Artigo

A verdadeira transição energética justa

Data da publicação: 21/07/2023
Autor(es): Felipe Coutinho

Para que a transição energética seja justa é necessário reduzir as desigualdades da renda, da riqueza, do consumo de energia e das emissões per capita, tanto entre os países quanto dentro de cada país.

Os termos sustentabilidade e transição energética são tão repetidos quanto indefinidos, e usados como peças de propaganda, manipulação e agitação. Recentemente, o atual presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates, trouxe um adjetivo com sua “transição energética justa”. [1]

Matriz energética brasileira e mundial

O termo “transição energética” traz a ideia que deixaremos de usar certas fontes para usar outras, geralmente se pressupõe que as piores fontes ficam para trás e as melhores chegam para as substituir, também é comum se assumir que será rápida esta mudança.

A realidade é bem distinta. As transições energéticas são historicamente lentas; as fontes anteriores não são simplesmente substituídas por novas, mas se somam a elas. Se no passado energias piores foram somadas a energias melhores, como a biomassa (lenha) ao se somar com o carvão mineral e o petróleo, por exemplo, nas futuras transições não existe essa garantia. As melhores energias, mais baratas de serem produzidas, mais concentradas em energia, mais flexíveis e confiáveis, podem ser gradativamente extintas e se somarem a energias de pior qualidade.

O Gráfico 1 apresenta a consumo mundial das energias primárias, por fonte, de 1800 a 2022. [2]

Gráfico 1: Consumo mundial de energia primária por fonte (1800-2022)

O Gráfico 1 demonstra como acontecem as transições energéticas, as fontes primárias se somam, não são substituídas. O processo é lento e não há garantia que as fontes primárias que chegam para se somar às antigas são melhores, mais baratas e mais capazes de realizar trabalho, aumentar a produtividade, promover o crescimento e o desenvolvimento.

A matriz energética mundial depende dos fósseis que representam 83,7% do total (Petróleo 31,48%, Carvão Mineral 27,36% e Gás Natural 24,84%). A energia nuclear representa 4,3% e as potencialmente renováveis 12,0% (Hidroelétrica 6,88%, Eólica e Solar 4,66%, outras 0,47%).

O Gráfico 2 apresenta a origem das fontes primárias de energia para o mundo e os países selecionados em 2021.

Gráfico 2: Fontes primárias de energia por país para 2021

O Brasil tem a maior participação relativa das energias potencialmente renováveis entre os principais países do mundo, com 39,72% (Hidroelétrica 30,48%, Eólica e Solar 7,48%, outras 1,76%). Os fósseis representam 59,09% (Petróleo 39,75%, Carvão Mineral 6,35% e Gás Natural 12,99%) e a energia nuclear 1,19%.

Enquanto o Brasil tem 39,72% da sua matriz energética com fontes potencialmente renováveis, o mundo tem apenas 12,0%, os EUA têm 8,65% e a África do Sul com apenas 3,35%. [3]

Fontes primárias potencialmente renováveis

Há aspectos que limitam as energias potencialmente renováveis em cumprir papel histórico equivalente ao das energias de origem fóssil em relação ao desenvolvimento econômico e social.

Os seus custos de produção são relativamente mais altos, considerando os custos externalizados pelos seus produtores, como o custo de distribuição, o custo do complemento de suprimento de energia confiável para compensar a intermitência, além das subvenções diretas e indiretas tais como os impostos relativamente mais baixos, os créditos de carbono, vantagem de acesso prioritário à rede de distribuição e os subsídios de capital.

A intermitência na produção é típica das energias eólica e solar fotovoltaica. Os parques eólicos precisam de capacidade instalada maior, caso se pretenda garantir a demanda nos períodos de menor incidência dos ventos. Tanto eólica quanto a solar fotovoltaica precisam de complemento de fontes confiáveis, tais como as fósseis, nuclear ou a hidrelétrica, para garantir o suprimento mesmo com sua intermitência.

A energia elétrica não serve para os mesmos fins que os combustíveis líquidos e o carvão. Os combustíveis líquidos de origem fóssil são fundamentais para o transporte de mercadorias e pessoas, navegação e aviação. As atividades industriais de mineração e siderurgia dependem das energias fósseis.

Não se produz painéis fotovoltaicos, baterias e turbinas eólicas a partir da energia elétrica. Mineração de metais raros, siderurgia e fusão de metais para produção de ligas dependem de energias muito concentradas e de altas temperaturas, ou seja, precisam de fontes primárias de energia com elevada qualidade.

Também a manutenção da rede de distribuição de energia elétrica, com a substituição de cabos de transmissão constituídos por elementos metálicos, depende das energias fósseis.

Existe diferença entre quantidade e qualidade das energias primárias. Por exemplo, as energias solar, eólica, das ondas e marés têm densidades energéticas muito baixas, relativamente baixa capacidade de realização de trabalho, elevado custo para suas obtenções, reduzidas facilidades, flexibilidades e confiabilidades aos seus usos, além de que limitadas temperaturas podem ser atingidas a partir de suas aplicações. [4]

Consumo per capita de energia e desenvolvimento

Existe relação entre consumo de energia per capita, crescimento econômico e desenvolvimento humano.

