As mudanças climáticas deixaram de ser uma ameaça remota. É aqui e agora. Vivemos a intensificação dos eventos climáticos extremos, como em São Sebastião (2023), Petrópolis (2022) e sul da Bahia (2021). Ocorrem aumentos da temperatura, com 2023 sendo o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.
Do ponto de vista global, o consumo de energia se apresenta como principal responsável pelos gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera, contribuindo com 73% das emissões. Se quisermos desacelerar as mudanças climáticas, a decisão prioritária deveria ser reduzir o consumo e a dependência dos combustíveis fósseis, em um processo chamado de transição energética.
Essa transição, porém, tem se mostrado cada menos alcançável.
Entre 1992, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, e 2022, o consumo global de combustíveis fósseis aumentou cerca de 64%. Parte da dificuldade tem sido criada pelos interesses do setor de energia. A expectativa dos países produtores de petróleo e carvão, até 2030, é aumentar a extração em quantidade muito acima do que seria seguro para limitar o aquecimento global a 1,5 °C. O Brasil planeja, até 2050, dobrar a produção de petróleo em relação a 2020. (1)
Nesse contexto, como colocado por Helen Thompson, professora em Cambridge, estamos diante de duas geopolíticas energéticas complexas: a geopolítica caótica dos combustíveis fósseis e a geopolítica da “energia verde” (2). Esta última vem sendo construída por instituições multilaterais e corporações transnacionais que argumentam que a substituição das fontes fósseis por energia eólica e solar seria suficiente para evitar o aprofundamento das mudanças climáticas. Assim, resumem a transição energética à substituição tecnológica e evitam questionar a intensidade energética que sustenta o padrão de consumo dos países do Norte e das elites do Sul global.
Por exemplo, a Agência Internacional de Energia (AIE) (3) defende que, para colocar as emissões de GEEs em uma trajetória consistente com o Acordo de Paris, a instalação anual de células fotovoltaicas e turbinas eólicas teria de ser triplicada, e a venda de automóveis elétricos, expandida em 25 vezes até 2040. Essa visão tecnocentrada se manifesta por meio da idealização das chamadas fontes de energia “limpa” ou “verde” – nomenclatura que cria a ideia equivocada de que seria possível gerar energia sem impacto ambiental.
Porém, isso não é verdade. A transformação da energia do sol e do vento em eletricidade depende de uma grande quantidade de minérios, cuja extração causa desestruturação social e degradação ambiental. No fim das contas, essa substituição tecnológica nos levaria a trocar a dependência de petróleo, gás e carvão por outro grupo de recursos não renováveis, os chamados minerais críticos.
Ainda segundo a AIE, um carro elétrico utiliza seis vezes mais minerais do que um carro convencional, e um parque eólico demanda nove vezes mais minerais do que uma termelétrica a gás. Esse aumento levaria a uma expansão inédita na extração dos minerais críticos. De acordo com a Universidade de Tecnologia de Sydney, (5) se fizéssemos a substituição de fontes de energia para atender à demanda de 2050, seria necessário ampliar a extração anual de lítio em 8.845%, e de cobalto, em 1.788%. As projeções também indicam que não haveria no mundo reservas de cobalto, lítio e níquel suficientes para garantir essa estratégia de transição.
No entanto, corporações mineradoras se utilizam do discurso da necessidade de minerais para legitimar suas atividades, independentemente dos impactos. Não por acaso, o Conselho Internacional de Mineração e Metais afirma que “as mudanças climáticas são, sem dúvida, o maior desafio ambiental que enfrentamos. […] O setor de mineração e metais tem também papel vital na garantia de uma transição suave para uma economia de baixo carbono”.” No Brasil, uma agenda positiva é essencial, especialmente após a crise de credibilidade que o setor vive em consequência dos desastres em Mariana (2015), Brumadinho (2019) e, mais recentemente, Maceió.
Uma transição energética restrita à mudança tecnológica está associada à proposta do chamado “extrativismo verde” ou “consenso da descarbonização”, (7) que seriam um desdobramento do período neoextrativista pelo qual passaram países da América Latina entre 2000 e 2012. Esses processos se assemelhariam pelo discurso da inevitabilidade, pela concentração de poder em atores não democráticos (corporações e agências multilaterais) e pela ampliação da fronteira extrativista para atender o mercado global.
Essa construção é estratégica para reduzir a resistência a novos projetos extrativos e a seus impactos. Por exemplo, a extração de lítio é economicamente viável para teores entre 0,5% e 2,5%; ou seja, para cada tonelada de lítio, são “deixadas para trás” entre 40 e 200 toneladas de resíduos. Não por acaso, de acordo com o Observatório dos Conflitos Mineração no Brasil, em 2020 foram identificadas 87 situações de conflito envolvendo a extração ou o beneficiamento de minérios vinculados à transição energética. Elas incluíam disputas fundiárias, questões de saúde dos trabalhadores e contaminação e escassez de água.
