“A raiz da crise da previdência é o modelo econômico que leva o Estado à falência por privilegiar o capital financeiro em detrimento das necessidades da população.”
A Previdência Social é hoje um dos alvos prediletos dos economistas e políticos de nosso país. A compreensão errada de suas origens e seus propósitos leva a raciocínios no mínimo muito rasos, para não dizer perigosos.
A comparação com o acúmulo de conquistas sociais em países da Europa, ou da América do Sul leva também a erros enormes que podem servir apenas para aviltar e/ou retardar o oferecimento dos benefícios sociais. Comparar a idade mínima de aposentadoria de franceses, alemães ou italianos com brasileiros que trabalham no campo ou nas cidades de nosso país é comparar alhos com bugalhos. Nem acúmulo financeiro, nem sociais, nem de conquistas nas áreas de saúde, por exemplo, que são partes fundamentais da qualidade de vida da população de qualquer nação no mundo são comparáveis.
Há ainda, por parte do Governo atual, uma determinação de redução de direitos trabalhistas, através da terceirização indiscriminada aprovada recentemente na Câmara dos Deputados, ou na proposta de Reforma Trabalhista, que está na pauta dos debates também, que vão no sentido de aumentar ainda mais as diferenciações hoje existentes.
Direitos consagrados como férias, folgas, indenizações por tempo de serviço, FGTS, horas-extras, décimo terceiro salário e um longo etc. estão na alça de mira para “aumentar a competitividade empresarial” e “reduzir” o chamado “Custo Brasil”. Leia-se, precarização das condições de trabalho, salários e sociais para aumento da margem de lucro empresarial. Sem falar na preponderância do negociado sobre o legislado, que está também em pauta. Em resumo, o que hoje não é comparável, ficará em breve ainda mais diferenciado, um abismo social que levará o país em direção ao subdesenvolvimento, aumentando consideravelmente a concentração de riquezas já existente.
Calcadas em interesses do “mercado”, preconceitos e/ou leviandades, as soluções rápidas – e doloridas aos trabalhadores – que estão sendo apresentadas para a chamada crise da previdência social também aparentam ter um só objetivo: acabar com o conceito previdenciário, tornando precária de forma decisiva a vida dos trabalhadores brasileiros e dos nossos aposentados e pensionistas.
Mudanças na Previdência Social
A Previdência Social é pública e se estende a todos os trabalhadores do país. Os funcionários públicos, em geral, até bem pouco tempo atrás, eram remunerados na sua fase não laboral pelo próprio Estado, que os contratou e depois os garantiria integralmente na fase de aposentadoria. Hoje, compartilham a previdência pública com os trabalhadores do setor privado e, em empresas de economia mista, como a Petrobrás, podem usufruir da previdência complementar, através dos fundos de pensão. Com a reforma da previdência do início do milênio, realizada pelo Governo Lula, as obrigações do Estado com os funcionários públicos foram decisivamente minoradas com a criação do FUNPRESP.
Uma parte significativa de funcionários públicos, os mais antigos, se mantém fora dessas mudanças. Entre eles, importante destacar estão os juízes e promotores públicos que, em geral dedicam poucas horas do seu dia para tentar entender a verdadeira situação da previdência pública e também da previdência privada.
Vale mais uma vez citar o estudo da Associação Nacional dos Fiscais da Previdência (2), a ANFIP, que há mais de duas décadas vem desmistificando o propalado déficit da previdência, comprovando tecnicamente que as receitas previdenciárias previstas pela Constituição Federal são utilizadas para outros fins que não os previstos na Carta Magna. Sem contar que nos gastos previdenciários são incluídos outros que não os previstos também, da mesma forma. A propaganda do Governo e seus cúmplices é uma fraude para convencer o povo da necessidade da reforma previdenciária imediata (deve-se notar que só Associações de Empresários e Patrões, que não dependem da Previdência Social, assinam a parte privada da publicidade favorável à essa reforma).
A importância da Previdência Social
Mas não podemos deixar de perceber a crise na Previdência Social e que está longe de ser identificada com o rombo apregoado pela grande imprensa, como mola propulsora do Governo para realizar sua reforma de retirada de direitos. Ocorre que a grande maioria do povo brasileiro precisa da previdência social, pelo simples motivo de que, se ela não existir, ele morre de fome. Em muitas cidades das regiões mais pobres do País a maior parte da renda local é de benefícios e pensões do INSS.
A situação é recorrente e se agrava na medida do agravamento da crise econômica brasileira. O Estado, e também o setor privado, não têm capacidade de garantir a oferta de trabalho necessária para toda a população economicamente ativa. E o que oferece, além de insuficiente do ponto de vista das vagas necessárias, em sua maioria também é insuficiente do ponto de vista salarial, de forma a garantir o acúmulo de recursos financeiros suficientes para que o trabalhador possa, em sua fase não laboral, manter o conforto digno necessário até o final de sua vida.
Assim, após a fase laboral, o trabalhador aposentado poderá contar com:
1) Aquilo que o Estado fornece através da Previdência Social
2) Aquilo que ele conseguiu acumular na sua fase laboral
3) Aquela poupança sob a forma de “previdência complementar ou suplementar” que ele puder acumular na previdência privada (3)
4) Aquilo que os laços familiares e/ou de herança puderem lhe prover
A ausência dos itens acima significa que o trabalhador terá que, paradoxalmente, trabalhar na sua fase não laboral para seu próprio sustento, independentemente de suas condições de saúde ou funcionalidade. Diferente disso resta ainda o abandono, a pobreza, a miséria, a fome, a doença, a morte.
Se não há empregos, não há como os itens 1, 2 e 3 serem possíveis. Sem empregos não há contribuição para a previdência na fase laborativa. Não há tampouco acúmulo financeiro ou de bens que possa ser utilizado. Não há também poupança previdenciária privada possível.
Recente estatística da Secretaria de Previdência do Governo, divulgada pelo jornal Folha de São Paulo em 03/04/2017, mostra que mais de 34% dos que se aposentam hoje por idade têm 15 anos de contribuição ao INSS. Pelas novas regras propostas na Reforma da Previdência terão que trabalhar no mínimo 25 anos. Como acham que trabalhadores humildes, em geral com trabalhos penosos, vão ter capacidade (e conseguir vagas!) para, aos 65 anos, trabalharem ainda mais 10 anos? E será que serão mesmo apenas 10 anos a mais? Se aos 65 anos de idade essa parcela expressiva dos trabalhadores conseguiu contribuir apenas por 15 anos, quantos anos terá quando conseguir completar 25 anos de contribuição?
O trabalhador viverá assim, da boa vontade e da caridade alheias. E, se não morrer antes, será hóspede das instituições públicas de saúde. As doenças que irá apresentar serão em parte provocadas pelas condições sub-humanas de vida que lhe restarem. E, em grande parte, principalmente, do envelhecimento que a longevidade contemporânea nos proporciona. As doenças da chamada velhice em nossa sociedade são confundidas pela sociedade e também pelos médicos e demais profissionais da saúde como fossem males que podem ser resolvidos com o avanço da medicina. Com isso, as unidades de saúde públicas, hospitais e casas de saúde) irão cada vez estar repletas de idosos, boa parte deles abandonados pelos familiares e à espera de que seu dia chegue… breve.
A Função Previdenciária
A sociedade instituiu o que chamamos de previdência social justamente para poder de alguma maneira enfrentar essa situação limite. A maioria absoluta de trabalhadores usufrui, não o teto, hoje de R$ 5.531,31 por mês, mas o piso, que é atualmente de R$ 937,00 (salário mínimo do país) e percebido por mais de 70% dos assistidos pela previdência social. Na medida da precariedade do país, todos os índices apresentados pelos defensores da reforma da previdência apresentam que o Brasil está claramente envelhecendo. Com isso, o número de idosos é cada vez maior e a situação tende a se agravar com o tempo.
A esta situação de fato, os defensores da reforma da previdência propõem as seguintes medidas basicamente: (a) Alongar o período laborativo para 65 anos com a instituição do limite de idade; (b) Redução dos benefícios inclusive com restrição ao que chamam de “acúmulo” de benefício, como por exemplo, a(o) viúva(o) aposentada(o) que teria de optar por um ou outro benefício – sua aposentadoria ou a pensão do falecido(a); (d) redução dos valores do benefício por relação com o tempo de contribuição, etc. Todas as medidas vão em direção da redução ou retirada de direitos.
Mas a realidade é muito mais forte que qualquer conta do economês. A maioria da população inativa do país vive ou sobrevive do benefício que a previdência social pode proporcionar. Não há poupança pessoal, não há previdência privada, nem herança familiar para se valer. Apenas o benefício do INSS. Se esse não bate na conta, a coisa fica difícil. Muitos tentam complementar os benefícios com serviços caseiros que possam prestar enquanto a saúde permitir.
A crise econômica brasileira está, entretanto, tornando tudo ainda mais crítico. Não há emprego nem para os mais jovens. Que dirá aos mais idosos, cuja capacidade laboral é limitada? A necessidade do benefício de aposentadoria é cada vez maior, além de outros como o seguro-desemprego.
Todas as ações do Governo vão no sentido de agravar a crise e não o contrário
Ocorre que a política desenvolvida pelo Governo não vai em direção a amenizar este estado de coisas, ao contrário, tende a agravar. Além da reforma da previdência, vimos o Congresso Nacional aprovar recentemente a terceirização, inclusive nas atividades fins das empresas. Em outras palavras, o que veremos para o próximo período, caso o embate social não consiga reverter a dinâmica atual, é uma cada vez maior precarização dos direitos sociais, como é recorrente no caso da terceirização, tal como já vemos desde sempre. E com isso, um dos elementos centrais de precarização é o descanso do trabalhador na fase laborativa, com jornadas de trabalho cada vez mais longas (no sentido contrário do que o desenvolvimento tecnológico deveria proporcionar), a redução de seus ganhos salariais e de benefícios, também na fase laborativa e ainda, no período não laboral, a redução das perspectivas de aposentadoria, por exigência do aumento do tempo de contribuição pela redução dos valores recolhidos.
