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Alegações fantásticas: entre a ficção e a convicção (e as provas?)

Data da publicação: 16/06/2017

Fantásticas, em muitos sentidos, as “Alegações” noticiadas e reproduzidas em bombásticas manchetes: “MPF pede condenação de Lula e multa de R$ 87 milhões”.

Lembre-se que se trata de processo notavelmente midiático, em juízo de discutível competência absoluta, onde se misturam, em fantástica simbiose, roteiros e atores (processuais e globais, acusadores e julgadores, políticos, editorialistas e comentaristas de todos os tipos), excepcionalidades, misteriosos e oportunos vazamentos de “sigilosos” documentos, além de inúmeras peripécias de fazerem inveja aos melhores ficcionistas da literatura.

Nesse contexto, as “Alegações” aparecem na sequência lógica de anunciado roteiro de ficção e proclamadas convicções – lembre-se um famoso “power point” e incontáveis declarações e publicações no mesmo sentido. Deixam muito a desejar, porém, quanto ao devido exame do direito e dos fatos.

Diante de sua fantástica extensão (334 páginas), tais “Alegações”, de fastidiosa leitura, sacrificam o leitor e a dificultam a defesa.

Quanto ao juiz, o acusador não terá que se preocupar, se ele já tiver se revelado, no processo ou fora dele, alguém “condenado a condenar”, sob o estímulo da “vox populi”, mídia, “apoiadores” e áulicos; ou se for dos que se apresentam circulando e sendo louvados com entusiasmo entre os maiores interessados na destruição politica e pessoal do réu. Ou, ainda, daqueles que nada opõem à difusão da falsa idéia de que o processo é uma cruzada do bem contra o mal, sendo o julgador a personificação do primeiro e o réu o demônio a ser esmagado. A sentença de tal julgador – se existisse – não causaria surpresa. E não lhe faltariam aplausos.

Contudo, a prolixidade esconde o nada jurídico. Sabe disso qualquer bom estudante do Direito. E o bom professor facilmente percebe que a falta de substancial e pertinente fundamentação não é suprida pelo artifício do “recorta e cola”, com que se foge das questões e são feitas – sob a falsa aparência de erudição – genéricas citações, de pouca ou nenhuma pertinência ao caso.

Peculiares, nesse aspecto, “Alegações” onde não se encontra concreta, individual e especificamente enunciada e comprovada a acusação. Para quem procura nelas o único conteúdo juridicamente relevante – fatos e provas lógica e juridicamente estruturados em indispensável e válida fundamentação -, o resultado é frustrante.

Seguindo o roteiro de uma denúncia inepta e de um notório e constrangedor “power point”, investem elas contra um “exemplar e poderoso culpado” a ser exibido no desfile dos vencidos na “cruzada contra a corrupção”. Onde foram considerados os princípios da presunção da inocência, do contraditório e da ampla defesa?

Explícitas normas legais parecem igualmente esquecidas: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer” (Art.156 do CPP); “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação (…)”(Art. 155 do CPP).

Encontra-se porém nas “Alegações” a colagem de abstratas citações doutrinárias e jurisprudenciais, extraídas em quantidade e sem melhor exame até de sistemas jurídicos alheios ao brasileiro (por exemplo, alusivos a crimes complexos, técnicas de análise de evidências, “standards” de prova etc…).

Socorrem-se também as “Alegações” de esotéricas teorias de diversas origens (inclusive alienígenas) que um de seus subscritores, “modéstia às favas”, propaga (do “probabilismo, na vertente do bayesianismo” e do “explacionismo”), onde o caso concreto e suas peculiaridades não se ajustam.

Tais “pressupostos teóricos” e considerações genéricas, todavia, nada têm a ver com fatos e provas que deveriam estar especificamente individualizados em relação às acusações lançadas contra o ex-Presidente da República e não suprem sua ausência. Tanto é assim, que as “Alegações” chegam ao cúmulo de invocar, em reforço de argumentação e como se fosse pertinente, um caso de estupro (!) (pag. 53).