A perspectiva futura sugere desafios ainda maiores. A distribuição espacial do interesse por minerais críticos no país se manifesta em três vetores principais. Primeiramente, existe um arco que inclui norte e nordeste de Minas Gerais, oeste e norte da Bahia e sudeste do Piauí – áreas do Semiárido. Dado o elevado consumo hídrico dos projetos de mineração, existe potencial de conflitos por acesso a água. Um segundo destaque
corresponde ao norte de Goiás e ao sul do Tocantins, uma área de domínio do Cerrado que já sofre com altas taxas de desmatamento. Um terceiro eixo se estende pelo norte de Mato Grosso, sudeste e leste do Pará e leste do Amazonas.
A expansão da fronteira mineral na Amazônia tende a criar um paradoxo. A mineração de grande escala nesse bioma pode gerar um desmatamento até doze vezes maior do que a área da lavra (8). Se esses projetos forem levados adiante, o suprimento de minerais extraídos para garantir a transição energética justificaria o aumento do desmatamento da Amazônia, o que intensificaria a emissão de GEES.
Para evitar o canto da sereia da transição energética exclusivamente tecnológica, é preciso reconhecer que tal proposta não é capaz de evitar o colapso climático. Mais ainda, ela será responsável por transferir o ônus social e ambiental para pequenas comunidades rurais, que sofrerão os impactos da expansão da extração mineral.
O debate precisa ir além: a discussão sobre transição energética deve também incluir como diminuir a voracidade energética das elites urbanas. Ela igualmente deve se pautar por mudanças de caráter coletivo, como melhoria da mobilidade urbana, adequação dos padrões construtivos e urbanísticos para garantir conforto térmico, e mudanças no padrão de produção industrial, com aumento de eficiência energética e redução da obsolescência dos bens duráveis. Em vez disso, o que vemos é a defesa de ações individuais calcadas no aumento do consumo, como a aquisição de carros elétricos ou placas solares de uso domiciliar. Além disso, seria necessário repensar a globalização, baseada no transporte de matérias- primas, bens intermediários e produtos finais ao redor do mundo.
Portanto, a ideia de que “o mundo pode contar com o Brasil” (9) para centralizar a transição energética requer que se considere de qual concepção de transição está se falando, pois uma transição que aprofunde a desigual relação entre o Norte e o Sul globais, com base na ampliação da extração dos minerais críticos, tende a exacerbar contradições sociais e econômicas de uma estrutura sistêmica que nos levou à crise ambiental- climática atual. O debate precisa exigir a reconfiguração dos atuais padrões de produção e consumo, e mesmo questionar a definição de desenvolvimento.
*Bruno Milanez é professor da Faculdade de Engenharia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGEO-UFJF); e
Aline Araújo é aluna de mestrado no PPGEO-Uг. Um debate mais detalhado pode ser encontrado em Bruno Milanez, climática, extração de minerais críticos e seus efeitos para o Brasil, 2021 (Cadernos Diálogo dos Povos).
1 SEI, “Phasing down or phasing up? Top fossil fuel producers plan even more extraction despite climate promises: Production Gap Report 2023” [Reduzindo ou aumentando? Principais produtores de combustíveis fósseis planejam ainda mais extração, apesar das promessas climáticas: Relatório sobre a Lacuna de Produção 2023], Climate Analytics, E3G, IISD, Unep, 2023.
2 Sébastien Lumet, “Las dos geopolíticas de la energía. Entrevista a Helen Thompson”, Nueva Sociedad, jul.-ago. 2023.
3 AIE, “The role of critical minerals in clean energy transitions” [O papel de minerais críticos na transição para energia limpa], 2021.
4 Os minerais críticos são um grupo específico de minerais utilizados para equipamentos de alta tecnologia, especialmente para armazenamento e geração de energia de fontes eólica e solar, como cobalto, cobre, lítio, nióbio
e vanádio.
5 Elsa Dominish, Sven Teske e Nick Florin, “Responsible Minerals Sourcing for Renewable Energy” [Obtenção responsável de minerais para energia renovável], Relatório preparado para a Earthworks pelo Institute for Sustainable Futures, University of Technology Sydney, 2019.
6 ICMM, “Climate change: meeting a critical global challenge” [Mudança climática: enfrentando um desafio global crítico], 2017.
7 Breno Bringel e Maristella Svampa, “Del ‘Consenso de los Commodities’ al ‘Consenso de la Descarbonización”” [Do “Consenso das Commodities” para o “Consenso da Descarbonização”], Nueva Sociedad, jul.-ago. 2023.
8 Laura J. Sonter et al., “Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon”, Nature Communications, 8, 1013, 2017.
9 Título do painel sobre transição energética organizado pelo BNDES na COP
28, que contou com a participação do presidente o Instituto Bra Mineração e da CEO da mineradora Sigma Lithium.
Fontes: