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Estrella: projeto Serra entrega o filé mignon

Data da publicação: 22/07/2016

Na segunda parte de seu depoimento ao 247, o diretor aposentado da Petrobras, Guilherme Estrela, recorda o papel de Lula na criação de regras do pré-sal, inclusive a condição da Petrobras como sua operadora única, centro dos questionamentos ao  projeto de José Serra, em tramitação no Congresso. Líder da equipe que encontrou o pré-sal, Estrella diz que é justamente a posição de operadora única que pode garantir que a Petrobras se transforme numa das principais produtoras mundiais de petróleo.

247 – Nós sabemos que entre  2007 e 2010, quando o governo Lula criou e depois conseguiu aprovar as regras do pré-sal no Congresso, o bicho pegou justamente na hora em que se garantiu a condição da Petrobras como operadora única, com participação obrigatória mínima de 30%. É  justamente este ponto que o projeto de José Serra pretende modificar. Qual a importância dessa decisão?  

GUILHERME ESTRELLA – Para entender: é o operador que decide a tecnologia de construção de poços e de produção de óleo e gás. Este trabalho oferece uma extraordinária oportunidade de pesquisa e desenvolvimento para todo tipo de inovações tecnológicas e operacionais. O pré-sal brasileiro encontra-se a mais de 2000 metros de profundidade de mar. É a última fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão. Ela define a engenharia de projetos e de operação dos grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte até as unidades flutuantes, navios ou plataformas. São dimensões de amplo espectro, que representam o grande saldo de conhecimento para o futuro, para os novos mercados e novas oportunidades.

247 – Como se tomou a decisão de garantir a Petrobras como operadora única?

ESTRELLA – O governo sofreu pressões de todos os lados. Na própria Petrobras, um grande contingente de técnicos não conseguia vislumbrar a extraordinária oportunidade para o desenvolvimento nacional que a condição de operadora única representa. Havia a mesma dúvida em diversos níveis do governo federal. E é claro que já ocorriam pressões diretas das partes interessadas em mudar as regras a seu favor. Isso explica o email de agosto de 2009, quando a gerente no Brasil de uma petrolífera norte-americana, escreveu a seus superiores nos EUA. Alertava que o pré-sal era uma grande ameaça aos interesses das empresas norte-americanas mas chamava a atenção para o fato de que se o candidato a presidente José Serra vencesse as eleições em 2010, aquele marco seria revogado. Convém lembrar que não foi a única manifestação neste sentido. Naquela época, recebi a visita de um cônsul dos Estados Unidos, em meu gabinete, falando do interesse de empresas de seu país em participar do pré-sal. Ouvi um mesmo apelo de um executivo que visitei a trabalho no Texas.

247 – O que aconteceu de lá para cá?

ESTRELLA – Até aqui soubemos resistir a todas as pressões. Tanto a postura do presidente Lula, como a votação do Congresso, que aprovou a legislação adequada, garantiram à Petrobras as condições de realizar um processo de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, autônomo, em benefício da sociedade, da população e de empresas genuinamente brasileiras. Em cada área de competência, todos tiveram a oportunidade de se mostrar capazes em escala mundial. A prova está na produção. Num prazo relativamente curto, em junho  a produção do pré-sal brasileiro fechou em 1,2 milhão de barris por dia, número recorde, que já representa quase metade da produção total do país.

247 – Ao lado do então presidente da Petrobras, Sergio Gabrielli, o senhor participou de discussões com o presidente Lula, em 2007, quando se confirmou a existência do pré-sal.  Como foi?

ESTRELLA – É preciso lembrar o que estava acontecendo no mercado mundial de petróleo naquele momento para se ter uma ideia da importância da discussão que fazíamos em Brasília. O Iraque havia sido invadido, ocupado e destruído. A causa, como o planeta inteiro sabia, era a crescente dependência energética da Europa do petróleo e gás da Rússia, e dos Estados Unidos em relação ao Oriente Médio. Neste cenário energético desesperador para as nações hegemônicas ocidentais, obrigadas a mobilizar a OTAN e a realizar uma guerra, o Brasil aparece do outro lado do Atlântico, tirando da cartola a maior província petrolífera descoberta em 50 anos em todo o planeta. Pode-se imaginar o tipo de pressão que passamos a receber.

247 – Quais pressões foram essas?

ESTRELLA – Por suas características, a descoberta do pré-sal exigia uma mudança no sistema de exploração em vigor no país até então. O velho sistema de concessão precisava ser substituído pelo sistema de partilha, caso contrário o Brasil deixaria de receber os maiores benefícios da descoberta que acabava de ser feita.

247 – O que precisava mudar?

ESTRELLA – Sabemos que o regime de concessão só é conveniente em situações de risco, onde quem procura petróleo não pode saber o que vai encontrar após a perfuração. Em compensação, quando encontra o que procura, as regras lhe garantem a propriedade integral da área. Mas estava claro, na primeira exposição feita ao presidente, com base numa área chamada de “Picanha Azul”, porque tinha a forma de carne para churrasco, que não havia risco algum. Era um caso de risco exploratório zero. Neste caso, de risco zero, o regime de concessão deixava de ser interessante. Também precisávamos garantir que a Petrobras se tornasse a operadora única do pré-sal, em função dos benefícios envolvidos. Não eram, no entanto, decisões politicamente simples nem fáceis.

247 – Por que?

ESTRELLA – A simples perspectiva de que estávamos a tratar de uma província petrolífera imensa, em termos mundiais, não era aceita por todos, mesmo na Petrobras. Havia o receio de que, com todas as limitações que o conhecimento da geologia apresenta – lida-se com dados indiretos, que devem ser interpretados – poderia ser muito arriscado para o governo tomar decisões desse porte. Além disso, queríamos fazer uma mudança de legislação que equivale a retirar a propriedade de grandes reservas técnicas das grandes empresas privadas
internacionais, que são, mundo afora, as responsáveis técnicas por se apropriarem de reservas de petróleo e gás natural para abastecer seus países sede e lhes garantirem, estrategicamente, segurança energética nacional.

