A definição nacionalista de soberania não é óbvia. A associação espontânea com os conceitos de “liberdade” e “autonomia”, frequentemente empregados no seu sentido individualista enquanto atributos de indivíduos, pode levar a distorções que prejudicam seu entendimento. A soberania a que nos referimos é a das nações, totalidades sociais amalgamadas por um sentido comum de pertencimento histórico e cultural.
Para compreendê-la, é necessário referenciá-la a critérios específicos ao objeto em questão, de modo que não se mostra adequado tomar emprestadas as caracterizações de liberdade e de autonomia dadas pela tradição liberal, eivadas de individualismo metodológico e moral, desde Immanuel Kant, com sua clássica definição do imperativo categórico (A Crítica da Razão Prática, 1788), até Isaiah Berlin, com o binômio liberdade negativa/liberdade positiva (Os Quatro Ensaios Sobre a Liberdade, 1969).
Seguindo os passos do mestre Émile Durkheim, pai fundador da Sociologia como ciência autônoma, os fatos sociais diferem qualitativamente dos individuais e precisam ser estudados a partir de suas especificidades: são objetivos e coercitivos, no sentido de que dizem respeito a toda a coletividade, independentemente das vontades individuais. Assim são as nações.
Querendo ou não, gostando ou não, todos participamos de uma nação e com ela nos identificamos, sendo ao mesmo tempo herdeiros e precursores de toda a história nacional que, inevitavelmente, sem que assinemos voluntariamente qualquer “contrato social”, nos precede e nos sucederá, mantendo viva a identidade compartilhada que nos singulariza no conjunto da humanidade e nos permite vislumbrar perspectivas idiossincráticas acerca das questões fundamentais da existência mundana.
A nação é viva na medida em que é acreditada e valorizada pelos seus integrantes, que, apesar de todas as singularidades individuais, são capazes de enxergar uns aos outros como compatriotas, vinculados entre si por sólidas relações de solidariedade social lastreadas na comunhão histórica e linguística e, por vezes, étnica e religiosa.
Não se conclua daí que a nação, apenas por existir enquanto comunidade simbólico-imaginária, tem sua sobrevivência garantida. Por mais que toda nacionalidade se sustente, em última instância, em princípios e valores de ordem transcendente, que unificam o imaginário social em torno de determinadas qualidades especificadoras, a sua existência histórica depende de como ela se organiza e se posiciona pragmaticamente em uma realidade internacional, definida por conflitos oriundos do choque entre o expansionismo e a autopreservação das nações em um mundo de recursos naturalmente escassos.
Para se manifestar enquanto fenômeno histórico, a alma nacional precisa se corporificar em território e conjunto de instituições que permitam à nação alcançar seus objetivos intrínsecos no decorrer dos tempos e, assim, se realizar no mundo terreno.
A autenticidade da alma nacional é condição primeira da soberania, pois, sem a crença compartilhada do valor e da realidade da nação, qualquer materialidade se torna mera artificialidade a serviço de propósitos outros que não os genuinamente nacionais. Se não se pode dizer, quanto a temas humanos, que um corpo sem alma realmente vive, tampouco se pode considerar almas sem corpos.
Cadáveres e anjos estão fora da história; então, nações, enquanto entidades históricas, provam sua autenticidade na capacidade de exteriorizar sua metafísica espiritual e cultural na materialidade político-econômica, imbuindo-se dos meios físicos para assegurar os recursos com os quais podem se projetar no mundo.
A soberania, então, requer a existência de um Estado, agente político da soberania, e de um território, recorte geográfico de exercício das funções e prerrogativas estatais. Estado e território são realidades indissociáveis por definição. Não há Estado sem território, pois toda ação se exerce em uma base física, assim como não há território sem Estado, pois aquele é justamente o espaço organizado pelo poder.
O Estado soberano constitui, pois, a autoridade última em dado território. De certa forma, a expressão “Estado soberano” é um pleonasmo, pois o Estado que não se manifesta, enquanto centro de poder territorial, de fato assim não o é, mas apenas uma extensão administrativa de poder realmente soberano, seja ele outro Estado ou alguma força espiritual ou econômica à qual se subordine a gestão territorial.
Brasil em tempo de crise – Democracia
As conceituações canônicas de Estado, na maioria das vezes, são incompletas, pois focalizam aspectos parciais e incapazes de, por si só, abranger a complexidade do fenômeno.
A definição funcionalista de Max Weber, relativa ao “monopólio da violência física legítima em determinado território”, limita a essência do Estado às funções policiais e militares, importantíssimas, sem dúvida, mas longe de alcançar o fulcro da questão.
A definição jurídica de Hans Kelsen, do Estado como “personificação da ordem jurídica nacional” (Teoria Geral do Direito e do Estado, 1945), explica com outros termos a de Weber, pois o direito só é uma realidade social, em vez de mero palavrório, devido ao monopólio da violência física territorial que o executa e que ele torna “legítima”, quando cumprida conforme seu ordenamento.
Com Weber e Kelsen, sabemos o que o Estado faz, ou pelo menos parte disso, mas não o que ele é. Para tanto, remontemos a Hegel: “o Estado é a efetividade da ideia ética” (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, 1821). Trocando em miúdos, o Estado é a realização histórica dos valores e princípios que compõem a nação, no sentido de que os substancializa enquanto realidade político-administrativa. Uma definição equivalente à de Hegel, ainda que inserida em um contexto filosófico bastante distinto, é dada pelo Padre Fernando Bastos de Ávila SJ: o Estado “é a organização do poder político da comunidade nacional” para “o exercício de sua função fundamental de promover o bem comum” (Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo, 1978).
