, ou, talvez, pela pressão popular, da capacidade formal de promover a mudança: “É inimigo do liberalismo econômico”, e “o bem mais caro que ameaça é a democracia”.
Notável! Mais grave que um cisma, pois a ação administrativa feria a própria convicção cega, inquestionável, inelutável, na divindade moeda, superior a todos humanos, mais necessária do que a vida dos homens.
E houve uma cismática, três anos antes, denunciado a pitonisa escrivã de O Globo como vexaminosa que, só deveria sair “de gola levantada e óculos escuros, para não ser reconhecida na rua. De vergonha. Que vexame! Com gráficos, balanços, dados, números, os engenheiros da Petrobras provaram com transparência que o noticiário da ‘Petrobras quebrada’ não passa de fake news, cuja origem, segundo eles, tem nomes e sobrenomes: Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg”, dois sacerdotes da Gestão de Ativos. (Hildegard Angel em sua coluna no Jornal do Brasil – JB 6/6/2018).
Como e por que se constituíram os templos Gestores de Ativos
Com as crises, muitas aplicações financeiras foram transferidas, muitos investidores perderam seus recursos, dinheiro mudou de mão e se perdeu.
Era necessário resolver dois problemas que a multiplicidade de igrejas, as então denominadas bancas, não eram capazes: primeiro, esconder a origem do dinheiro, uma vez que capitais de origem ilícita, como do tráfico de droga e do contrabando de armas, ganhavam posição cada vez mais relevante no mundo das finanças; e, depois, estruturar as aplicações por grupos de gerenciamento, para que não se vissem capitais do mesmo setor lutarem entre si.
As bancas do século 20 ainda estavam presas ao sistema organizador das finanças surgidas de riquezas localizadas, com compromissos políticos, ou nacionais, ou os setoriais. A organização das chamadas economias mistas assegurou a primazia do poder nacional sobre as finanças, de modo que elas foram reguladas para atender a objetivos coletivos como o desenvolvimento tecnológico e o bem estar social. As finanças eram baseadas em crédito que alimentava a economia real, gerando empregos e salários.
Por sua vez, os gestores de ativos emergentes com o neoliberalismo são bastante diferentes, pois baseiam suas atividades em especulação de títulos mobiliários nos mercados de capitais, aos quais estão submetidos a indústria e os serviços. Nesse novo contexto, as finanças passam a governar os Estados e a economia real, modelando-as para servirem aos seus propósitos de reprodução infinita do capital imaterial. Como agentes verdadeiramente universais, globais, os gestores de ativos não hesitarão, não vacilarão um segundo em destruir todo um país, desabitar qualquer região.
Como um Rei Midas pós-moderno, tudo que eles tocam viram papéis especulativos. Se, em tempos pretéritos, a religião cumpria a função de coesionar o corpo social em torno do sagrado, a anti-religião dos templos financeiros desorganiza as sociedades na busca desenfreada e inescrupulosa pelo ganho pecuniário de uma plutocracia argentária.
Felipe Quintas é doutorando em ciência política na Universidade Federal Fluminense.
Pedro Augusto Pinho, presidente da AEPET, é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil