André Singer diz que o lulismo encarna um reformismo progressista fraco, de caráter conciliatório. Seus limites políticos são bem conhecidos.
Restam poucas dúvidas de que o governo Lula 3 se encontra em um momento crítico. As diversas pesquisas de opinião têm mostrado, em 2024, as queixas difusas da população em relação à economia. Conforme afirmou no passado recente o professor André Singer, o lulismo encarna um reformismo progressista fraco, de caráter conciliatório. Seus limites políticos são, portanto, bem conhecidos.
Essa mesma análise crítica ganhou ainda maior relevância durante o terceiro mandato do presidente Lula (PT), pois, apesar das políticas sociais implementadas anteriormente, o lulismo falhou na promoção de reais mudanças estruturais progressivas. O seu caráter conciliatório e desmobilizador ajudou a reforçar e a manter intactas muitas das estruturas políticas e econômicas tradicionais, evitando os confrontos mais profundos com o poder econômico estabelecido.
Nesta semana, fomos informados de que o Ministério da Fazenda, através do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, propôs reduzir as metas de superávit primário para as contas públicas dos próximos anos. O governo estimou que só atingirá o superávit primário em 2026. A meta fiscal de déficit primário zero foi mantida para 2024. Entretanto, como há um intervalo de tolerância de 0,25 ponto percentual do PIB, o resultado poderá ser deficitário. O fiscalismo ortodoxo em curso prevê ataques contra as áreas da Educação e da Saúde. As áreas de Educação e Saúde são altamente valorizadas pelos apoiadores de Lula. Nesse sentido, qualquer proposta de redução de gastos para essas áreas deverá enfrentar forte resistência por parte da base eleitoral do presidente. Políticas públicas que afetam essas áreas têm repercussões significativas, especialmente em um ano eleitoral.
Uma matéria publicada em O Globo, na sua edição digital de 15 de abril, revelou que “em novo aceno a militares, governo se une à oposição por PEC que vincula orçamento da Defesa ao PIB”. Assinada por Camila Turtelli, a matéria trouxe a informação de que “a PEC prevê a destinação de um percentual mínimo de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) às Forças Armadas no primeiro ano de vigência, com aumento anual até chegar a 2%”. A matéria ressaltou que “a maior fatia dos recursos da pasta costuma ser comprometida com os pagamentos de salários, pensões e aposentadorias dos militares, que representam 77% das verbas neste ano”. Confirmando-se esse curso de ação política, o governo Lula 3 aumentará os gastos públicos com as Forças Armadas, enquanto alega que não tem mais dinheiro para melhorar as condições de trabalho dos servidores públicos federais da Educação.
Recentemente, o governo anunciou, paradoxalmente, a construção de 100 novas unidades de Institutos Federais (IFs), com o objetivo de criar 140 mil novas vagas na rede, principalmente em cursos de ensino médio integrado ao técnico. Esses investimentos, no valor de R$ 3,9 bilhões, também visam melhorar algumas unidades existentes. No entanto, não há sinais claros de demonstração de preocupação governamental em relação ao déficit orçamentário crônico enfrentado pelos campi dos IFs, um problema persistente há pelo menos uma década. Além disso, existem vagas ociosas na rede e necessidades de reestruturação de cursos, especialmente em um contexto no qual o valor da educação tem sido desvalorizado no mercado de trabalho. Essas relevantes questões foram tratadas em um artigo nosso de opinião publicado no GGN, em 16 de março, que apontou ainda a possibilidade de erros de dimensionamento e localização de muitos campi, influenciados por interesses políticos.
O “Partido Militar” foi o centro do governo anterior, conforme detalhado no livro “Poder camuflado”, de Fabio Victor, editado pela Companhia das Letras, em 2022. O livro analisa a presença dos militares na política desde o fim da ditadura até sua aliança com Bolsonaro. O Tribunal de Contas da União (TCU) identificou a presença de 6.157 militares exercendo funções civis na administração federal em 2020, um aumento de 102% em relação ao ano de 2016. Os militares foram poupados da reforma regressiva da previdência e receberam benefícios pecuniários expressivos, mantendo o estado de bem-estar para a família militar com recursos públicos.
Segundo Victor, a candidatura de Bolsonaro à Presidência nasceu no dia 29 de novembro de 2014, quando o deputado federal realizou um discurso político dentro da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) para bacharéis em ciências militares e aspirantes a oficiais. O comandante da Aman era o general Tomás Ribeiro Paiva, atual comandante do Exército, considerado um “pupilo brilhante” do general Villas Bôas.
Ainda de acordo com o autor, “inúmeros militares da ativa perderam a cerimônia e transgrediram o regulamento disciplinar e o Estatuto dos Militares para fazer campanha pró-Bolsonaro”. Em 2018, relatou Victor, o general Tomás, na condição de chefe de gabinete de Villas Bôas, sugeriu que os principais candidatos à Presidência da República fossem convidados para discutir temas de interesse do Exército. O convite foi aceito pelo atual ministro da Fazenda e outros. Cordialidade conciliatória?
Em sua coluna em O Globo, de 18 de fevereiro de 2024, o jornalista Bernardo Mello Franco avaliou o papel dos empresários na intentona direitista de 8 de janeiro de 2023. Alguns empresários, atuando em articulação com os militares, são nominalmente citados no seu respectivo texto. O governo Lula 3, afinal, espera realmente que virá de um suposto arrojo empresarial o novo ciclo de crescimento, com inclusão social e sustentabilidade ambiental? A contração fiscal expansionista para as áreas da Educação e da Saúde integram essa perspectiva ruinosa? Por que o Ministério da Fazenda insiste em flexibilizar os pisos constitucionais da Educação e da Saúde? Para abrir mais espaços de acumulação de capital para as empresas? Mais mercado e menos Estado? Não foi esse o compromisso de campanha em 2022 para essas áreas.
David Deccache, economista e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, escreveu em seu perfil no X, em 16 de abril, que o governo alega que compensará a perda de recursos dessas áreas com um “aumento de eficiência”. De acordo com Deccache, “segundo essa lógica, reduzindo os salários dos professores e dos profissionais de saúde, a eficiência, por consequência, aumentaria”. Funcionará para quem essa contração fiscal expansionista, supostamente “progressista”? Para quais interesses?
Não se pode ignorar que, em 2018, o candidato apoiado pelo poder econômico contou com a capilaridade militar em todo o país para derrotar o Partido dos Trabalhadores (PT). Um conhecido empresário chegou a afirmar pouco antes do segundo turno de 2022 que “ele [Bolsonaro] pode falar o que não deve, mas ele faz o que deve ser feito”. Durante esse período, a renda do capital cresceu em relação à renda do trabalho em termos de PIB. Parece improvável que o lulismo possa reverter parcialmente esse cenário até 2026. Ainda que a “pejotização” distorça uma parte da participação dos salários na renda, em 2016, os assalariados tinham renda no patamar de 44,7% do PIB. Após a reforma trabalhista, em 2017, essa participação caiu abaixo de 40%, afastando o Brasil do perfil das economias mais desenvolvidas e evidenciando a sua alta desigualdade. A informalidade laboral se manteve em 39% para os trabalhadores ocupados, segundo o IBGE.
De acordo com Bernardo Mello Franco, no artigo citado acima, a defesa histórica da ditadura convergiu com o fundamentalismo de mercado. Eleito em 2018, segundo o jornalista, o ex-presidente Bolsonaro “empenhou-se no desmonte do Estado e da legislação trabalhista e ambiental”. A promoção do capitalismo selvagem conviveu bem com o garimpo em terras indígenas e o trabalho infantil, “que voltou a crescer após anos de queda”, destacou. O lulismo pretende conciliar com esse tipo de capitalismo?
Sobre a participação do ministro da Economia de então na reunião gravada de 5 de julho de 2022, na qual Bolsonaro falou em golpe, Mello Franco afirmou que Paulo Guedes “permaneceu em silêncio, mexendo despreocupadamente com seus papéis”. Guedes, que tinha laços com os “Chicago boys”, trabalhou com entusiasmo intelectual no Chile em plena ditadura pinochetista nos anos 1980. Quem está realmente entusiasmado com o governo Lula 3, imerso em seu labirinto conciliatório?
Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).
Publicado em 17/04/2024 em GGN.