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Reflexões para Teoria do Estado Nacional: prolegômenos à proposta

Data da publicação: 09/11/2022

 

No artigo anterior, fizemos rápido histórico e crítica sobre como se encontra o Estado, no Brasil, neste século 21. Não há interesse em ressuscitar nem mesmo os melhores momentos de afirmação nacional. No entanto, com suporte na formação e cultura do povo brasileiro, nas conquistas humanitárias do presente, nas tecnologias e no estado da arte das ciências política e jurídica, colocar-se-á em debate um projeto de Estado Nacional Brasileiro.

O Estado tem na Constituição a expressão de seus propósitos e o arcabouço de sua organização. Portanto, há que se discutir esta Constituição. E, contrariamente ao que difundem os interesses neoliberais e globalizantes, a Constituição, melhor se dirá, as Constituições são sempre nacionais. Isto é, por mais abrangente que sejam seus valores e princípios, eles se adequam à realidade sociocultural da nação, há, necessariamente, a “redução sociológica”, expressão (e título de livro) do grande sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos.

No processo de mudança dos governos militares para a “redemocratização” do Brasil, o jurista Osny Duarte Pereira (Nova República: Constituição Nova, Philobiblion, RJ, 1985) chama atenção para a invocação a Deus nos preâmbulos das Constituições. E afirma: “A Constituição do Vaticano não refere o nome de Deus”; ao que propõe o jurista “a fórmula de 1891”, “neutra e leiga”, ser adotada na Constituição que virá, a de 1988.

A Constituição da República Popular da China (RPCh) tem no Preâmbulo o enaltecimento da milenar história do povo chinês. Osny Duarte Pereira, ainda nas reflexões sobre o Preâmbulo da Constituição, propõe a simplificação do próprio nome: República do Brasil, pois “não desmerecerá o nosso regime e dará apreciável economia no desenho dos símbolos, no papel, nos selos, moedas e documentos oficiais, onde figure o nome do País”.

No profundo e abrangente Direito Constitucional e Teoria da Constituição, José Joaquim Gomes Canotilho (Almedina, Coimbra, sete edições, 11 reimpressões, de 1997 a 2003) chama atenção para os “vários constitucionalismos”, que no fundo tratam da “teoria normativa da política” e, como tal, do poder.

Todo o poder emana do povo, parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal de 5/10/1988. Quem é este povo que legitima o poder? Como o faz? É um povo ativo? Ou será um símbolo? Imagem de soberania inexistente? Ou uma das máscaras que outro poder adota?

A proposta de um Estado não pode deixar aberta, sem a fundamentação de quem é responsável e beneficiário de suas ações. Assim, voltamos à especificidade do Estado. Ele é Nacional no sentido que abriga uma identidade cultural, pessoas que se identificam como brasileiras, o que neste momento globalizante, neoliberal, apátrida, nem sempre é nítido, e em algumas, porém poucas, vezes é escamoteada, até desconsiderada do sentimento de brasilidade.

Quem forma e dirige o Estado? Em inúmeros especialistas, intelectuais, a ideia que está inserida em quase todos os projetos, é que o povo estrutura e dirige o Estado. Porém o modo de operacionalizar este poder, esta capacidade, constitui a grande dificuldade, a porta das mazelas que nos afligem e a muitos Estados que se pretendam nacionais e populares. Como fazer o povo, efetivamente, ser o dirigente supremo do Estado Nacional?

Nestas considerações preliminares vamos apresentar e comentar exemplos e ideias que estão em cogitação nas academias, nos estudiosos, na inteligência do século 21.

Há sempre os reacionários, aqueles que pelo mesquinho interesse pessoal ou de grupo, aqueles que não querem deixar o poder ou a fatia deste, que dispõem ou pensam dispor. Mas quase sempre não têm a honestidade de defender sua parte no poder, inventam inimigos, criam fantasmas e fantasias, algumas até sepultadas pela história, para se manter dirigente.

Veja o exemplo do general gaúcho Hamilton Mourão, atual senador eleito, que considera (?) ser o grande inimigo do Brasil o comunismo. Que comunismo, general? Onde está seu perigo? Quem o representa no Brasil dos anos 2000? Fica-lhe, apenas, o ridículo da expressão sem materialidade, de acusação despropositada, mais grotesca do que a de judeu, na Alemanha nazista de um século, ou de herege, de 500 anos atrás na península ibérica.

 
Participação popular em todos os níveis decisórios

O que traria o povo ao poder é sua participação direta nas decisões. Mas há diversos níveis de decisão, como há o controle das decisões, sua adequação, eficácia e correção.

Por conseguinte, já se coloca um pressuposto estrutural para o estado: se organizar de tal modo, com tal metodologia, que permita a participação popular em todos os níveis decisórios, para toda e qualquer decisão, com a capacidade de auditá-la.

Já sabemos, no entanto, que as respostas são exclusivas, próprias de cada região, de cada cultura. O erudito historiador francês Numa Denis Fustel de Coulanges, em sua mais conhecida obra, La Cité Antique Étude sur le cult, le droit, les instituitions de la Grece et de Rome (1864), demonstra – pois para ele a história é uma ciência como a física e a geologia – que entre os tártaros, os germanos, os gregos e os romanos, as compreensões mais basilares como da vida e da morte, da produção alimentar, da propriedade do solo, diferiam radicalmente.

Claude Lévi Strauss, Anthropologie struturale, 1958 (tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires para Tempo Brasileiro, RJ, 1967), escreve: “As pesquisas de estrutura não reivindicam um domínio próprio, entre os fatos de sociedade; constituem antes um método suscetível de ser aplicado a diversos problemas etnológicos e têm parentesco com formas de análise estrutural usadas em diferentes domínios.”

