A reestruturação dos modelos de gestão e de organização da Petrobras, aprovada em outubro de 2000, alocou nas unidades de negócios então criadas a responsabilidade e o poder de decisão sobre a gestão e o gerenciamento da instalação de novos ativos, destinando às áreas de tecnologia, engenharia e materiais um papel próximo ao de prestadores de serviços. Contrariando toda a experiência técnica e gerencial acumulada por essas áreas, a nova orientação corporativa abriu caminho para a experimentação de modelos de gestão de obras considerados, historicamente, do interesse das grandes empreiteiras, modelos esses que sempre foram formalmente repelidos pela Petrobras durante todo o período de atuação do Geop e do Segen.
O conceito básico que orientou a criação da unidade de Engenharia, que substituiu o Segen – atuação assemelhada à de uma empresa prestadora deserviços – contribuiu, decisivamente, para a terceirização e o enfraquecimentodas atividades de planejamento, de projeto e de gestão de obras. Dentro desse cenário, a Petrobras teve reduzido o seu poder de compra e a sua influência sobre o mercado, perdeu participação e poder no gerenciamento da implantação das novas unidades produtivas e tornou-se um alvo preferencial dos interesses e das manobras de mercado do cartel de grandes empreiteiras prestadoras de serviços de construção e montagem.
Em pouco tempo, o modelo baseado na contratação do tipo EPC (Engineering, Procurement and Construction) tornou-se a primeira opção para a implantação de novas unidades industriais, patrocinada pelas diretorias de Abastecimento e de Serviços, transformada em procedimento padrão pela gerência executiva da Engenharia e sustentada, em seus princípios, por um sem número de pareceres do Jurídico da Companhia. Esse modelo, baseado na licitação de grandes “pacotes”, com valores muito elevados, prevaleceu nas contratações da Engenharia ao longo da última década, tornando-se um fator relevante de elevação de custos e de acréscimo dos prazos dos empreendimentos.
A exemplo do que acontece nos casos de contratação do tipo “turn-key”, a opção por um contrato EPC pode ser justificada quando a empresa proprietária não dispõe do conhecimento técnico e gerencial necessário ou quando se trata de uma unidade singular, exclusiva, que dificilmente será repetida em outro momento. Não era esta, certamente, a condição da Petrobras no ano 2000, detentora de um imenso conhecimento tecnológico e de uma extraordinária experiência no gerenciamento das atividades de projeto, suprimento e construção. Além disso, a Petrobras sempre foi uma empresa em contínuo crescimento, permanentemente envolvida com a implantação de repetidas unidades de produção, transporte e processamento de petróleo e gás natural.
Dessa forma, a contratação do tipo EPC representou um retorno aos primórdios da atuação do CNP, quando não havia conhecimento técnico suficiente nem experiência consolidada na gestão de grandes empreendimentos do setor petróleo no Brasil. A prática continuada desse modelo produziu danos expressivos à Petrobras, como será visto a seguir.
(i) Perda do controle sobre o projeto: a contratada principal, geralmente um consórcio de empresas, passou a ser responsável pela complementação do projeto básico, execução do projeto executivo, suprimento de materiais e equipamentos, subcontratação das empresas construtoras das obras e pela fiscalização técnica e gerencial dessas empresas; na prática, a Petrobras abriu mão do planejamento, do projeto e da fiscalização técnica e transferiu para a contratada a responsabilidade pela gerência do empreendimento, em especial das interfaces entre projeto, suprimento e construção e montagem.
(ii) Transferência dos riscos do projeto: no modelo EPC, a Petrobras transfere à contratada todos os riscos do projeto, sejam fortuitos, sejam de mercado; esses riscos são precificados na proposta e, quando não incorridos, transformam-se em ganhos adicionais para as contratadas.
(iii) Licitação antecipada dos “pacotes”: é necessária para que a futura contratada disponha dos prazos necessários ao desenvolvimento do projeto, ao suprimento dos bens, à subcontratação das empresas executoras e à execução das obras. Implica na realização de licitações com informações não consolidadas, projetos imaturos e previsão de prazos e custos irreais.
(iv) Ajustes no fornecimento e excesso de aditivos: os inevitáveis ajustes de escopo e de fornecimento das partes que não foram suficientemente definidas antes da licitação resultam em um excessivo número de aditivos contratuais e em custos e prazos muito maiores do que os previstos.
(v) Benefícios contratuais para a contratada: as melhorias e otimizações de qualquer natureza, inclusive aquelas decorrentes das negociações com subfornecedores e da mitigação dos riscos, constituem benefícios exclusivos para as contratadas, enquanto as onerações eventualmente verificadas ao longo dos trabalhos suscitam a apresentação de pleitos contratuais, na tentativa de obter da Petrobras alguma compensação.
(vi) Perda da competitividade nas licitações: nos contratos EPC, os escopos são multidisciplinares e os valores excessivamente elevados, afastando as empresas especializadas e de porte médio, capazes de oferecer propostas com menores custos. Essa condição reduz a competitividade dos certames e promove uma enorme concentração de recursos contratados com um reduzido grupo de empresas de maior porte. Em face da intermediação da contratada, os preços obtidos dessa forma não representam os melhores preços que podem ser oferecidos pelo mercado. A verdadeira competição ocorre, então, na subcontratação dos serviços pela contratada, quando surge a oportunidade de, com o projeto suficientemente desenvolvido, contratar, com menores riscos, companhias de menor porte, com custos diretos e BDI inferiores, dentro de um universo mais amplo de empresas especializadas.
(vii) Perda do poder de compra: na contratação do tipo EPC, o poder de compra da Petrobras junto ao mercado de fornecimento de bens e serviços é transferido a terceiros. Na esteira dessa transferência de poder, instalou-se um processo de enfraquecimento da engenharia de projetos e da indústria de óleo e gás no País, uma vez que as contratadas principais dos contratos EPC têm a sua atenção e o seu esforço voltados para os resultados de cada contrato e, ao contrário da Petrobras, não têm interesse em cumprir a política de conteúdo local nem de contribuir para o desenvolvimento e a preservação da engenharia de projetos e da indústria de fabricação nacionais.
(viii) No último artigo dessa série, será mostrado como a terceirização do gerenciamento de obras favoreceu a atuação dos carteis de empreiteiras, a implantação do esquema de corrupção e as perdas financeiras da Petrobras.
*Eugenio Miguel Mancini Scheleder é engenheiro aposentado da Petrobras; até 1991, exerceu as funções de engenheiro de projeto, gerente de projetos de transporte e gerente-geral deempreendimentos industriais do Segen. No período de 1991 a 2005, exerceu, no Governo Federal, os cargos de Secretário Nacional Adjunto de Energia, Presidente da Comissão Nacionalde Gás Natural, Diretor de Gestão e Diretor de Investimentos Estratégicos do Ministério doPlanejamento e Assessor Econômico do Ministro do Planejamento.