A Península Coreana conheceu um aumento da tensão em seguida ao espetacular desfile militar organizado por Pyongyang para o aniversário de nascimento do fundador do país, Kim Il-sung (1912-1994), e pela fundação do exército popular, conjugados com o anúncio de Washington do envio de uma “armada” aeronaval ao Mar do Japão (Mar do Leste para os coreanos). As agressões e ameaças de Donald Trump e Kim Jong-un, os dois estão prontos, disseram eles, para a batalha, aumentando a agitação nas chancelarias.
Esses surtos são recorrentes após a suspensão da guerra entre o norte e o sul (1950-1953) por um armistício que nunca levou a um tratado de paz. As ameaças americanas de intervenção militar não datam de hoje: elas foram públicas em 1969, quando a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) abateu um avião espião americano que voava sobre seu território – mas o presidente Nixon julgou que o risco de passar à ação seria muito elevado. Em 1994, a opção voltou à mesa quando ficou confirmado que a RPDC produzia plutônio.
A administração de Bill Clinton esteve prestes a um ataque preventivo que foi evitado por pouco pela visita de surpresa do ex-presidente americano Jim Carter a Pyongyang, onde ele se entrevistou com Kim Il-sung. A seguir, a administração de George W. Bush ameaçou por diversas vezes um ataque à RPDC.
A pressa de Trump em romper com a “estratégia da paciência” (um imobilismo diplomático recheado de sanções) da administração Obama, que não levou a nada na questão do progresso nortecoreano em matéria nuclear e balística, arrisca fazer com que ele cometa erros de avaliação. Ao passo que ignora a complexidade do tema – e mesmo os fatos mais elementares da história da península que, segundo ele, “foi outrora uma parte da China (1)”. Um desconhecimento que não é compensado pelo radicalismo de seus conselheiros na área de segurança. A ameaça ou o recurso à força não serão suficientes para que eles resolvam o problema. Depois de sua fundação em 1948, a RPDC está na mente das grandes potências: não apenas na dos EUA, mas na de seus mentores de outrora, China e URSS. Hoje, ela dá provas de sua feroz independência ao desafiar tanto Washington quanto Pequim.
Estimando que não poderiam contar com ninguém além de suas próprias forças, puseram em operação, no fim dos anos 1980, com a ajuda dos soviéticos, um programa nuclear para fins civis que logo a seguir, clandestinamente, foi orientado para fins militares. O fim da URSS e a evolução da China que se traduziram por uma maior vulnerabilidade do país, foi um incentivo para tocar seu programa, agora com a cooperação do Paquistão. Os ataques americanos contra o Iraque, Afeganistão e ultimamente contra a Síria deram a eles uma convicção: somente a posse da arma nuclear poderá evitar que tenham a mesma sorte.
Talvez fosse possível, nos anos 1990, obter da RPDC que ela renunciasse a suas ambições nucleares em troca de garantias de segurança e de uma ajuda econômica. Este era o objetivo do Acordo de 1994, que previa um congelamento de seu programa de produção de plutônio em troca da normalização das relações com os EUA, da eliminação das sanções e do fornecimento de duas centrais de água leve, com menores riscos de proliferação. Os americanos nunca respeitaram seus compromissos. Rapidamente, os coreanos também agiriam assim. Eles procuraram se dotar de equipamentos para enriquecimento de urânio, agora em paralelo com a proibição do programa de produção de plutônio sob a supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Até que George Bush, em 1994, declarou o acordo de 1994 caduco sob o pretexto de que o programa de enriquecimento de urânio já estava em uma fase operacional. Este não era o caso, como o reconheceram, em março de 2007, agentes da inteligência americana (2) – lembrando a manipulação de informações para justificar a invasão do Iraque. Assim, esta segunda crise nuclear nortecoreana teve por origem uma mentira de Estado para levar à confrontação na esperança de derrubar o regime. Esta estratégia teve um efeito contrário ao procurado: liberada do Acordo de 1994, a despeito de sanções internacionais, Pyongyang realizou seu primeiro teste atômico em 2006.
Hoje, a situação é diferente. A posse de uma força de dissuasão tornou-se um elemento constitutivo do país, inscrito em sua lei fundamental. E, mesmo que haja incertezas sobre suas capacidades de miniaturização de ogivas nucleares e de seus progressos em matéria de balística, a nuclearização da RPDC é uma realidade. Em outubro de 2016, o ex-diretor da inteligência americana, James Clapper, não escondeu que fazer Pyongyang renunciar à sua força de dissuasão seria “provavelmente uma causa perdida” (Agência France-Presse, 26 de outubro de 2016).
Uma oportunidade perdida em 1994
Além da personalização da crise, transformada em uma queda de braços entre dois dirigentes impulsivos, a atual fase de tensão revela o impasse ao qual conduziram os vinte e cinco anos de uma política – a dos EUA e de seus aliados – que, centrada na não-proliferação, ignorou que motivações teriam os dirigentes nortecoreanos para se dotarem da arma nuclear.
A política americana só tem uma obsessão: a não proliferação e, por isso, cultiva a ideia de que o regime deve ser removido. Apesar de desmentido pelos fatos depois de vinte anos, este pensamento atrasado está na origem de uma estratégia de curto prazo que oscila entre o diálogo e a confrontação, ao passo que a de Pyongyang é, de fato, uma estratégia de longo prazo.
A RPDC já fez cinco testes nucleares e um sexto parece provável. Depois da segunda crise provocada por Bush, os programas nucleares e balísticos nortecoreanos não são mais – se é que alguma vez foram – moeda de troca em negociações: eles passaram a ser uma necessidade estratégica. Renunciar a seu armamento seria suicídio para o regime: Não apenas ele não mais poderia justificar os sofrimentos impostos à população para privilegiar a defesa do país em detrimento de seu bem-estar, mas, sobretudo, ele se tornaria vulnerável a um ataque externo, como foi o caso do Iraque.
A partir da confirmação do fracasso da política comandada pelos EUA e da necessidade para o regime nortecoreano de conservar uma força de dissuasão, qual é a posição nesta crise dos protagonistas regionais, as duas Coreias e a China?
Qualificado à saciedade de irracional e imprevisível, o regime de Pyongyang segue uma linha política da qual não se afasta. Ele pretende ser reconhecido como uma potência independente, dotada da arma nuclear; obter garantias de segurança; normalizar suas relações com Washington, abrindo assim a via para um reconhecimento internacional; sair do caos econômico acelerando as reformas aplicadas ao longo dos últimos dez anos e, sobretudo, após a chegada ao poder de Kim Jong-un (3). Estas permitiram o surgimento de uma economia híbrida que mistura planificação e iniciativa privada. Como testemunho disso há a fulgurante transformação de Pyongyang, pontilhada de arranha-céus, cortada por novas avenidas e dotada de centros comerciais, restaurantes e parques de atrações (4). Há melhoramentos menos espetaculares, mas igualmente perceptíveis no interior, apesar de persistirem as penúrias.
Este redirecionamento econômico é essencial para a estabilidade do regime. Kim Jong-un eliminou brutalmente toda eventual oposição interna e tem o país nas mãos. As tensões e a adversidade servem a ele: animada de um patriotismo visceral, próprio dos coreanos em geral, mas levado ao extremo na RPDC, a população é mantida dentro de uma mentalidade de cerco permanente. As ameaças de bombardeios preventivos só servem para ampliar seu sentimento de insegurança.
Outro fator constante da política nortecoreana: a afirmação de independência nacional, que significa a rejeição da secular posição tributária da península frente à China. É fácil – e não inteiramente falso – lançar sobre Pequim, como foi feito com Washington, a responsabilidade pelo fracasso da política de sanções aplicadas à RPDC. A China vota a favor da RPDC no Conselho de Segurança (da ONU), mas aplica esses votos com moderação.
De todo modo, se as relações se classificaram um dia como “relações entre países irmãos”, elas nunca foram de uma cordialidade a toda prova. A geração dos companheiros de armas da guerrilha contra o ocupante japonês depois da Guerra da Coreia (1950-1953) desapareceu – mesmo na época, antigos rancores pairavam sobre a amizade proclamada. Deste modo, as relações são baseadas em interesses das duas partes. A normalização entre Pequim e Seul, a partir de 1992, tem indicado isto ao povo de Pyonyang.
A China, que está longe de ser o principal parceiro comercial da RPDC, dispõe de alguns meios de pressão, mas ela tem também outras prioridades além dos EUA. Pyongyang está em jogo: os dirigentes chineses não são favoráveis a uma Coreia nuclearizada, mas querem ainda menos estrangulá-la e colocá-la contra o muro. Seu afundamento envolverá diversos outros riscos: uma guerra civil às suas portas, um afluxo de refugiados que poderia desestabilizar a região fronteiriça de Yanbian, onde vive uma importante minoria de origem coreana e, sobretudo, uma eventual reunificação sob a égide da Coreia do Sul – o que implicaria na presença em sua fronteira de um aliado dos EUA ou, quem sabe, das próprias forças americanas. Em 1950, a China perdeu um milhão de homens para repelir as forças aliadas (americanas) que vieram pelo Rio Yalou (Amnok, em coreano). É pouco verossímil que ela aceite tão facilmente hoje esse mesmo quadro.
Interesses chineses contraditórios
Pequim, com certeza, não tem nada a ganhar com uma desestabilização da região e o presidente chinês Xi Jinping se mostra mais firme em relação a Pyongyang. Ele suspendeu, no início de abril, as importações de carvão (mesmo que as trocas comerciais de outros produtos tenham aumentado). As vozes se fazem entender nos meios intelectuais chineses para criticar toda moderação em face de Pyongyang. É o caso do historiador da Guerra da Coreia, Shen Zhihua, da Universidade de Shangai que, em uma conferência em março em Dalian, declarou que a RPDC não passava de “um fator de desestabilização na fronteira da China” significando que põe em perigo “os interesses nacionais fundamentais” desta. Uma opinião de peso, que mostra também que a questão coreana figura entre os raros temas de debate autorizados pelo poder. Porém, essas críticas têm algum impacto sobre a direção do partido e sobre a hierarquia militar? Ao reforço (moderado) das sanções chinesas, Pyongyang respondeu com uma salva de ataques verbais, de uma virulência desconhecida depois da Revolução Cultural, com novos lançamentos de mísseis e com a recusa em receber emissários de Pequim. Bravata?
Por enquanto, a política chinesa permanece inalterada: os EUA e a Coreia do Norte devem negociar. Washington quer fazer a RPDC se curvar à força; Pequim quer fazê-la evoluir economicamente integrando-se no desenvolvimento regional, reduzindo assim progressivamente o risco de desestabilização que ela representa. Isto deixa supor que não fará da questão nuclear uma prioridade e de tratá-la no âmbito de uma negociação global, ao passo que os EUA exigem como condição inicial para toda negociação que Pyongyang renuncie a sua arma nuclear.
A esses desconhecidos se junta um outro: a posição da Coreia do Sul após as eleições de 9 de maio próximo. A linha dura adotada pela presidente destituída, Park Geun-hye, não é a mesma do candidato de oposição mais bem colocado nas pesquisas, Moon Jae-in, partidário de uma retomada do diálogo com Pyongyang e de uma renegociação do acordo de deslocamento do escudo antimísseis americano (Thaad) na Coreia do Sul, que tanto incomoda Pequim. Até esse escrutínio, o vácuo político na liderança vai continuar privando Seul de qualquer iniciativa. Depois, os EUA se arriscarão a ficar no contrapé de seu aliado sulcoreano. A informação especialmente falsa sobre o envio da armada aeronaval ao largo da península encheu de ira a opinião do sul.
Toda política visando acalmar as tensões pressupõe ter em conta três parâmetros: os dirigentes nortecoreanos não são irracionais, mas determinados a assumir riscos; o regime não está a caminho de afundar; ele não renunciará à sua arma nuclear. Outro elemento que Washington deve ter em mente: qualquer ataque à RPDC será seguido de uma réplica de Pyongyang. Ora, Seul está situada a cinquenta quilômetros das baterias nortecoreanas e as bases militares americanas em Okinawa (Japão) estão ao alcance dos mísseis da RPDC. A margem de manobra se torna estreita e os riscos são grandes.
Philippe Pons
Jornalista, autor de Coreia do Norte. Um Estado-guerrilha em mutação, Gallimard, Paris, 2016
(1) Entrevista ao ao Wall Street Journal, New York, 4 abril 2017.
(2) Declarações de Joseph De Trani, responsável pela inteligência do Congresso, Le Monde, 19 de julho de 2007.
(3) Ler Patrick Maurus, « A Coreia do Norte sonha ser um futuro dragão», Le Monde diplomatique, fevereiro de 2014.
(4) Ler Martine Bulard, « Viagem com boa guarda na Coreia do Norte », Le Monde diplomatique, agosto de 2015.
Tradução: Argemiro Pertence
Fonte: Le Monde Diplomatique