O Gráfico 3 apresenta o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos países em função do consumo de energia primária per capita, com dados de 2021. [5] [6]

Gráfico 3: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em função do consumo per capita de energia para 2021

Quanto maior o consumo de energia per capita, maior o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos países. O consumo de energia está correlacionado, reforça e é reforçado, pelo desenvolvimento das nações. Não existe país com alto desenvolvimento humano e baixo consumo relativo de energia. [4]

Desigualdade na emissão histórica e atual de gases de efeito estufa

De maneira análoga à desigualdade do consumo de energia está disparidade das emissões histórica e atual de gases do efeito estufa, em geral, e do gás carbônico (CO2), em particular.

O Gráfico 4 apresenta o inventário histórico por região dos 2.450 bilhões de toneladas de CO2 emitidas entre 1850 e 2020. [7]

Gráfico 4: Emissões históricas por região (1850-2020), das 2.450 bilhões de toneladas de CO2

América do Norte e Europa emitiram 49% do inventário histórico de CO2, enquanto suas populações representam apenas cerca de 12% da população mundial.

A desigualdade também se revela nas emissões por região atuais. O Gráfico 5 apresenta as emissões de CO2 equivalente (CO2e) por pessoa e por região em 2019.

Gráfico 5: Emissões médias de CO2e, em toneladas per capita por região (2019)

A América do Norte emite 3,15 vezes mais CO2 equivalente do que a média mundial, enquanto a América Latina emite 0,73 vezes e a África Subsaariana apenas 0,24 vezes a média mundial.

A desigualdade na emissão de CO2 acontece entre as regiões e países, mas também entre as frações das populações mais ricas e mais pobres. O Gráfico 6 apresenta as emissões de CO2 equivalente por grupos da população mundial.

Gráfico 6: Emissão de CO2e, em toneladas per capita por grupos da população mundial (2019)

A fração dos 0,01% mais ricos emitiram 383 vezes mais CO2 do que a média da população mundial e 1582 vezes mais do que os 50% mais pobres.

O cenário de desigualdade entre pessoas ricas e pobres, dentro de cada país e entre os países é apresentado no Gráfico 7.

Gráfico 7: Emissões de CO2e, em toneladas per capita por grupos da população por país (2019)

A fração dos 1% mais ricos dos EUA emite 28 vezes mais CO2 do que os 50% mais pobres no seu país, 122 vezes mais do que os 50% mais pobres do Brasil e 269 vezes mais na comparação com os 50% mais pobres da Índia. [7]

A injustiça se revela tanto no consumo de energia quanto na emissão de CO2, entre os países e entre ricos e pobres.

Transição energética justa

Para se desenvolver econômica e socialmente o Brasil precisa consumir muito mais energia. As energias potencialmente renováveis são mais caras de serem produzidas, menos confiáveis e dependem das fósseis para serem produzidas e mantidas. O Brasil já tem a matriz energética com maior participação relativa das renováveis entre os principais países do mundo e, para se desenvolver, precisa consumir muito mais energia confiável e relativamente mais barata, como o petróleo e o gás natural. Para alcançar padrões de desenvolvimento norte americano ou europeu, o Brasil precisa consumir cerca de cinco vezes mais petróleo e gás natural. [4]

Para que a transição energética seja justa é necessário reduzir as desigualdades da renda, da riqueza, do consumo de energia e das emissões per capita, tanto entre os países quanto dentro de cada país. Para isso é fundamental que haja aumento significativo da participação do Estado na economia, nos investimentos produtivos e no controle dos sistemas financeiro e de crédito. Para alcançar e manter a redução das desigualdades é preciso democratizar a propriedade dos meios de produção, com a promoção de cooperativas industriais, comerciais, de serviços e de crédito.

Com a melhor distribuição da propriedade dos meios de produção, haverá melhor e mais sustentável distribuição da riqueza e da renda, assim como haverá mais justiça no consumo por pessoa e por país de energia, com emissões de carbono proporcionalmente justas.

Felipe Coutinho é engenheiro químico e vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET)

Referências

[1] epbr, “Prates defende Petrobras como impulsionadora da transição energética no país”.
[2] H. Ritchie, M. Roser e P. Rosado, “Energy,” 2022.
[3] Our World in Data, “Which sources does our global energy come from? How much is low-carbon?”.
[4] F. Coutinho, “Entreguismo se disfarça pintado de verde,” 2023.
[5] Our World in Data, “Explore data on Energy”.
[6] Our World in Data, “The Human Development Index around the world”.
[7] L. Chancel, T. Piketty, E. Saez e G. Zucman, “World Inequality Report 2022, World Inequality Lab wir2022.wid.world,” 2022.

Acessar publicação original:

aepet.org.br