O Estado, portanto, é a forma política da nação, é a nação politicamente organizada. O Estado é uma feição específica da nação, de modo que a soberania estatal é o exercício da soberania nacional. A concepção nacionalista está a anos-luz de distância do Leviatã hobbesiano, uma artificialidade exterior e superior à comunidade, concepção essa fundante da teoria política tanto do liberalismo quanto do fascismo.
O que garante, então, a soberania do Estado-nação?
Sem dúvida, a sua capacidade de exercer o “monopólio da violência física legítima em determinado território” e de “personificar a ordem jurídica nacional”. Nesse ponto, resgatamos Weber e Kelsen para complementar e ampliar a definição de Estado. Mas, ainda assim, restam pontos a esclarecer, pois a violência e o Direito não são as únicas fontes e instrumentos do poder. O dinheiro, a informação e a organização também são, e, ao contrário do Direito, não constituem, na maior parte dos países, monopólio estatal – sobre o dinheiro especificamente, por mais que sua emissão seja sempre monopólio estatal ou chancelado pelo Estado, o seu controle e as suas aplicações são, em grande parte, não estatais.
A tradição liberal obteve sucesso em moldar a sensibilidade pública para acusar o poder apenas na esfera estatal, invisibilizando-o em outros campos de atuação.
No julgamento liberal, os governantes são autoritários até que se prove o contrário, daí a necessidade de instituir mecanismos reguladores e limitadores do poder emanado do Estado, como o constitucionalismo e a “separação de poderes”.
Por outro lado, tudo que não for Estado é enquadrado nas categorias de “mercado” e/ou “sociedade civil”, entendidos como arenas pluralistas e horizontais de barganhas voluntárias entre interesses estritamente privados.
O liberalismo defende, então, não apenas libertar “mercado” e “sociedade civil” do máximo possível de intervenções políticas, como, ainda, modular o padrão de funcionamento estatal conforme as regras e diretrizes supostamente existentes neles. Ignoram-se, pois, as assimetrias e desigualdades nas esferas não estatais e os efeitos de poder dela decorrentes, assim como a interpenetração dos vetores estatais e não estatais na configuração das nações.
Paradoxalmente, o mesmo liberalismo que consagrou, no século 19, a forma do Estado-nação como organização modelo, ignora o quanto a soberania do Estado-nação frequentemente é minada pela interferência de poderes não estatais, internos e externos aos países. Isso se explica, em grande parte, por o Estado-nação preconizado pelo liberalismo não passar de mero simulacro para arranjar os recursos de poder aos países de maneira propícia à atuação desimpedida de forças capitalistas transnacionais.
Brasil em tempo de crise – A questão
Se, no século 19, o liberalismo escancarou as fronteiras dos países para a hegemonia comercial e financeira da Grã-Bretanha, hodiernamente o faz em prol das corporações financeiras sediadas no Atlântico Norte e, especialmente, no mundo anglo-saxão, como bancos, gestores de ativos e fundos de investimento, que controlam os meios não estatais de exercício do poder e desafiam, quando não sabotam e/ou sequestram, a autoridade última do Estado-nação.
A chamada globalização trai, no seu nome, o projeto de dominação universal da plutocracia que a lidera e a impõe aos países, geralmente como contrapartida para empréstimos, admissão em instituições multilaterais e negociações várias. Suas principais instituições, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (WB), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e as Nações Unidas (ONU) nasceram todas a partir do sistema de poder inaugurado na Conferência de Bretton Woods, em 1944, que consagrou os Estados Unidos da América (EUA) como sede do poder financeiro transnacional e o dólar como instrumento de dominação mundial do Federal Reserve (FED), verdadeiro cartel bancário corporativo sustentado pelo exorbitante poder militar estadunidense.
Até 1973, quando do primeiro Choque do Petróleo, os comandos de Bretton Woods incentivaram o isolamento dos sistemas financeiros nacionais e facilitaram o reforço das capacidades estatais de planejamento com o fito de recuperar os parques industriais, combalidos por um colapso econômico (1929) e duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) e, assim, dinamizar o comércio internacional e, por conseguinte, o dólar como moeda de reserva internacional.
A partir dali, contudo, em vista da necessidade de sustentar o volume cada vez maior de dólar frente ao ouro, Bretton Woods se reorganizou para remover as restrições aos fluxos de capitais e submeter os sistemas produtivos e de seguridade social aos imperativos de lucro financeiro. As finanças passam a ser entidade supranacional a utilizar os Estados, não mais nacionais, globalizados.
O Choque Volcker, de 1979, acompanhado da segunda escalada do preço do petróleo, colocou de joelhos os países industriais ou em processo de industrialização, como o Brasil, importadores de petróleo, enquanto atraía para Wall Street/City os petrodólares que financiaram a expansão mundial das corporações transnacionais, que, em conluio com FMI e WB, obrigaram os países endividados a efetuar privatização em massa das suas dinâmicas econômicas e sociais. Os EUA se impuseram ao mundo através da globalização e, com ela, destravaram forças desnacionalizantes.
Dessa forma, a soberania nacional passou a ser devassada por inúmeras forças de dentro e de fora do país, não necessariamente estatais ou puramente estatais. Não se conclua disso a inevitabilidade da rendição nacional aos poderes transnacionais.
Em um mundo interconectado por sofisticadas cadeias tecnológicas, soberania não significa isolamento, mas integração altiva conforme projetos autodeterminados. Eis o sentido da multipolaridade, decorrente do fortalecimento econômico e militar de Estados-civilizações não ocidentais, que aproveitaram as brechas da globalização para se modernizar sem se descaracterizar. Somente a partir dela pode o Brasil fortalecer seu poder nacional para atualizar suas potencialidades civilizatórias.
Felipe Maruf Quintas é doutor em Ciência Política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fontes: