Artigo

A convocação dos velhos

Data da publicação: 18/03/2015

Cada vez mais as notícias e estatísticas nos mostram a presença dos velhos (perdão, idosos) em nosso país e em nossa vida. É comum, hoje, os jornais registrarem a morte desta ou daquela pessoa com mais de cem anos de idade. Menos comum, mas acontece, é noticiarem a comemoração dos cem anos de idade.

Foi assim com Oscar Niemeyer, que chegou aos 104 anos trabalhando quase até o fim nas obras do maravilhoso Caminho Niemeyer em Niterói, o ousado projeto de Jorge Roberto Silveira, que já tinha realizado, como prefeito, outra obra fantástica de Oscar, o Museu de Arte de Niteroi, aquele disco voador que parece ter pousado ali, vindo de outro planeta.

Foi assim com Barbosa Lima Sobrinho, o maior dos jornalistas brasileiros do século 20, que só não pertenceu a três séculos porque, nascido no século 19, morreu aos 103 anos, meses antes de invadir o século 21. Ele também trabalhou até o fim da vida e, dias ou horas antes de desembarcar com os próprios pés no hospital onde terminaria seus dias, escreveu seu artigo semanal para o Jornal do Brasil, sempre em defesa dos interesses do país.

Já com 90 anos, Barbosa Lima Sobrinho foi à tribuna da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 ou 1988, para defender a Petrobrás e o monopólio estatal do petróleo. E com 94, em 1992, encabeçou a luta pelo impeachment do então presidente Fernando Collor, que, além de chefiar um governo dos mais corruptos, pretendia ser a Margaret Thatcher brasileira e privatizar tudo, até a Petrobrás.

Oscar Niemeyer e Barbosa Lima Sobrinho chegaram aos cem anos com essa vitalidade numa época em que já não era tão rara entre nós a façanha de alguém viver tanto tempo. Os dois morreram já no século 21, cujo primeiro recenseamento geral foi o Censo de 2010, no qual se constatou a existência de 24.236 pessoas de mais de cem anos no Brasil.

Os maiores de 65 anos são mais de 14 milhões, e nem todos permanecem em atividade, embora os progressos da medicina e, mais recentemente, da neurociência venham não só prolongando a expectativa de vida dos nossos 200 milhões de brasileiros, como tornando possível uma sobrevida ativa e útil a muitos que já chegaram à idade convencional da aposentadoria.

Está certo que no passado fossem excepcionais casos como os de Oscar Niemeyer e Barbosa Lima Sobrinho. Lembro-me sempre, porém, de um encontro casual, na época da Constituinte, com o então Senador Afonso Arinos, presidente da Comissão de Sistematização da Assembleia, no aeroporto do Galeão, onde embarcaríamos para Brasília. Ele estava com 79 anos e perto de fazer aniversário. Perguntei como pretendia ele comemorar seus 80 anos.

Meio para fazer graça com D. Anah, sua mulher, que o acompanhava, ele respondeu:

– Me escondendo.

E explicou: quando completou 70 anos, ficou muito envaidecido e sua irmã Maria do Carmo, muito inteligente e irônica, disse a ele:

– Você, Afonso, fica aí todo bobo só porque fez 70 anos. Você devia saber que hoje em dia, com esses check ups, essas vacinas, essas dietas, esses tratamentos todos, qualquer pé-rapado chega aos 70 anos.

– Não quero – completou dr. Afonso – aguentar de novo as piadas de Maria do Carmo.

Afonso Arinos era o grande jurista, a alma da Constituinte. Apesar de sua origem aparentemente conservadora, ex-deputado e ex-senador antes de 1964, pela antiga União Democrática Nacional, a UDN, e senador de novo na Constituinte pela Frente Liberal, Afonso Arinos recebeu nota dez ou próxima disso na avaliação que o Departamento de Ação Parlamentar, Diap, dos sindicatos (irmão do Dieese), fez do histórico de votações de todos os integrantes da Assembleia.

Quando da recente mudança na presidência da Petrobrás, perguntei, pela mídia da Aepet, por que o governo não se lembrava de nomes como Guilherme Estrela, ex-diretor de Exploração e Produção da empresa e grande herói da saga do Pré Sal, ou do Brigadeiro Sérgio Ferola, que fizera da Escola Superior de Guerra, antes um instrumento da Guerra Fria, um grande centro de estudos nacionalista; ou ainda do próprio Lula.

Estrela já estava aposentado quando foi chamado pelo governo Lula para esse cargo, por indicação informal de Fernando Siqueira, já que a AEPET não podia indicá-lo oficialmente. Ferola está na reserva das Forças Armadas ou já reformado, mas continua atuante, escrevendo e dando consultoria. Lula, pouco antes da última eleição presidencial, declarou em entrevista que já não pensava em voltar à Presidência em 2018, pois já estará com mais de 70 anos.

Pode ser uma desculpa elegante, mas não procede. Há trinta anos passados, Tancredo Neves liderou seu país e seu povo na transição pacífica de uma ditadura de duas décadas para um regime plenamente democrático. Isso pode ter-lhe custado a vida, mas a prioridade dela era cumprir o compromisso que assumira com o país.

O que me parece acontecer é que os velhos (e digo isso por experiência própria, aos 77 anos de idade) sentem-se meio na obrigação de sair de cena e abrir espaço para gerações mais novas, privando seu país de uma verdadeira caixa preta de experiência acumulada. É preciso, portanto, mobilizá-los, convocá-los a contribuir com seu quinhão para o crescimento de um Produto Interno Bruto que anda cada vez mais perto de um zero humilhante e doloroso.

É impossível que entre os quase cinco milhões de brasileiros com 65 a 69 anos , os 3 milhões e 700 mil com 70 a 74, os dois e meio milhões com 75 a 79, para não falar nos mais de 2.4 milhões de 80 a 89 anos, nos mais de 400 mil com mais de 90 e até nos 24 mil com mais de cem (dados todos do Censo de 2010), não haja alguns que possam e sobretudo estejam dispostos a arregaçar as mangas.

(A propósito, Barbosa Lima Sobrinho jogou pelada com os netos, no quintal de casa, até os 90 anos…)