É tradição histórica que Jeanne-Marie Philipon (1754-1793), celebrizada com o nome de Madame Roland, no cadafalso, para ser guilhotinada, pronuncie a frase:
“Ó, Liberdade, quantos crimes cometem-se em teu nome!”.
Palavras como liberdade, democracia, independência são empregadas pelo sentido que evocam, jamais pela realidade que descrevem. Inclusive, porque, em abstrato, dissociadas de maiores explicações acerca de contextos reais e, por isso mesmo, específicos, elas nada mais são do que slogans, apropriados para vender ilusões, mas não para compreender os processos históricos a partir dos quais, e somente a partir deles, se poderá dar realidade e densidade aos valores que essas palavras pretendem evocar.
Na crise que afoga o Brasil, os dirigentes repetem, temerosos da fragilidade de suas posições, que o mais importante é preservar a democracia, em outras palavras, não se deve promover qualquer movimento para tirar o Brasil da condição submissa aos interesses financeiros apátridas, que aqui se instalaram para a “redemocratização” e impedir o prosseguimento dos 50 anos de desenvolvimento social e econômico, a Era Vargas.
Mas a qual democracia se pretendia retornar? À do regime anterior ao golpe de 1964, ou à do golpe no golpe, em 1967? Ou seria ainda ao sistema vigente na Primeira República?
E quando houve democracia no Brasil? Nos 400 anos de escravidão formal, legal?
O que significa politicamente a palavra democracia?
A democracia pode significar um método formal de seleção eleitoral de governantes (Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, [1944]), uma forma de governo e de organização institucional capaz de substituir governantes e operar reformas socioeconômicas sem necessidade de violência (Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, [1945]) ou um modo de vida comunitária calcada no otimismo em relação às possibilidades cívicas das pessoas comuns e na valorização do diálogo, da cooperação e da educação como fatores de experimentação e de mudança sociais (John Dewey, Democracia Criativa: a tarefa diante de nós, [1939]).
Algumas abordagens são mais institucionalistas e outras mais sociológicas, priorizando cada qual diferentes instâncias de exercício do poder. Parece, contudo, haver consenso a respeito da vinculação da democracia a alguma forma igualitária de participação que contemple os distintos interesses sociais sem que um tenha condições de suprimir os outros. A democracia opera, assim, sob o signo da indeterminação, pois não se pode conceber, a priori, o conteúdo da política; esse precisa ser debatido e negociado até onde se tornar imperativa a tomada de decisão definitiva.
Essa concepção de democracia, já presente na Antiguidade, fez com que seus maiores pensadores a rechaçassem, a exemplo de Platão e Aristóteles, pois eles buscavam, de diferentes modos, a ideia objetiva de Bem, acima das vicissitudes históricas. A Modernidade, contudo, ao submergir a Metafísica na Física, não teve pejo em ressignificar positivamente os atributos mundanos e históricos que permitem situar a democracia como um valor edificante. A democracia passa, então, a ser avaliada conforme a sua capacidade prática de entregar o que promete, o que, obrigatoriamente, a circunscreve nas formas coletivas de fato, sendo a principal delas a Nação.
Sob qualquer viés, a democracia tem estreita relação com a Nação e, portanto, com o nacionalismo. Ela se desenvolve e se estabelece em limites geográficos. Porém, vivemos em um mundo plural sob todas as óticas, especialmente devido à desigual distribuição de bens da natureza. Quantos países, por exemplo, dispõem de reservas de petróleo em quantidades que possam transferir para outros que nada dispõem?
A democracia também estabelece os padrões de relacionamento não só entre as pessoas, mas também entre os Estados. Caso contrário, é um incentivo à guerra, à destruição das nações e de suas administrações soberanas.
E por que os critérios de virtudes e de hábitos de vida precisam ser idênticos por toda parte, se as condições físicas variam com as localizações geográficas? Se as necessidades da população saariana (beduínos, berberes, tuaregues) diferem em muito dos povos circumpolares (inupiat, aleútes, inuit)? Se há países onde uma etnia é amplamente majoritária, como os “han” na China, e em outros, mesmo populosos, dificilmente se encontram cem pessoas de mesma ancestralidade étnica, como o Brasil?
Situações dessa natureza foram motivo de reflexão quando da chegada ao poder, na Bolívia, de Evo Morales.
“Eleger presidente a Evo Morales é nomear um presidente cocalero, um chefe de Estado cuja relação com a questão do narcotráfico é, certamente, oblíqua. Se um deputado cocalero de certa maneira enaltece a representatividade da democracia boliviana, um presidente cocalero impõe ao Estado e à nação todo o peso pejorativo desse epíteto. Por exemplo, as frequentes insinuações sobre a origem espúria dos recursos que financiam o MAS – se o partido, em parte, é custeado pelos cocaleros, então, na prática, é financiado pela cocaína, ainda que indireta e parcialmente – às quais hoje não se empresta maior importância, poderiam, naturalmente, tomar outra dimensão. Na verdade, uma fração significativa do eleitorado não é indiferente ao efeito negativo de tal rótulo, seja para a imagem do país, seja para a imagem que fazem de si mesmos como bolivianos.”
Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo, “Bolívia – A Criação de um Novo País”, Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília, 2006).
Democracia exige multipolaridade
De tudo o que vimos, além da dificuldade de se implantar a democracia em um só país, há a dificuldade do mundo aceitar as democracias de todos os demais países, numa governança global multipolar, sem diferenciar países colonizadores e colonizados, tecnologicamente desenvolvidos e subdesenvolvidos, de tradições hereditárias ou de identificações individualizadas, entre outras tantas distinções.