247 – Qual foi a reação a isso?

ESTRELLA – Estamos falando de uma mudança de enorme significado geopolítico, de abrangência mundial. Quando a descoberta do pré-sal brasileiro foi tornada pública, em meados de 2007, a quarta frota da Marinha de guerra norte-americana foi reativada para atuar no Atlântico Sul, num sinal contundente de que a nação hegemônica ocidental havia inserido o Brasil e sua gigantesca descoberta entre seus interesses estratégicos.

BRASIL 247 – O que se passou a seguir?

ESTRELLA – Lula estava decidido a retirar a Picanha Azul da 9ª rodada de licitações da ANP, marcada para o segundo semestre. Era necessário retirar os 41 blocos de uma licitação cuja abrangência já era formalmente conhecida, pelo edital já publicado. Apesar da posição do presidente, havia resistências internas. O argumento é que aquilo poderia ser interpretado como uma “quebra de regras já estabelecidas com o setor petrolífero mundial” e que poderia haver “retaliações” por parte das empresas petroleiras estrangeiras no sentido de não mais investir no Brasil. Era este o debate. Em nada muito diferente daquilo que vemos hoje, como sabemos.

247 – O que Lula fez?

ESTRELLA – Nós, geólogos, engenheiros, pesquisadores, antevíamos a possibilidade do pré-sal ser a viga mestra da energia necessária para o desenvolvimento do país. Era o que conseguíamos enxergar. O Lula, num estalo, bolou o fundo social a ser abastecido com abundantes recursos financeiros para saúde, educação, emprego e moradia, sem falar em ciência e tecnologia.

247 – Como o senhor entende o projeto elaborado pelo Serra?

ESTRELLA – Ele retira da Petrobras a responsabilidade de atuar como operadora única do pré-sal brasileiro. Cria o “direito de escolha”, outorgando a empresa a decisão de participar ou não dos consórcios formados nos leilões da ANP para disputar os blocos do pré sal.

247 – O que isso significa?

ESTRELLA – O projeto fere a essência do marco regulatório na medida em que o abrangente leque de oportunidades de pesquisa e desenvolvimento pode ser transferido para outra empresa, certamente estrangeira, pois não há empresa de capital nacional com porte e capacitação para a atividade. O que se quer é mudar uma situação que vai selar a Petrobras como a mais competitiva e competente empresa petrolífera do planeta.

247 – A importância do pré-sal é tão grande assim?

ESTRELLA – Estamos falando do filé mignon da indústria de petróleo mundial. Tanto é assim que, com base nos resultados obtidos pela Petrobras no Brasil, a Exxon norte-americana conseguiu um acordo para se tornar operadora única do pré-sal em Angola. Ninguém vai dizer que a regra que vale para a Exxon não é boa para a Petrobrás, certo?

247 – Do ponto específico do Brasil, qual a desvantagem em deixar de ser operadora única?

ESTRELLA  – Na prática, significa renunciar a uma oportunidade – quem sabe única – de desenvolvimento tecnológico industrial sustentado.

247 – Um dos mistérios do pré-sal consiste em saber o que aconteceu com a Shell: como é que um dos gigantes privados do petróleo mundial, que chegou tão perto do pré-sal, perdeu uma oportunidade dessas?

ESTRELLA –  Realmente a empresa anglo-holandesa operou um bloco exploratório sob o regime de concessão, na mesma área onde mais tarde a Petrobras descobriu o campo de Libra. A diferença estava no conhecimento que a empresa possuía sobre a área. Ela tinha como objetivo fazer pesquisas nos reservatórios acima da camada de sal, que na bacia de campos são os principais produtores. Ao atravessar essa seção geológica, decidiu interromper a perfuração, dar o bloco como testado e devolver a área a ANP.

247 – Como isso foi possível?

ESTRELLA – Minha interpretação pessoal é que ocorreram dois fatores. Ao contrário da Petrobras, a Shell desconhecia as reais possibilidades daquele “sistema petrolífero” que produziu praticamente todo o petróleo e gás natural descoberto na extensa costa brasileira, em particular na bacia de Campos, até então a maior produtora. Também deve ter considerado os altos custos de prosseguir a perfuração. Sem poder avaliar o enorme potencial que poderia ser encontrado imediatamente abaixo de uma espessa camada de sal, decidiu não testá-lo.

247 – Pode-se concluir alguma coisa desse episódio?

ESTRELLA – É possível fazer várias reflexões. A primeira é lembrar que a atividade de explorar e produzir petróleo não é um negócio para banqueiros. Envolve grandes investimentos, alto risco e a possibilidade de grandes perdas. Quem for fazer cálculos na ponta do lápis irá concluir que é mais garantido investir na poupança da Caixa Econômica, em troca daquela modesta remuneração mensal. Um poço exploratório de petróleo em alto mar não custa menos de US$ 50 milhões. As chances de sucesso, na média mundial, são de uma descoberta em cada dez tentativas. É quase uma aventura, o que reforça a necessidade de investir em pesquisas, que permitem ter um conhecimento científico real, apoiado em realidades concretas. Essa foi outra diferença entre a Petrobras e as demais empresas. Nossas pesquisas sempre nos colocaram à frente em matéria de conhecimento em águas brasileiras. Os críticos podem não aceitar, mas o pré-sal confirma isso.

Publicado em 01/08/2016 em Clube de Engenharia.

FONTE: Brasil 247