Aliás, o caráter abstrato daqueles “pressupostos” é reconhecido nas próprias “Alegações”, quando afirmam ter apoio em teorias adotadas em obra de autoria exatamente de quem as subscreve em primeiro lugar (v. pag. 52, nota de rodapé no. 1). A propósito, são inúmeras as vezes em que o mencionado subscritor das “Alegações” invoca como fundamentos das mesmas a “autoridade doutrinária” que a si próprio atribui. Pouco elogiável, porém, é pretender valer-se de si mesmo como fundamento suficiente para condenação de alguém na ausência de provas.

Inaceitável também é livrar-se o Ministério Público do ônus da prova, alegando que “os crimes perpetrados” “são de difícil prova” e “a solução mais razoável é reconhecer a dificuldade probatória” (pág. 53). Ora, se é difícil a prova, caberia ao acusador buscá-la, se existisse. Nunca, porém, inverter o ônus que é seu, como se ao acusado coubesse provar o oposto do que desconhece.

As “Alegações” traduzem, desse modo, confissão implícita da ausência de provas verdadeiras e válidas. Quem tem fatos e provas não precisa de teorias.

Dispensáveis, a prolixidade e as generalidades presentes nas “Alegações”. Não precisavam ir tão longe. Sem perderem de vista a definição constitucional do Ministério Público como instituição defensora da ordem jurídica e dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (Art. 127 da CF), não poderiam ter esquecido o que diz o art. 239 do CPP: Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”

Portanto, o conceito de evidências – que as “Alegações” invocam no direito estrangeiro – em nada se confunde com o de indícios definidos no art. 239 do CPP. Para o Direito brasileiro, “circunstância” não é sinônimo de “indício”. São conceitos distintos. Para que algo seja válido como “indício” é indispensável que preencha as condições legalmente fixadas. Por isso, não é cabível – como se faz nas “Alegações” – valer-se de um amontoado de circunstâncias e teorias, bem como de confusões conceituais, para daí afirmar-se a ocorrência de um conjunto de indícios que seriam o fundamento do que chamam de “juízo de convicção” .

Para cumprirem a lei, as “Alegações” deveriam ter indicado, quanto ao ex-Presidente da República, concreta, individualizada e especificamente: 1) fato criminoso específica e individualizadamente a ele atribuível (tal como descrito no tipo penal), com todas as circunstâncias de tempo, lugar e modo; 2) circunstâncias conhecidas e provadas; 3) as relações entre tais circunstâncias e o fato delituoso; 3) a natureza de tais relações (de causalidade ou de consequência) com o fato delituoso; 4) o raciocínio indutivo (lógica e juridicamente válido) que pudesse autorizar a conclusão sobre a existência de outra ou outras circunstâncias.

Cumprir tais exigências é impossível, porém, quando o que se tem são meras ficções, teorias ou convicções orientadas por pressupostos e objetivos previamente estabelecidos e proclamados (vide o “Power Point” e outras entrevistas, declarações, publicações etc…).

Em suma, quanto ao ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva, as “Alegações” deixam claro o reconhecimento da ausência de fundamento para condenação. A rigor, pretendem transformar ficções em fatos, teorias em provas e convicções subjetivas em veredito condenatório.

Existirá julgador que chegue a tanto? Se existir, o jogo estará feito (desde quando?). A notícia–sentença virá como exigida e previamente anunciada pela mídia selecionada. Enfim, explodirá em manchetes, enquanto os “vencedores” do “Big Game” e a turba “aglobalhada” pelo ódio e o preconceito aplaudirão freneticamente os heróis do momento.

E a justiça? Onde fica nisso tudo? Ora, “Veja”! Isso talvez seja querer demais!

Alvaro Augusto Ribeiro Costa – Sub-procurador Geral da República (aposentado), ex-Advogado Geral da União e ex-Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.

Publicado em 11/06/2017 em Jornal GGN.