A reforma trabalhista que está na pauta de discussões do Congresso Nacional vai no mesmo sentido. E não encontramos na pauta de debates do Governo ou do Congresso iniciativas concretas de fortalecer a indústria de base ou ampliar o parque industrial ou ainda aumentar a oferta de emprego. Todas essas questões fundamentais são para depois da retirada de direitos.
É claro que a conta fica catastrófica para a previdência social. E fica ainda pior para a expectativa de fim de vida da população, cada vez mais precária. A sociedade toda sai perdendo e os que viverem mais serão também os que mais sofrerão as mazelas das políticas aplicadas nesse momento. A não ser que, desde já, ele não precise trabalhar, por que vive do resultado do esforço de outros, sendo um rico herdeiro, empresário ou banqueiro.
A causa e a consequência
A reforma da previdência não deve ser debatida não com slogans genéricos, é verdade. Mas fazer este debate somente sob a luz da lógica econômica, da situação demográfica, da realidade do mercado de trabalho e das experiências do resto do mundo sobre o tema ainda é muito pouco. É preciso analisar a situação de forma global. E incluir nesse debate elementos centrais da economia brasileira. Debater previdência e não debater o superávit primário e o pagamento de quase 50% das receitas do país para financiamento da dívida pública é fugir do debate. Os economistas querem nos ensinar muito. Mas nada querem aprender. Não há um modelo de eficiência para a previdência social pública ou privada. Há antes a definição de um modelo de nação que queremos ter.
A raiz da crise da previdência é o modelo econômico que leva o Estado à falência por privilegiar o capital financeiro em detrimento das necessidades da população. O Estado brasileiro dá preferência para o pagamento dos serviços da dívida ao sistema financeiro em relação a todas as demais despesas. E a construção da dívida, cada dia mais impagável, é parte do modelo de Estado corrupto, a serviço da continuidade da realização de obras quase sempre sem qualquer planejamento social centralizado e/ou ordenado pelas principais necessidades da população. Um modelo concentrador de riquezas (e corrupto) que está há mais de 30 anos sendo mantido, com maior ou menor inflexão, por todos os governos de plantão.
Será que queremos ser uma nação de idosos abandonados à fome, às doenças e à sua própria sorte? Ou queremos ser um país que constrói seu futuro sem abandonar aqueles que nos fizeram chegar até aqui? Que contas são prioritárias? As da remuneração do sistema financeiro nacional e internacional? Ou a manutenção de uma qualidade de vida digna indispensável para nossos idosos desprovidos de recursos?
Os economistas, os políticos e o Governo querem nos fazer acreditar que a crise dos sistemas previdenciários dos trabalhadores privados e dos servidores públicos é causa da crise do Estado Brasileiro. É justo o contrário. O menor crescimento econômico e o menor desenvolvimento social são causa e não consequência da crise da previdência social.
A Greve Geral, no próximo dia 28 de abril (#28A), que está sendo convocada pelas centrais sindicais de forma unificada, pode ser um marco na resistência da população brasileira contra estas propostas que estão na ordem do dia. Uma importante possibilidade de recolocar em pauta os interesses dos trabalhadores brasileiros, esquecidos em meio às denúncias de corrupção e as manobras do governo golpista e do Congresso Nacional.
(1) #28A é o apelido da Greve Geral convocada pelas centrais sindicais para o dia 28 de abril de 2017 contra a reforma da previdência do Governo Temer.
(2) O estudo da Associação Nacional dos Fiscais da Previdência – ANFIP pode ser acessado na página da ANFIP na rede mundial de computadores. São de grande valia os dados lá disponibilizados para a compreensão da situação real do sistema de previdência em nosso país.
(3) Poupança previdenciária que tem sido cada vez mais norteada pela concepção de capitalização financeira, com seguidas aberturas para que o capital acumulado seja parcial ou totalmente utilizado antes da fase de aposentadoria. O oferecimento de planos de tipo Contribuição Definida em detrimento dos Planos de Benefício Definido é parte da concepção “antiprevidenciária” adotada pela elite da sociedade brasileira, com a concordância passiva das principais lideranças dos movimentos sociais organizados.
* Ronaldo Tedesco é Conselheiro Fiscal e Silvio Sinedino é Conselheiro Deliberativo da Petros, Fundo de Pensão dos trabalhadores petroleiros, ambos eleitos pelos participantes e assistidos. Ambos são também diretores da Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET e coautores do livro “Governança Corporativa em Previdência Complementar: Faz Diferença?”.