Mas a base da democracia se funda no Estado soberano, isto é, no estado que tem autonomia decisória e pode garantir sua relação com a população que abriga. Em outras palavras, democracia sem nacionalismo, sem poder do Estado Nacional, é uma farsa, um engodo.
orém, a democracia exige certo tipo de compartilhamento. Ela não pode “ser feliz sozinha”, pois há de haver garantias recíprocas, entre compradores e vendedores, entre as trocas sejam de produtos, de conhecimentos, de ações operacionais entre os diversos países. Como há mais de dois séculos escreveu o filósofo e político nacionalista Johann Gottlieb Fichte (1762-1814):
“Os Estados são necessariamente independentes uns dos outros e autônomos. Sendo completamente iguais entre si (quanto aos direitos), aquilo que um deles faz para proteger de danos seus cidadãos, deve também valer em relação aos outros; as leis que cada um estabelece a este respeito deve também o outro estabelecê-las”
(Fundamento do Direito Natural Segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, 1796).
Atualmente, é a República Popular da China (China) o país que desenvolve o sistema organizacional do Estado mais inovador.
Transcrevemos da publicação bilíngue Palavras-chave para conhecer a China: a Governança da China (New World Press – Editora FGV, RJ, 2019):
“Não existem no mundo sistemas políticos completamente iguais. O sistema político não pode ser avaliado de forma abstrata e independente das condições políticas e sociais nem das tradições culturais e históricas nas quais se encontra, tampouco ser um único modelo viável ou ser copiado de modelo estrangeiro ignorando determinadas realidades”.
“É preciso persistir permanentemente e desenvolver a política democrática socialista de nosso país, levar adiante a reforma do sistema político com uma atitude positiva e prudente e promover a institucionalização, a regulamentação, a legalização e a procedimentalização da política democrática socialista para assegurar que o povo administre, conforme a lei e por diversos meios e em diversas formas, os assuntos estatais, as atividades econômicas e culturais e assuntos sociais, com a finalidade de consolidar e desenvolver uma situação política caracterizada pelo dinamismo, vivacidade, estabilidade e unidade”.
Vê-se que a democracia se aplica a partir de limites geográficos definidos, pois as pessoas que participam da decisão devem ter perfeito entendimento do problema e interesse na solução. Mas este incentivo à participação, que é básico e fundamental para a democracia, não é suficiente. É também necessário que esteja diante de opções efetivas, ou seja, soluções que sejam possíveis sob os aspectos técnicos, econômicos e no conjunto maior onde se insere a questão tratada.
É aí que o modelo chinês revela sua capacidade para enfrentar o desafio democrático: um sistema de níveis decisórios a partir da menor unidade administrativa, ou como explicitado na obra citada: um sistema de assembleias populares. “O caráter natural da política democrática socialista reside na posição do povo como dono do país”; “o sistema de assembleias populares constitui um arranjo político fundamental que integra organicamente o Partido, a posição do povo como dono do país e a administração do país conforme a lei; por isso deve ser mantido por longo tempo e aprimorado constantemente”.
“É preciso que as assembleias populares exerçam seus poderes de legislação, supervisão, decisão, nomeação e exoneração e que os representantes das assembleias desempenhem melhor suas funções de modo que as assembleias populares e seus comitês permanentes de todos os níveis se transformem em órgãos de trabalho que assumam integralmente as atribuições definidas em todo sistema de leis e instituições que representem o povo e com ele mantenham laços estreitos”. As comissões especializadas, os comitês permanentes, subordinados às assembleias, e o aperfeiçoamento continuado da estrutura de pessoal, garantem a eficácia e a democracia no país.
O ex-ministro Hélio Beltrão (1916-1997), nas considerações para a proposta da primeira estrutura organizacional da Petrobrás (1954), escreveu que o “poder de decidir deve ser atribuído, sempre que praticável, a quem, por força do conhecimento direto do assunto e do interesse em sua pronta e satisfatória solução, esteja realmente habilitado a formar um juízo objetivo sobre os fatos e o problema em questão”. Mas ressalvava as qualificações e o sistema mais amplo onde se inseria a questão, para o que adotava, no projeto apresentado, as exigências da coordenação, controle e responsabilidade de planejamento, assegurando equilíbrio ao sistema (Plano de Organização dos Serviços Básicos da Petrobrás, Petrobrás, 1957, revisão).
Têm-se, mutatis mutandis, as condições de uma estrutura democrática de poder, ou seja, dentro de condições geograficamente determinadas, um sistema participativo onde o povo decide e as decisões, por meio de assembleias populares para ambientes cada vez mais amplos, até envolver todo o país – definições políticas e estratégicas nacionais – organizam os sistemas legais e administrativos do Estado Nacional.
Democracia, portanto, não é um conceito abstrato para justificar o poder de um grupo, uma classe, um interesse. Nem a participação onde a pessoa não sabe quem está escolhendo nem para fazer o quê. Democracia é um sistema vivo, dinâmico, que envolve todas as pessoas de uma comunidade, onde as questões são sentidas e solucionadas, dentro do interesse maior da Nação.
Neste aspecto, a China se apresenta, com partido único, do qual participam, como membros, cerca de 10% da população, como mais democrática do que aqueles onde se realizam periódicas mudanças de pessoas para prosseguir com as mesmas forças governantes, os “centrões”. O Brasil, coletando assinaturas em bancas pelas ruas e com 31 partidos registrados, tem ao todo 7% da população neles inscrita. O Partido Comunista da China tem inscritos e participantes um número de pessoas que equivalem a mais da metade dos brasileiros.
Fontes: