A indústria se impôs. Difícil qualificar de outra forma a maneira contundente como associações, entidades de classe, empresas e sindicatos se colocaram na audiência pública do pedido de waiver de Libra nesta terça-feira (18), no Rio de Janeiro. O presidente da Petrobrás, Pedro Parente, o presidente do IBP, Jorge Camargo, e o diretor geral da ANP, Décio Oddone, que se ausentaram do evento, perderam uma grande oportunidade de encarar a realidade do mercado. Empresários, líderes industriais, representantes de movimentos sindicais e trabalhadores apresentaram, um a um, suas qualificações, suas competências e seu alto nível de competitividade, num mar de ociosidade que marca o momento atual da indústria de óleo e gás brasileira, em defesa do conteúdo local no FPSO que será usado no campo do pré-sal.
Acostumada a fazer audiências públicas com no máximo 100 pessoas, em suas próprias instalações no centro da cidade, a ANP precisou deslocar o evento para o auditório da Fundação Getúlio Vargas, em Botafogo, que ficou lotado de alto a baixo. Das centenas de pessoas presentes, as únicas que não estavam contra o waiver eram os poucos representantes do IBP e das companhias de petróleo envolvidas no consórcio de Libra (Petrobrás, Shell, Total, CNPC e CNOOC).
Do outro lado, houve apresentações de entidades como Abimaq, Sinaval, ABCE, Sindimaq, Abitam e CNM, entre outras, além das empresas e estaleiros como Brasa, Ecovix, EAS, Techint, Brasfels e Asvac, todas com duras críticas à postura da Petrobrás. A representante do Sinaval, Daniela Santos, que teve 25 minutos de fala – cada um teria cinco minutos, mas outras quatro entidades cederam seu tempo a ela –, fez um relato claro e detalhado da postura equivocada da estatal neste processo, questionando a decisão da empresa de não abrir os números da proposta da Modec (que teria vindo com 40% de sobrepreço para se fazer no Brasil, segundo a Petrobrás) para análise da indústria.
“As informações deveriam ser disponibilizadas e devidamente analisadas pela indústria nacional. (…) O que estamos discutindo hoje nesta sala é a tentativa da Petrobrás de legitimar o descumprimento das regras. (…) Os preços e custos não foram apresentados, provavelmente porque a indústria nacional não foi devidamente consultada. O pedido é genérico e sem qualquer fundamento real. Essa audiência pública trata apenas de uma parte do pedido de waiver e não da sua totalidade, que é ilegítima. Podemos afirmar com toda segurança que não há no processo administrativo fundamentos para concessão do pedido de waiver apresentado pela Petrobrás. Há, sim, argumentos acessórios, ameaças e pressões para legitimar um processo ilegal”, afirmou a representante do Sinaval.
A linha de defesa do Sinaval foi corroborada pelo presidente da Abimaq, José Velloso, que levantou a hipótese de haver por trás do pedido de waiver uma forma de atender a contrapartidas exigidas pela China para a concessão de financiamentos.
De acordo com Velloso, os bancos chineses, assim como de alguns outros países no mundo, exigem índices de conteúdo local na construção de FPSOs financiados por eles, o que poderia ser uma das razões indutoras da postura da Petrobrás, que se mostrou claramente incompreendida pela totalidade dos empresários presentes na audiência pública.
“A afretadora só vai viabilizar o projeto – e por isso que só uma apresentou proposta – se ela conseguir o financiamento de um banco. Mas os bancos calculam o risco Petrobrás e o risco Brasil, que são riscos altos. E se esse financiamento for da China, que é sócia do consórcio, eles exigem conteúdo local. Eles precisam de zero. Então porque a Petrobrás pede zero (porcento de conteúdo local)? Porque eles exigem”, afirmou Velloso.
O executivo ressaltou ainda que a cotação apresentada pela Modec à Petrobrás foi entregue em agosto do ano passado, justamente no período em que ocorreu o impeachment da presidente Dilma Rousseff, marcando um momento de risco elevado para o cálculo dos financiamentos no caso de construção no Brasil.
Além disso, Velloso apresentou dados da indústria naval dos últimos anos, indicando que de todos os FPSOs contratados no Brasil, quatro foram entregues no prazo ou com antecedência, um deles com atraso de cinco meses, um com atraso de dois meses e outro com atraso de 20 dias. No total, a média de entrega foi de 35 meses.
“Sendo que hoje há uma ociosidade muito grande e há capacidade instalada, então a indústria tem condições de atender e as obras poderiam ser iniciadas assim que contratadas”, completou.
Outro representante do setor de máquinas e equipamentos, Alberto Machado, que falou em nome do Sindimaq, também criticou a confidencialidade dos números e destacou que a aprovação do waiver de 100% tem o risco de ter consequências para além do que se espera, já que alteraria também o que foi acordado no leilão, onde outras petroleiras deixaram de participar.
“A confidencialidade do consórcio não nos permite avaliar os dados, o que já inviabiliza a consulta pública por si só. Além disso, no passado, outros consórcios poderiam ter vindo se as regras fossem diferentes, mas esse foi escolhido porque se comprometeu com aquelas regras. Se alterarmos isso agora, praticamente todas as bases do certame terão sido alteradas”, afirmou.
A ABCE, que representa os engenheiros e as consultorias em engenharia, destacou a importância do projeto básico e detalhado dos projetos com conteúdo local e reiterou que estes itens estão entre os que não podem ser mandados para fora.
“O contrato é explícito ao dizer que o waiver não é permitido em engenharia básica e de detalhamento. Então o waiver para essas partes não é cabível, de modo que o pedido de 100% já tem esse vício de base”, afirmou.
RISCO DE PERDA DE ESTALEIROS
Os executivos do setor, a maioria de estaleiros, inclusive de bandeira estrangeira, como a Techint (ítalo-argentina) e a SBM (holandesa), também abriram seus números, revelando investimentos multimilionários no Brasil nos últimos anos, e questionaram a decisão da Petrobrás.
O diretor da Techint, Luiz Guilherme de Sá, fez uma apresentação das instalações da empresa em Pontal do Paraná, onde investiram R$ 300 milhões, ressaltando que a P-76 está sendo feita no local sob bases competitivas, dentro do prazo, e com forte retorno para a sociedade local.
“Dos 20 módulos do FPSO, 15 foram executados na nossa unidade no Paraná, incluindo os mais complexos. Trouxemos de fora só os mais simples. A Techint investiu 300 milhões de reais nessa unidade acreditando na política de conteúdo local e no programa de todos FPSOs previstos. Com essa proposta (do waiver), vamos perder escala. Tanto na construção de módulos, como na viabilidade de fazer integração”, afirmou, ressaltando que trouxeram um guindaste de grandes proporções para as operações no local, mas podem ter que devolvê-lo caso não haja novas contratações de peso no horizonte. “Esse guindaste foi trazido para içar 20 módulos. Com a mudança proposta, o que pode haver no Brasil será algo entre 6 e 8 módulos, o que inviabilizaria financeiramente o aluguel desse equipamento, por exemplo”, disse.
Ainda segundo o executivo, a empresa chegou a empregar 3.700 pessoas em 2016, no pico das obras, com 70% de mão de obra local, somando 10.760 empregos indiretos até agora, mas esse quadro será revertido se o conteúdo local não for continuado.
“Então queremos trazer nossa experiência para que seja reavaliado esse pedido de waiver. A construção de módulos e a integração são atividades nobres e têm condição de ser feitas no Brasil. Se isso for perdido, não volta mais. Os empregos vão para a China e não vão mais ficar no Brasil”, enfatizou.
O gerente executivo do Estaleiro Brasa (controlado pela holandesa SBM), Marcus Cirio, seguiu a mesma linha de discordância com a Petrobrás, ressaltando que já geraram mais de 37 mil empregos diretos e indiretos, somando R$ 1,38 bilhão em compras no mercado nacional, com atividades de alto padrão, incluindo a entrega de 25 mil toneladas de módulos, assim como a integração e o comissionamento de 3 grandes FPSOs.
“Se o conteúdo local for extinto das obrigações contratuais, a curto prazo, perderemos nossa capacidade de reiniciar as operações de forma eficaz. Em consequência, estimamos que antes do final do ano as reservas de caixa terão sido consumidas, obrigando-nos a fechar as portas do Estaleiro Brasa completamente, perdendo toda a experiência adquirida, tornando o cenário catastrófico”, afirmou, ressaltando que o estaleiro treinou, capacitou e contratou 8 mil empregados diretos ao longo dos projetos, enquanto atualmente conta com apenas 400 funcionários em seu quadro.
O presidente da Asvac, Cesar Prata, que fornece equipamentos para plataformas, fez também um duro relato da sua realidade atual, destacando que atua há 45 anos no setor e notou uma mudança de postura incompreensível por parte das contratantes.
“Nós fabricamos porque fomos instigados a isso. Os consórcios que venceram os leilões, inclusive os estrangeiros, vieram a nós – à indústria e às entidades de classe. E nós fornecemos para eles. Mesmo para plataformas construídas lá fora. Mas alguma coisa nesse processo mudou. Não entendo porque agora não tem ninguém falando com a gente. Aqueles afretadores nos procuraram, fornecemos para eles, mas agora não sabemos nem o que eles estão querendo. Ou seja, houve um distanciamento. (…) A impressão que temos é que estão interessados em não cumprir (as exigências de conteúdo local), de um jeito ou de outro”, afirmou, destacando que também não viu qualquer consulta por parte dessas empresas para a cotação do FPSO de Libra. “Ninguém sabe nem o meu preço. Estou com a fábrica vazia, demiti gente… meu preço está ótimo. Mas ninguém nem quer saber quanto é”, finalizou.
O relato de Alexandre Rodenheber, gerente de projetos da Ecovix, que liderou uma das construções da empresa inclusive na China, revela a discrepância de postura da Petrobrás entre os trabalhos no Brasil e no exterior, além de dar outro caminho possível para a estatal.
“Enquanto na China tínhamos cerca de 10 fiscais da Petrobrás, no Ecovix eram mais de 100, que interferiram muito. Então isso impacta bastante o projeto”, afirmou.
O executivo ressaltou ainda que mesmo fazendo uma parte de um casco na China, conseguiram atingir 57,8% de conteúdo local, e hoje têm capacidade de processar 8 mil toneladas de aço por mês, contando com o maior pórtico das Américas, com condições de construir dois FPSOs simultaneamente. Ele aproveitou para mencionar a P-71 como um problema que pode virar solução.
“O contrato da P-71 foi rescindido no ano passado, sendo que temos cerca de 50% de conclusão. Ouvimos dizer que a Petrobrás está avaliando relicitar o projeto do zero no exterior, mas nós conseguiríamos concluir em 16 meses. Ninguém fará do zero neste tempo. Também poderíamos alongar o casco e atender à necessidade de Libra, se for o caso. Para Libra, hoje, começando do zero, atendemos o prazo de 38 meses, mas, caso usemos o que já está construído da P-71, atenderíamos em 34 meses”, disse, explicando que os atrasos da plataforma tiveram diversas razões, inclusive alterações de escopo promovidas pela Petrobrás.
O estaleiro EAS também se fez presente e sua representante, Nicole Terpins, diretora jurídica, falou que também não foram consultados para a cotação de Libra e que teriam o dique disponível para a construção, ao contrário do que alega um dos relatórios apresentados pela Petrobrás no pedido de waiver.
“A Petrobrás alega a ausência de fornecedores nacionais, não traz argumento para mostrar isso, reconhece que o EAS tem capacidade para atender, mas desqualifica o trabalho com informações incorretas e sem bases, levando em conta que o estaleiro não foi nem consultado. Isso é no mínimo irrazoável”, afirmou.
De acordo com Terpins, a empresa teria condição de atender os prazos, e fez a “lição de casa” em relação aos problemas do passado, tendo alcançando altos índices de produtividade em 2016. Ela reconheceu que muitos dos problemas enfrentados pela Petrobrás também tiveram participação da indústria, com alusão indireta à Lava Jato – sem citá-la nominalmente –, mas que agora as empresas estão reestruturadas e buscam novas oportunidades.
“Querer que esse waiver seja concedido é pedir que os estaleiros e fornecedores absorvam sozinhos as consequências dessa crise. Se for concedido o waiver, o cenário de crise se agravará, enterrando por definitivo qualquer expectativa de sobrevivência da indústria naval no Brasil”, afirmou.
FALTA DE TRANSPARÊNCIA DA PETROBRÁS
O líder do consórcio de Libra pela Petrobrás, Fernando Borges, foi o encarregado a fazer a defesa do pedido, mas sua apresentação foi curta e muito pouco esclarecedora, já que mais uma vez não trouxe os números tão esperados pela indústria, que poderiam aprofundar o debate.
“O que baseia esse pedido é a lógica construtiva da plataforma, com eixo principal sendo entregar em prazo competitivo, em 38 meses de construção e comissionamento”, afirmou, ao inaugurar a sessão, que seguiu com sucessivas críticas à posição da Petrobrás.
Ele afirmou ainda que nove estaleiros brasileiros foram consultados pelas afretadoras para a licitação, mas o Sinaval, que representa todos os estaleiros nacionais, negou a informação mais uma vez.
“Não é verdade que será totalmente feito no exterior. Será feito no Brasil o que tiver competitividade. Apesar de não ser necessário quando existe a exoneração do conteúdo local, o consórcio de Libra exigiu percentuais factíveis em contrato com as afretadoras”, tentou se defender Borges, mas não quis detalhar os percentuais incluídos na nova licitação.
O representante do IBP, Antônio Guimarães, foi o outro único defensor do waiver, alegando que a redução do conteúdo local já passou inclusive por decisão governamental.
“Temos que reconhecer que acabamos de passar por um debate, do ponto de vista de governo, em que ficou reconhecido que não pode ser mantido do jeito que está”, afirmou, sem levar em conta que esse reconhecimento se deu apenas pelas petroleiras, já que, à exceção de IBP e Abespetro, todas as federações de indústrias, entidades de classe, associações e sindicatos foram contra o novo modelo de conteúdo local adotado pelo governo.
E todos estes elos da cadeia se manifestaram presencialmente desta vez, de forma enfática, alegando que têm total condição de fazer parte destes projetos.
“A indústria nacional não quer atrasar a contratação do FPSO de libra. Pelo contrário, quer contribuir. Mas foi deliberadamente afastada da competição. Portanto é importante entender a razão disso. Os estaleiros nacionais têm condições de atender. E aguardam a oportunidade para competir. (…) No caso da concessão ilegal do waiver, a ANP será obrigada a detalhar sua decisão, com as informações que embasaram essa comparação de preços”, afirmou a representante do Sinaval, Daniela Santos.
O presidente da Abimaq, José Velloso, também falou da importância de se rever o processo e deu um indício de que, caso a ANP opte por ignorar os pleitos, provavelmente enfrentará uma chuva de processos judiciais, como deixaram claro também outros representantes da indústria no evento.
“Esse assunto, sem sombra de dúvida, vai ser judicializado, e tomará mais tempo ainda”, destacou, lembrando que o relatório DNV-GL apresentado no pedido de waiver era para a validação da metodologia adotada pelo consórcio, e não conduziu nem validou nenhum estudo sobre a capacidade da Indústria brasileira, como revelou o Petronotícias em fevereiro. “Todos os dados atualizados foram fornecidos pelo próprio consórcio e ela não checou a veracidade das informações”, relembrou Velloso.
Ao final, Fernando Borges, líder da Petrobrás no consórcio de Libra, voltou a falar para a plateia, tentando se defender das acusações, mas foi novamente rebatido.
“Não é verdade que estamos querendo desnacionalizar a indústria, como alguns disseram. Queremos fazer no Brasil o que for factível. Mas o que está no contrato é inexequível. E o impossível não podemos fazer”, disse Borges, para logo ouvir um questionamento de um empresário da plateia.
“Então abram os números. Mostrem para a indústria ‘esse impossível’. É só isso que estamos pedindo”, questionou o executivo Marcelo Bueno, que ficou sem resposta.
Publicado em 18/04/2017 em Petronotícias.