Um debate na TV Câmara entre os deputados Ivan Valente, do PSOL de São Paulo, e Mario Heringer, do PDT de Minas, forneceu informações e argumentos que deveriam estar em pauta não na TV, mas no plenário e nas comissões da própria Câmara dos Deputados e também do Senado, assim como em vários setores do próprio governo: informações e argumentos sobre a verdadeira chantagem dos planos de saúde no Brasil.
O programa da TV deve ter sido provocado pela recente quebra da Unimed da capital de São Paulo, que deixou inteiramente desprovidas de socorro médico cerca de 700 mil pessoas, e pelos sinais de quebra iminente da Unimed do Rio. Mesmo que a quebra de São Paulo não tivesse ocorrido e que a possível ou previsível quebra no Rio estivesse fora de qualquer cogitação, esse debate era necessário já há muito tempo.
Os planos contam com cerca de 50 milhões de associados, a quarta parte da população do país, e mais de 80% de seus clientes, ou seja, 40 milhões de pessoas, têm queixas que os deixam muito mal, sobretudo a demora de marcar consultas e exames, consultas que não duram mais de cinco minutos e a recusa de tratamentos e cirurgias recomendados pelos médicos. Já há algum tempo os planos recusavam clientes idosos e agora recusam clientes individuais, exigindo filiações em grupo, preferencialmente de empregados de alguma empresa. Com a recessão a que estamos condenados pelo menos até 2017, a pessoa que perde o emprego perde também o plano e não consegue filiar-se a outro.
Anos atrás, quando a famosa Golden Cross entrou em crise e quebrou, o noticiário revelava que ela comprara um caríssimo jato executivo para servir de UTI aérea, mas o jato, na prática, servia mais para as viagens de fim de semana dos executivos da empresa a lugares como Fernando de Noronha. Ainda agora, a Unimed do Rio financia todo o time de futebol do Fluminense, o que teria sentido se ela precisasse de propaganda para atrair novos clientes; não, porém, numa fase em que nem sequer aceita os que a procuram espontaneamente para contratos individuais.
Em muitos casos, clientes que pagam seus planos têm de ser atendidos em hospitais e outras unidades do SUS, o que deveria ser ressarcido ao governo. Mas não é. Os planos, tão implacáveis com a menor inadimplência dos clientes, devem bilhões ao governo e não pagam.
Para contestar a afirmação neoliberal de que o Estado é sempre mau patrão e a privatização é sempre um sucesso, peço licença para citar um exemplo na área da saúde. Não o de Cuba, embora seja indiscutível que o sistema de saúde cubano é dos melhores do mundo e reduziu a mortalidade infantil no país a níveis comparáveis aos da Noruega e muito melhores que os dos Estados Unidos. Não o de Cuba, mas o da Inglaterra capitalista e neoliberal.
Na época em que nossa Constituinte discutia, entre outros, o problema da saúde, esteve no Brasil o então Primeiro-Ministro socialista da Espanha Felipe Gonzalez, que contou a um grupo de jornalistas (do qual eu fazia parte) uma conversa que tivera com a poderosa Margaret Thatcher, Primeira-Ministra da Inglaterra. Apesar de terem convicções radicalmente opostas, Felipe conseguiu conviver amistosamente com a ultraconservadora Thatcher nas reuniões periódicas da OTAN a que ambos tinham de comparecer, e chegou a permitir-se algumas provocações. Numa delas, desafiou:
– Margaret, você chegou ao governo decidida a privatizar tudo, mas não privatizou a medicina socializada pelos trabalhistas.
A Sra.Thatcher respondeu:
– Felipe, no dia em que assumi o governo, chamei meu Ministro da Saúde e pedi a ele que em trinta dias me apresentasse um plano para privatizar o Serviço Nacional de Saúde. Em uma semana ele me procurou e disse: “Olhe, não conseguiremos inventar nada que funcione tão bem quanto o Serviço.” Pensei bem e resolvi não privatizar a medicina socializada, porque a oposição trabalhista não iria cobrá-la, nós do governo ficaríamos quietos e ninguém reclamaria.
Claro que a oposição trabalhista não reclamou, os anos se passaram – (Thatcher chegara ao poder em 1979) – governos se sucederam e o Serviço Nacional de Saúde continua lá, convivendo com a medicina privada à disposição dos que podem pagar por ela. Meses atrás, na eleição que reconduziu o conservador David Cameron ao governo, a possível extinção desse Serviço não foi sequer discutida, até porque nem aos eleitores do Partido Conservador essa privatização interessaria.
No Brasil talvez não se possa, em nossos dias, propor uma socialização da medicina à moda inglesa. Nosso governo, embora oriúndo do PT, parece ter horror à estatização, mesmo quando necessária, e pratica apenas a privatização, como os leilões de áreas petrolíferas da ANP e a anunciada venda de ativos da Petrobrás.
Mas não seria o caso de o governo pensar, pelo menos, em concorrer com os planos de saúde? Talvez com um plano do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica, que pague decentemente a seus médicos e trate os clientes com mais respeito? Os planos, mesmo se menos obcecados por lucros e dividendos, podem ser lucrativos, e os do Brasil o foram até cederem a tentações como comprar jatos executivos para fins de semana no paraíso de Fernando de Noronha.