E Lévi Strauss, citando John von Neumann e Oskar Morgenstern, 1944 (Theory of Games and Economic Behavior): modelos são construções teóricas que supõem definição precisa, exaustiva, e não demasiado complicada: devem ser também parecidos com a realidade sob todas as relações que importam à pesquisa em curso. Para recapitular: a definição deve ser precisa e exaustiva para possibilitar um tratamento matemático. “A semelhança com a realidade é requerida para que o funcionamento do modelo seja significativo.”

O administrador, ex-ministro de dois presidentes, autor do Plano Básico de Organização da Petrobras (1953), Hélio Marcos Pena Beltrão, estabelecia que as decisões deveriam estar tão próximas quanto possível da sua aplicação e que deveriam atingir primeiramente aqueles que as tomavam.

A respeito da sempre arguida capacidade decisória popular, citamos novamente o antropólogo Claude Lévi-Strauss, estudioso das Américas e do Brasil: “Os selvagens não pensam pior ou menos abstratamente, mas o fazem usando situações e coisas concretas como operadores. Operam com categorias empíricas onde o pensamento científico opera com conceitos (La Pensée Sauvage, 1962, tradução livre).

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) computa 5.568 municípios propriamente ditos, acrescentando Brasília (como cidade coextensiva ao Distrito Federal) e o Distrito Estadual de Fernando de Noronha (Pernambuco) para totalizar 5570 municípios, “de fato e municípios-equivalentes”.

Estes municípios são bastante diversificados em extensão territorial, população e renda. O IBGE informa a existência de 10.496 distritos municipais e 683 subdistritos ou regiões administrativas municipais, ou seja, 11.179 distritos, igualmente bastantes diversificados. Com 215 milhões de habitantes no País, haveria em torno de 19 mil habitantes, na média, para os distritos.

Quanto à extensão territorial, os 8.516.000km² corresponderiam a cerca de 760km², por distrito. Mas estes valores – 760km² e 19 mil habitantes – certamente não serão encontrados em um único distrito, servem como referência.

O que constituí a primeira tarefa de ação popular é criar o grupo provisório para as decisões fundamentais a respeito da organização do Estado Nacional e levar suas conclusões para o mais amplo debate, por todos os distritos, escolas, estabelecimentos públicos, organizações por todo o País, e submeter a plebiscito as conclusões.

 
Os objetivos permanentes

Outra questão é a própria definição de Estado, ou seja, para que objetivo ou objetivos se constitui um Estado Nacional. Há objetivos permanentes para os quais o Estado se dedique?

Em artigo publicado no Monitor Mercantil (27/5/2010), o professor Marcos Coimbra, ex-chefe da Divisão de Assuntos Econômicos da Escola Superior de Guerra (ESG), conselheiro titular do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), os enuncia: “Democracia, Paz Social, Progresso, Soberania, Integração Nacional e Integridade do Patrimônio Nacional”. E lamenta aquele economista e escritor que o País tenha se afastado destes objetivos, que constam do Manual da ESG, neste iniciante século.

Porém, em análise à luz das mudanças políticas e tecnológicas neste novo milênio, podemos considerar que os objetivos enunciados podem ser sintetizados em apenas dois, que dizem respeito ao Estado e apenas a ele: Soberania e Cidadania.

Soberania deve ser entendida como a defesa do poder decisório, autônomo do Estado Nacional, e todos os recursos necessários para seu exercício, além do espaço da aplicação: progresso, integração nacional, integridade do território, capacitação científica e tecnológica.

Os limites da soberania vêm sendo alterados por tecnologias e atividades, adotadas individualmente por outros Estados e grupos de pessoas. Apenas dois exemplos: a alavancagem financeira, aplicada por bancos e instituições de captação e utilização de recursos monetários, já levou à imensa dívida que autoridades monetárias internacionais estimam estar na ordem de centenas de trilhões de dólares estadunidenses.

Ora, esta situação coloca em risco não apenas as economias nacionais, mas, igualmente, uma expressão de soberania que é o controle da moeda do país. Um segundo é o controle do espaço cósmico, de satélites fora da órbita da terra, capazes de alterar clima e condições de vida no planeta.

As respostas para estas questões da soberania, no mundo termonuclear, cibernético, informatizado, podemos encontrar no pensador alemão, da passagem do século 18 para o 19, que buscou um todo holístico, o conteúdo de todos os conceitos, Johann Gottlieb Fichte.

Fichte entendia que as pessoas, livremente, celebravam um contrato de proteção com os Estados. Assim, suas futuras ações estariam determinadas pela relação jurídica, pela lei do direito entre as partes. Logo que uma das partes ultrapassasse, por mínimo que fosse, os limites estabelecidos, o contrato fica anulado e toda relação jurídica por ele fundada. Porém este contrato seria indispensável à vida em sociedade.

Do nacionalista Fichte, transcrevemos, do Fundamento do Direito Natural Segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, 1796 (tradução do original alemão por José Lamego para Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012), as consequências para os Estados destas mesmas condições:

“Vários Estados unem-se e garantem uns aos outros, e mesmo a qualquer Estado que não faz parte da aliança, a sua independência e a inviolabilidade. Chamo a isso a fórmula de uma confederação. Esta seria: todos nós prometemos exterminar, com base na união de nossas forças, o Estado, mesmo que faça parte da confederação, que não reconheça a independência de um de nós ou venha a romper o contrato existente entre ele e um de nós.”

A diferença entre o indivíduo e o Estado é que este último não poderia ser coagido a entrar numa confederação.

Cidadania é o processo permanente de garantia à existência e à consciência do povo brasileiro, à defesa de seus direitos, como paz social, e à possibilidade de se expressar e encontrar respostas para todas as questões que coloque, o que denominamos vocalização.

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

Fonte: Monitor Mercantil

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