Uma crise financeira no horizonte?
O economista Philip Pilkington, numa análise perspicaz, expõe um cenário crítico que poderá fermentar nas entranhas do sistema financeiro global dominado pela hegemonia do dólar: a possibilidade de uma crise fiscal nos EUA desencadeada pela diminuição das compras de títulos do Tesouro pela China.
A chave para compreender esta situação reside na balança de pagamentos. Os Estados Unidos, com um défice comercial crônico, precisam de atrair investimento estrangeiro para o compensar. Tradicionalmente, este investimento ocorria sob a forma de compras de obrigações do Tesouro, principalmente pela China e outros países que procuravam apoiar a economia dos EUA, garantindo assim a compra das suas exportações.
Contudo, o panorama mudou. Em 2023, a emissão líquida de títulos do tesouro atingiu 821 bilhões de dólares e a maior parte destas obrigações não foi comprada por governos ou bancos centrais, mas por investidores privados estrangeiros. Estes investidores, atraídos pelas elevadas taxas de juro atuais, encaram as obrigações do Tesouro como um investimento atrativo. Mas, alerta Pilkington, esta “festa” pode terminar abruptamente.
A lógica é simples: se as taxas de juro caírem, como geralmente acontece em uma recessão, estes investidores poderiam abandonar as suas obrigações do Tesouro, procurando retornos mais elevados em outros ativos. Isto deixaria os Estados Unidos numa situação crítica: sem o fluxo de capital estrangeiro, seriam forçados a emitir ainda mais dívida para cobrir o défice, agravando a situação e conduzindo potencialmente a uma crise financeira.
Pilkington aponta para um fator crucial que está intensificando este risco: a crescente aliança estratégica entre Rússia e China, que procura desafiar a hegemonia do dólar e construir uma ordem mundial multipolar e pluricêntrica. Esta aliança, segundo Pilkington, poderá impulsionar o declínio da procura de títulos do Tesouro, à medida que a China, consciente da sua posição como credora, reorienta os seus investimentos para o ouro.
Durante o primeiro trimestre de 2024, a China liquidou uma quantidade sem precedentes de títulos do Tesouro e de agências dos EUA, ao mesmo tempo que aumentou os seus investimentos em ouro.
De acordo com um Relatório Bloomberg, a China vendeu títulos do Tesouro por um total de 53,3 bilhões de dólares no primeiro trimestre do ano. Além disso, a Bélgica, que é conhecida por guardar uma parte das reservas chinesas, reduziu as suas participações em 22 bilhões de dólares no mesmo período, segundo dados do Departamento do Tesouro dos EUA.
O economista critica a cegueira dos líderes ocidentais, que ainda parecem acreditar que controlam a situação. A negação da realidade é absoluta. A narrativa mediática, diz ele, ignora os riscos que se avizinham, enquanto os líderes ocidentais mantêm uma postura de superioridade, incongruente com a crescente fragilidade do sistema financeiro global.
Pilkington não hesita em salientar que a hegemonia do dólar, sustentada durante décadas pelo poder econômico dos Estados Unidos, pode estar chegando ao fim. Embora seja difícil prever com precisão as consequências, a possibilidade de um ajustamento acentuado nos padrões de vida americanos, como resultado da fuga de capitais, é um cenário que não pode ser descartado.
“Um modelo simples sugere que os padrões de vida americanos são cerca de 27% demasiado elevados em relação ao seu défice comercial”, acrescenta.
A estratégia dos Estados Unidos de utilizar o dólar como instrumento de pressão e coerção voltou-se contra eles, causando uma crise sem precedentes. Isto, por sua vez, levou a um debate crucial no Sul Global em que se procuram alternativas ao domínio do dólar, ganhando impulso na criação de sistemas de pagamentos multilaterais e na diversificação das reservas cambiais para ativos reais, tais como fontes de energia e ouro.
Embora o caminho para a construção de uma ordem financeira multipolar ainda seja incerto, a desconfiança global em relação ao dólar abriu uma janela de oportunidade para isso.
Publicado em 22/05/2024 em Comunidad Saker Latinoamérica.